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CAPÍTULO 3 – O MUNDO E A MENTE: A QUESTÃO DA DUPLA CAUSALIDADE

3.4 O conceito de causalidade

Vamos usar a seguir uma análise do argumento de Hume sobre a formação do conceito de causalidade (e de identidade pessoal) para ilustrar esta questão, e compará-la com conceitos cosmológicos pré-clássicos (como Logos e Cosmos). Vamos comentar esse argumento empirista clássico, uma vez que foi esta interpretação teórica de Hume sobre a racionalidade (sobre o fundamento do razão ou do conhecimento) que colocou em cheque o realismo do mundo em nossa era moderna. (Kant mais tarde vai usar o mesmo argumento limitando a questão do realismo do mundo a “coisa em si” sempre inacessível em sua essência). O exemplo do jogo de bilhar de Hume se tornou famoso pela sua simplicidade representativa e pela sua perplexidade (ao nos colocar como agentes de um conceito que antes deste argumento, era remetido ao mundo). É a regularidade probabilística de várias percepções organizadas em nós, que formam o conhecimento sobre aspectos que erroneamente atribuímos ao mundo.

Porém num sentido diferente, muitos séculos antes dos empiristas modernos, os filósofos gregos (pré-socráticos) desenvolveram a noção de logos, uma ordenação implícita ao cosmos, ao concluírem que o mundo deve (condição necessária para o conhecimento) apresentar propriedades cognoscíveis intrínsecas9, caso contrario, se os aspectos do mundo fossem totalmente aleatórios, nós não poderíamos conhecê-los (nem mesmo imaginando que um ser inteligente pudesse surgir num mundo ininteligível). Desta forma surgiu uma tradição filosófica clássica que consiste em compreender as questões da causalidade (como um exemplo do uso da razão) como uma propriedade do mundo objetivo e somente muito mais tarde10 surge uma nova visão apresentada por Hume (causalidade como operações mentais sobre regularidades do mundo) que vai por em cheque a noção de “causalidade”, um conceito

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Falaremos mais adiante do princípio antrópico (que em sua versão moderada pode ser defendida racionalmente, como é o caso do posicionamento de Hawking a favor desta teoria), e dos processos de anti entropia informativa de Shannon.

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Estamos salientando apenas os autores modernos, mas é claro que Platão já tocava neste problemático assunto ao hierarquizar dois mundos (sensível e inteligível) legitimando uma hierarquia epistêmica ao afirmar que o mundo das formas ideais como o mais verdadeiro e sobreposto ao mundo sensível. Aristóteles vai negar a possibilidade lógica de dois mundos interagindo e enfatizando que as idéias não são formas sobrepostas ao mundo sensorial, e dessa forma vai valorizar a experiência como fonte do saber e matriz do conhecimento (mas como um legítimo grego, o saber teórico era considerado por ele como superior ao saber prático). Aristóteles vai apresentar uma justificativa naturalista para seu modelo de epistêmico. Para ele o conhecimento segue uma seqüência: sensorial – memória – experiência – arte (conhecimento prático) – teoria (conhecimento teórico). Tal modelo tem em si, embutido também a noção de hierarquia na formação do conhecimento.

fundamental sobre o conhecimento do mundo que era atribuída ao mundo (pelo menos em termos realísticos), e não como disse Hume a uma interpretação do mundo.

Desafiando e posição hegemônica da sua época, Hume vai argumentar que só podemos saber ou conhecer “causalidade” (como sendo um princípio formal) porque conseguimos operacionalizar sensações perceptivas de modo independente do mundo (ou da coisa percebida). Ao observarmos uma bola branca rolar e bater numa bola vermelha que a partir daí, passou a rolar, o que realmente estamos percebendo? Um princípio de causalidade ou uma seqüência de percepções agrupadas em um sentido mais amplo? Hume entende que o conhecimento é uma operação mental que faz sentido, agrupando unidades representativas mais básicas. (O exemplo de Hume para desmontar a realidade unificada de um senso de identidade pessoal segue um caminho semelhante: o “eu” seria apenas um feixe de percepções integradas no momento presente).

Para Hume a realidade é sempre probabilística. E a probabilidade é uma forma de representação de algo em termos de possibilidades plausíveis, ou seja, a representação não é a coisa real em si, mas sim uma versão em termos de conhecimento probabilístico desta coisa em si, com muitas de suas propriedades em comum. A questão fundamental é justamente essa: tais operações mentais que formam o conhecimento do mundo (e de si mesmo), só tem significado legítimo quando correspondem ao mundo (ou a mente)? A referência é um problema intransponível e ao mesmo tempo inevitável?

O conhecimento em si mesmo não diz respeito a nada, é apenas uma potencialidade, um conceito abstrato. Mesmo entendendo essa correspondência (entre conhecimento e coisa conhecida) como um fenômeno probabilístico, é esta correspondência probabilística que garante e valida este conhecimento. Sem correspondência (mesmo que probabilística) entre conceito e percepção, o conhecimento se torna duvidável, e portanto deixaria de ser conhecimento. A própria lógica interna (principio da não contradição) do conceito de “conhecimento” ficaria prejudicada se tal ordem probabilística da relação conceito-mundo não se mostrasse estável. Em Hume, a legitimidade do conhecimento é lançada sobre a percepção e a racionalidade é uma operação perceptiva mais ampla. Ambas (percepção e racionalidade) são entendidos como processos ou estados mentais que são representativos sobre eventos probabilísticos.

Analisando este argumento de Hume, podemos interpretar que a casualidade do conceito de “causalidade” é mais uma forma de ver o mundo, do que propriamente uma característica do mundo. Mas como se dá essa independência em relação ao mundo imediato? Como esse distanciamento do mundo pode derivar de uma forma de ver o mundo? Para Hume, a percepção (e suas variações e padronizações) se torna hierarquicamente superior ao realismo do mundo (a coisa em si), constituindo-se na própria gênese do conhecimento (sempre como algo provável). Já vimos que Platão cometeu o mesmo padrão de classificação epistêmica ao hierarquizar as formas de conhecimento em favor das idéias puras. Porém como diziam os filósofos pré-socráticos, se o mundo não apresentasse probabilidades de correspondência com o conhecimento, este seria inútil para um ser capaz de conhecer, como o ser humano (é questionável se algumas proposições formais e lógicas continuariam a apresentar tal inteligibilidade se não houvesse valor correlacional entre conhecimento e mundo: a própria noção de lógica seria desestruturada, pois embora a lógica não dependa de fatos e sim de coerência interna, tal coerência depende de definições conceituais e semânticas e estas não podem ser explicadas de modo puramente formal).

Sem dúvida, o critério objetivista da realidade não pode ser negligenciado. Se por um lado, a correspondência empírica entre conceitos representativos e fatos do mundo é a garantia do instrumentalismo externalista da ciência dominante, por outro lado, o subjetivismo, ao ter que usar algum tipo de linguagem para estabelecer formalmente (e socialmente) suas teorias deve necessariamente objetivar alguns conceitos (como já colocava Wittgenstein no sentido de não existir uma linguagem puramente privada, e se tal coisa privada existir, não será uma linguagem) e para isso toma emprestados alguns termos relativos ao mundo, para desta forma explicar a mente: “mente” como computador, como espelho, como topografias ou mapas, como regras, como cérebro, como comportamento, como linguagem, como holografia, como formas de energia (naturais ou exóticas), e até mesmo como uma descrição fenomenológica de mente que vai remeter a consciência (ou a intencionalidade) a propriedades relacionais (consciência sempre como consciência de algo no mundo). Essas correspondências conceituais representam realmente algum avanço na compreensão da mente ou são apenas novos rótulos mecanicistas para os mesmos problemas não redutíveis ao mecanicismo? Teixeira (2005, p. 9) coloca que “os principais protagonistas da cognição humana têm sido a mente, o cérebro, a linguagem e a ação e suas relações com o mundo”. O que estamos vendo nas ciências psicologias é realmente um avanço teórico ou uma reprodução modernas dos mesmos protagonistas de sempre?

Para fugirmos de uma resposta que formalize os rótulos das diferentes epistemologias, sem, no entanto explicar como (e se) essas epistemologias podem coexistir, tentaremos uma via naturalista e pluralista. Um estudo correlacional entre conceitos fundamentais entre várias teorias distintas que supostamente investigam o mesmo fenômeno não pode ser uma atividade puramente formal. O pluralismo epistêmico precisa do formalismo para manter uma linguagem lógica e inteligível, mas precisa também das pesquisas empíricas para testar falseabilidade ontológica. Essa parece ser a dupla função epistêmica da filosofia da mente atual: servir de critério lógico formal para os conceitos psicológicos e ao mesmo tempo, tomar os dados empíricos de caráter crítico como prova de falseamento conceitual, numa construção teórica sobre o conhecimento e suas estruturas.

Retomamos então ao ponto inicial: a possibilidade de uma teoria geral da mente. O empirismo naturalista e conceitual está fadado a ser uma teoria globalmente incompleta? O mesmo se estende ao formalismo racionalista, que também estaria fadado à falta de pontualidade explicativa (quando se aventura na explicação do mundo, sem uma ontologia relacional definida)? E se assim o for, estas visões incompletas em si mesmas, podem possibilitar uma visão mais ampliada do fenômeno em comum, quando relacionadas entre si? Podemos estruturar (formalizar) e equalizar (relacionar métodos e conceitos) diferentes concepções teóricas e epistêmicas acerca da mente, de modo a facilitar um diálogo com diferentes pontos de vista? Teremos uma visão completa a partir da soma de visões incompletas? Será que não vamos apenas aumentar o tamanho da incompletude teórica ao tentar integrar conceitos derivados de teorias incompletas?

Se, como apresentadas na alegoria dos cegos tocando um elefante, estão todos os cegos (as diversas investigações sobre a mente) tocando partes de um mesmo fenômeno sob aspectos metodológicos e com instrumentais teóricos distintos (o que nos faz cegos para outras abordagens). Assim limitados, como vamos poder entender o que é o “elefante da mente”? O “elefante” é real? É algo que existe além daquilo que é tocado? As diferentes probabilidades conceituais e metodológicas do que temos atualmente sobre o mental podem estar relacionadas a uma mesma ontologia? A mente é real em sentido subjetivo e objetivo? Ou é uma grande ilusão lingüística? Existe realmente um mesmo fenômeno sendo investigado sob diferentes pontos de vista? A mente pode justificar um realismo subjetivo intencional em conjunto com um realismo objetivo mecanicista? O subjetivo deve ser entendido como parte do mundo objetivo, posição que esta sendo defendida por muitos filósofos atuais da mente (como Nagel, Searle, Chalmers)? O pluralismo epistêmico (que nasceu junto com a própria

filosofia) é um campo do qual nosso conhecimento não pode se furtar, mesmo quando confrontado com o sucesso estupendo das operacionalizações objetivistas e sua especialização do conhecimento reducionista e dos termos descritivos e demarcativos.

Numa busca de compatibilidades conceituais entre teorias distintas, quais instrumentos inteligíveis podem ser utilizados para fundamentar tal intenção de integração epistêmica? Como integrar cérebro com conteúdo mental? Como juntar uma abordagem humanista da mente com uma visão naturalista da mente? O humanismo tende para o relativismo cultural e pessoal (subjetivo) enquanto o naturalismo tende para o universal e o objetivamente pontual. Como juntar tais abordagens e seus respectivos conceitos fundamentais?

Para promover tal possibilidade de integração conceitual, talvez tenhamos que saltar de uma análise conceitual da relação epistêmica para uma análise ontológica de caráter relacional, que se dá através de experimentações e análise conceitual (justamente as marcas da filosofia da mente). Um conceito sem referência é vazio (afinal, sobre o que estaríamos falando?). Mas para definir tal tipo de referência, não terei que estabelecer uma relação de

conhecimento? O que é esta relação? Sem dúvida é algo, mas que algo? Conhecimento? E

afinal, como nós podemos estar falando de algo que parece não ser mediado por nosso conhecimento? Para falar de algo, não precisamos nos relacionar com algo? Como posso me distinguir do resto do mundo? Porque tal distinção parece ser auto-evidente?

Para responder a esses questionamentos vamos ter que admitir uma versão referencial para a gênese do significado, uma forma ontológica relacional, menos rígida em relação às concepções tradicionais (entendendo que ontologias complexas, como aquela relacionada à natureza do conhecimento, possam ser dinâmicas e relacionais, e não apenas substanciais). O mundo da mente e do significado se distingue do mundo material imediato, embora nunca deixe de ser também material.

E quanto maior nossa ambição epistemológica, maior os saltos quanto à abrangência de um conhecimento nós teremos que sustentar. Se nossa meta é chegar a uma compreensão realística do mundo que se estenda além de uma probabilidade estatística afetada pela incerteza (sujeitas a não significância), temos que recorrer a uma análise ontológica legítima que remete a um conhecimento que transcenda o tempo imediato relativo ao ser (ou fenômeno) investigado, e desta forma, tal estratégia nos obriga a pagar o preço implícito de uma metafísica (qualquer metafísica), que em sentido próprio quer dizer um

conhecimento (ou pretensão de conhecimento) acerca das propriedades últimas de um fenômeno bem como de sua gênese.

Segundo Reale (1988) a metafísica apresenta quatro sentidos, não excludentes: 1) como arqueologia (arché ou as causas primeiras); 2) como ontologia (ser enquanto ser real); 3) como discussão da substância (o principal sentido do ser); 4) como teologia (a ciência do Ser Perfeito). Mas Strawson (1959) faz uma distinção importante entre metafísica descritiva (apresenta o quadro conceitual que deve conduzir o pensamento) e metafísica revisionista (quer induzir uma mudança de atitude equivocada). O eliminacionismo da filosofia da mente de Churchland (2004) e a desilusão pós-modernista com relação à objetividade e a verdade seriam exemplos de metafísica revisionistas.

Muitos de nós não estamos mais nos contentando com as explicações objetivistas reducionistas ou eliminacionistas (apesar de seus sucessos em mudar a face do mundo, e em certa medida mudar nós mesmos) e o que queremos em termos teóricos são explicações que sem negar tal objetividade (e seus avanços), possa sustentar também uma realidade subjetiva (integrar realismo objetivo com realismo subjetivo). Para tal, temos necessariamente que determinar um ponto de vista ontológico (de caráter essencialmente relacional), e com isso teremos que eleger uma metafísica plausível entre dezenas de modelos possíveis. Mas tratando-se de transcendência da temporalidade imediata, que conceitos nos permitem o distanciamento temporal necessário para integrar diferentes pontos de vista sobre o mesmo fenômeno?

Por uma série de razões que estamos discutindo neste texto, acreditamos que um forte candidato a ocupar um lugar de destaque entre os paradigmas de conceitos fundamentais para uma interdisciplinaridade teórica entre diferentes modos de entender o mental venha do uso epistêmico do termo “evolução” e do termo “informação”.

3.5 O conceito de evolução: um termo meta-epistêmico para equalizar teorias