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CAPÍTULO 3 – O MUNDO E A MENTE: A QUESTÃO DA DUPLA CAUSALIDADE

3.5 O conceito de evolução: um termo meta-epistêmico para equalizar teorias

Vamos agora analisar mais detalhadamente o conceito de evolução. A análise do termo informação será feito na sessão seguinte. O conceito de evolução (em seu sentido darwinista) há tempos já expandiu seus limites conceituais e empíricos originais, para além da análise biológica, influenciando disciplinas muito diferentes como a psicologia, a sociologia, a economia, a inteligência artificial e até mesmo recentemente a cosmologia. Em sua forma lógica, o termo evolução tem um forte potencial teórico interdisciplinar. Vamos apresentar o termo “evolução” em três condições necessárias e suficientes de demarcação dos critérios de evolução e isto vai nos levar muito além de do projeto original de Darwin.

Darwin (1859) estabeleceu as três condições necessárias e suficientes para demarcar um fenômeno evolutivo:

1) Variabilidade entre os membros de uma espécie. Mesmo sem conhecer os conceitos genéticos, Darwin havia observado que havia variabilidade entre gerações de uma mesma espécie.

2) Hereditariedade de características da espécie. Mesmo sem suporte genético, Darwin percebeu que alguns traços característicos de uma geração eram transmitidos para novas gerações.

3) Seleção ambiental sobre os potenciais individuais dos membros de uma espécie. Como todo ambiente possui recursos limitados, somente as variabilidades mais úteis (em termos de adaptação ao meio, ou sucesso na competição ambiental) seriam transmitidas por hereditariedade11.

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Além disso, na época vitoriana em que viveu Darwin, era comum à seleção artificial de raças específicas de cães, cavalos e outras espécies de animais, que estabeleciam cruzamentos pré-selecionados e desta forma induziam o surgimento de alguma característica peculiar. Darwin se perguntou se um mecanismo similar não poderia estas sendo operado de modo cego pela natureza.

Pouco mais de um século depois, durante o advento da sociobiologia, Dawkins (1976) estabeleceu uma tradução destes princípios naturalísticos em termos formais e lógicos:

1) Variabilidade não precisa ser necessariamente genética (DNA estruturando proteínas). Qualquer estrutura que dê suporte informativo a um sistema auto-replicante (com um alto grau de sucesso replicante, mas com pequenas taxas de erros) pode ser entendido neste termo lógico pró-evolutivo.

2) Hereditariedade quer dizer transmissão de características de uma geração para uma nova geração de unidades replicantes. No caso do DNA as transmissões hereditárias envolvem organismos vivos (em diversas escalas de tamanho). Porém tal característica não se restringe aos termos unicamente biológicos. Características não biológicas (como costumes culturais) também podem ser herdadas de uma geração anterior e passadas para uma próxima geração de replicantes.

3) Seleção ambiental como mecanismo que seleciona ou afunila as opções de respostas adaptativas (corretas ou “adaptativas” em termos de algoritmo darwinista, conforme apresentado por Dennett, 1998) não se restringe a um ambiente físico externalista. Qualquer sistema com complexidade suficiente grande para sustentar uma dinâmica de hereditariedade e variabilidade vai ter (mais cedo ou mais tarde) que enfrentar as condições de limitação ao seu próprio crescimento, uma vez que não podemos aceitar a idéia de um sistema ter recursos com sustentação anti-entrópica infinita (esta possibilidade metafísica fica muito além do plausível). Cérebros parecem ser sistemas ideais para sustentar um processo evolutivo de sinapses e conteúdos mentais. Tais sistemas seriam ambientes perfeitos para uma seleção cultural, que desta forma, ocorreria fundamentalmente em ambiente cerebral e mental (replicando representações do mundo).

Dawkins assume a posição teórica de que a cultura, a linguagem, a arte, a religião, são formas de um novo sistema evolutivo presente na espécie humana. Culturas apresentam as condições necessárias e suficientes para legitimar processos evolutivos. Culturas variam, são transmitidas de uma geração à outra e também competem pela supremacia ambiental (expressa na diferenciação cultural entre grupos e subgrupos, ou num nível psicológico pela supremacia ideológica entre indivíduos). O mesmo vale para os outros exemplos apresentados por Dawkins como traços de evolução “memética”. Esta

inteligibilidade também é assumida por Dennett (1998) ao incorporar (com alguns questionamentos quanto ao realismo desse termo) em seu sistema filosófico a noção de “memes” da obra dawkiniana. Ao negar um agente epistêmico pontual (um interprete da consciência, ou um “homúnculo”), Dennett acabou tendo de levantar a possibilidade de uma seqüência ambiental capaz de determinar em nós uma simulação de agente epistêmico, mesmo que seja na forma de uma ficção memética.

Nesse sentido não vejo incoerência em aceitar “ficções” como conceitos epistêmicos válidos, (apesar de considerar as críticas de Putnam aos argumentos representacionistas de Kim, que abordaremos logo a seguir). Como diz Dennett (1998) até mesmo uma ficção pode ser útil, e orientar respostas adaptativas mais amplas. Todo conhecimento é uma aproximação (probabilística) entre o representado e a representação, todo conhecimento é de certa forma uma ficção aproximativa (como na teoria racionalista crítica de Popper, onde todo conhecimento científico deve poder ser falseado). É claro que esse argumento é problemático (como podemos aceitar uma ficção como base de um conhecimento?) e precisa de uma justificativa mais detalhada, que apresentamos a seguir.

Sob a ótica de uma evolução biológica (genética e ecológica) não é impossível factualmente (ou mesmo uma impossibilidade lógica) supor que ficções possam ter algum tipo de utilidade adaptativa. Como salientou Gazzaniga (2006) uma capacidade cognitiva como a consciência (e suas múltiplas funções), mesmo sendo entendida como um epifenômeno físico (a representação não possui materialidade no sentido usual e não seria capaz de apresentar causalidades físicas, por não possuir ontologia física independente) pode através de sua capacidade informativa (“in – formativa”), apresentar vantagens adaptativas.

Segundo Baldwin (em Pinker, 1998), a inteligibilidade complexa do cérebro surgiu como uma adaptação (com base em mutações aleatórias) e sujeita a seletividade ambiental como qualquer outra adaptação biológica, mas que por suas características peculiares (o “nicho cognitivo” dos etólogos cognitivistas e psicólogos evolucionários) dotaram seus organismos com propriedades capazes de alterar a própria seletividade natural de sua espécie. Um exemplo seria a nossa inteligibilidade acumulada que nos permitiu descobrir vacinas que protegem nossas crianças de vírus e bactérias, alterando a seleção natural inerente a mortalidade infantil que afeta todos os grandes mamíferos e seus filhotes.

Enquanto que a grossa pelagem branca é um fator adaptativo para um urso polar apenas enquanto seu ambiente, próximo ao pólo norte manter-se coberto pelo branco gelo polar (questão muito debatida atualmente em função do aquecimento global e o desgelo do ártico). Mas a inteligibilidade humana possibilita que nossa espécie habite regiões árticas (criando roupas, e abrigos, e artefatos que nos protejam do frio) assim como regiões desérticas do Kalarari, (criando condições favoráveis através de novas tecnologias de resfriamento de cabanas e armazenamento de água). A inteligibilidade é um efeito (cerebral) que tem o poder de alterar sua causa funcional (as condições nos quais o cérebro está imerso). Ou seja, a seleção natural é alterada com o surgimento da inteligibilidade, assim como os princípios entrópicos da termodinâmica são alterados com o surgimento de estruturas vivas auto- organizadas capazes de gerar mais descendentes do que sua própria taxa de mortalidade, reduzindo informativamente seu potencial entrópico crescente.

Conhecimento é poder, como já falava Bacon. Além disso, a evolução da inteligibilidade é uma adaptação de caráter muito mais genérico e abrangente do que a maioria das outras adaptações biológicas, como afirmou Baldwin. Uma propriedade informativa (mesmo epifenomênica em termos puramente físicos) pode ser estabelecida pela evolução biológica (naturalista) juntamente com todas as suas estruturas de suporte, se puder ser selecionada pelos critérios darwinistas. E as propriedades informativas parecem cumprir tal papel. (Regras podem ter valor adaptativo, mas apenas para organismos adaptados para utilizá-las). Este epifenômeno cerebral e físico (mas não um epifenômeno informativo) se torna por si, um sistema evolutivo com propriedades distintas e capazes de dar suporte à cultura (que seria uma nova forma de processo evolutivo, como salientado acima). Assim, a causalidade do cérebro sobre a mente é de caráter analítico, derivado de suas partes constituintes, enquanto que a causalidade da mente em relação ao cérebro (e seu corpo) é uma causalidade sintética (de ordem superior) derivada de seus significados amplos. A causalidade mental é a causalidade do conhecimento, a causalidade da inteligência e, portanto não é exatamente o mesmo tipo de causalidade termodinâmica do mundo pré-cognoscível.

Mas, como informações podem independer da matéria, para que possam ter poder causal sobre essa? As regras (informações) de um xadrez e o jogo em si (conhecimento) não dependem do tipo de materialidade das peças, embora seja difícil imaginar como informações (restrições conceituais) podem tornar-se algo como um jogo (e suas múltiplas capacidades significativas), sem alguma instanciação material ou pontual. Mas o que estamos

afirmamos é que sua materialidade não esta restrita a sua substancialidade (um princípio funcionalista clássico).

A cultura é um fenômeno posterior à vida, e esta por sua vez é posterior à matéria (tal seqüência temporal de níveis de organização cosmológica e naturalística da informação será discutida em outro momento, incluindo a co-evolução da cognição e da cultura na mente humana atual). Mas estes fenômenos (matéria, vida, comportamento, cérebro, cognição e cultura) podem ser entendidos como diferentes níveis ontológicos que não são necessariamente excludentes (inteligíveis apenas dentro de sua própria epistemologia), e podem estar relacionadas temporalmente através das marcas ontológicas deixadas pela evolução.

Mas sem dúvida esses fenômenos apresentem propriedades epistêmicas distintas, o que justamente nos permite diferenciá-las e possivelmente agrupá-las em níveis distintos: representam níveis de crescente complexidade em estruturas capazes de sustentar uma condição informativa anti entrópica (que se modificou durante sua gênese e possivelmente continua se modificando).

3.6 O conceito de informação como anti entropia termodinâmica e os poderes causais do conhecimento como uso da informação

Essa condição de independência não excludente parece ser um conceito fundamental para possibilitar algum avanço interdisciplinar, e pode ser entendido como suporte hierárquico necessário para níveis mais complexos de entendimento ou para níveis cada vez mais anti entrópicos de processamento de matéria-energia. Podemos agrupar esses fenômenos em um sentido maior, de caráter evolutivo. Matéria, vida, comportamento, cérebro, cognição e cultura formam sistemas distintos que podem ser agrupados em uma hierarquia causal e evolutiva dos processos informacionais (ou anti-entrópicos).

A informação é um potencial anti-entrópico natural, é uma organização que reduz a desorganização termodinâmica, no sentido de estabelecerem (como salientou Pozo, 2005), uma forma de redução da entropia natural, mesmo sendo ela própria em parte um sistemas físicos sujeito as limitações entrópicas. Esta concepção da teoria da informação nos remete ao conceito clássico de informação estabelecido por Shannon, (1948) informação como entropia negativa. Segundo Pozo (2005), cada vez que ocorre um salto nos níveis cognitivos de conhecimento (comportamental, informativo, representativo e por fim o próprio conhecimento explícito) ocorre uma redução entrópica.

“Tudo o que se passa na natureza significa um aumento da entropia daquela parte do mundo onde acontece. Portanto, um organismo vivo aumentará continuamente sua entropia ou, como também se pode dizer, produzirá entropia positiva – e, por isso, tenderá a se aproximar do perigoso estado de entropia máxima que é a morte. Somente pode manter-se longe dela, isto é, vivo, extraindo continuamente entropia negativa do seu meio ambiente. (...) Aquilo que um organismo se alimenta é, entropia negativa”. (Schrödinger, 1944, versão de 1983, p. 111-112).

Apesar de podermos considerar então, a cultura um fenômeno legitimamente evolutivo (em termos formais e lógicos) isso não quer dizer que todas as propriedades empíricas da evolução biológica darwinista têm de estar presente na evolução cultural, sendo que esta pode apresentar características bem distintas da anterior. Sem nos alongarmos muito nestas diferenças, basta por ora, deixar claro que enquanto na evolução biológica o conceito de transmissão de características desenvolvidas por indivíduos não se materializam em mudanças na espécie. Mas esta intencionalidade lamarckista (não aceita na evolução biológica) é justamente uma das propriedades da evolução cultural. Como diz Pozo (2005), Pinker (1998) e Dennett (1998) entre outros, a evolução cultural é fortemente influenciada por fatores lamarckistas (intencionais), o que torna esta forma simbólica de evolução altamente veloz, quando comparada com sua versão biológica ancestral. Tal intencionalidade cultural é uma expressão do poder causal sintético da inteligência (uso do conhecimento) como fator de modificação do mundo físico imediato.

Dois mil e seiscentos anos separam a cultura grega clássica, que em seu auge viu surgir Sócrates, Platão e Aristóteles, da nossa cultura pós-industrial e contemporânea. Em termos de gerações humanas isso corresponde a uma média inferior a duzentas gerações. Esta diferença de tempo representa uma profunda transformação na natureza cultural do ser

humano, mas tem pouca representatividade em termos de evolução genética. Como nos fala Carl Sagan: nós não temos a menor idéia do que seja uma cultura com um milhão de anos.

A partir desta exposição, nosso problema então se desloca para a questão epistêmica de como equalizar o conceito de “evolução” entre as ciências do mundo e as ciências da mente (em suas várias formas). Como conceitos das ciências do cérebro, do comportamento, da cognição podem ser relacionados a um relativismo metodológico e conceitual que (sem desprover seus conceitos de suas propriedades fundamentais) possa também ser relacionado com conceitos fenomênicos e culturais? Como expandir os critérios de demarcação sem contradizer seus conceitos básicos? A equalização dos conceitos fenomênicos e culturais com o termo “evolução” pode ajudar a aprofundar nosso entendimento interdisciplinar?

Cosmides e Tooby (1992) afirmam que a evolução ajuda a colocar uma hierarquia lógica em uma série de fenômenos que aparentemente são distintos (como as ciências do cérebro, ciências do comportamento, ciências cognitivas e ciências culturais), e que sob esta ordenação lógica, hierárquica e temporal, assumem um significado global e integrativo. Esta argumentação de Cosmides e Tooby coloca o cérebro como base para uma sucessão de adaptações comportamentais e cognitivas, que por sua vez são determinadas por fatores genéticos e ecológicos mais amplos cuja interação ao longo do tempo evolutivo produziu uma nova forma de evolução informativa: as transformações culturais.

Podemos negar categoricamente que a fenomenologia da mente e os fenômenos culturais não têm relação fundamental com o cérebro de homens em interação? Acredito que não temos argumentos suficientes para sustentar tal posição. Mas por outro lado, posso negar a relativa independência da mente em relação ao mundo? (Afinal, posso pensar no futuro ou lembrar o passado, podendo romper o vínculo com o imediato! Mesmo assim, meu distanciamento do mundo é sempre relativo).

Também entendo ser muito difícil realizar uma redução pontual do mental ao cerebral em todos os seus detalhes (ou mesmo ao comportamental ou então ao cultural). Neste sentido, ao incluirmos os parâmetros evolutivos nessa meta análise, conceitos aparentemente distintos (ou produzidos por métodos e conceitos específicos) podem tomar lugar numa hierarquia de estados psicológicos (ontológicos e epistêmicos) que não descarte nenhuma destas abordagens à priori, mas as posicione em momentos distintos de um continuum

temporal. As diferenças tendem a se diluir em uma ontologia relacional (que se modifica em múltiplas instanciações simultâneas, mas derivadas de um processo seletivo e construtivo).

Muitos conceitos psicológicos ou relacionados em termos casuais (como cérebro, ambiente ou cultura) devem receber este tratamento analítico (equalização de conceitos), em função de sua pertinência conceitual para suas respectivas teorias e seu papel na compreensão de um quadro global dos eventos mentais. Essa relação entre diferentes conceitos pode ser legitimada, desde que se compreenda que estes diferentes campos do saber podem se orientar para um suposto mesmo fenômeno, embora de diferentes formas.

Ao supor um tipo de realismo subjetivista inerente ao cérebro, estamos fazendo um exercício conceitual e metodológico comparativo. Desta forma, podemos enumerar várias questões pertinentes a esta discussão. Os conceitos de “discriminação de estímulos” do behaviorismo poderiam ser equalizados com os conceitos de “percepção e memória” das ciências cognitivas, e estes por sua vez podem ser equalizados em termos neurofisiológicos? E estes termos naturalistas (cerebral- comportamental- cognitivo) podem ser equalizados com os termos fenomenológicos de uma “consciência pré-reflexiva”, bem como de uma “consciência reflexiva”? As dinâmicas emocionais e motivacionais dos conceitos psicanalíticos também podem ser equalizadas com esses outros termos, incluindo também o condicionamento respondente pavloviano? Sabemos que podem existir graus diferentes de equalização entre tais conceitos (compatibilidades metodológicas e conceituais podem ampliar o grau de correlação epistêmica), mas até que ponto os diferentes conceitos podem estar relacionados a um mesmo fenômeno com várias bifurcações (que seriam principalmente funcionais/relacionais)?