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CAPÍTULO 6 – CONDIÇÃO SEGUNDA: UMA ONTOLOGIA BIOLÓGICA DA

6.8 Mecanismos de memória: os algoritmos de memória de 2ª ordem (não genética).

entre teorias psicológicas?

O que vimos até agora sobre o cérebro, nessa sessão, foi que, sustentados sobre um padrão primitivo de discriminação sensorial, encadeada com um sistema também primitivo de escolha de respostas, esse sistema de informações faz surgir ao longo de sua gênese, um segundo nível de auto-organização informativa através do processamento representativo (ou intencional48). Esse nível de processamento se torna possível como uma conexão informativa (código de transdução) que ganha valor informativo relativamente

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Estamos utilizando neste texto o conceito de representação quase como sinônimo de intencionalidade. Estamos apenas querendo aproximar essas definições (oriundas da filosofia da mente) no sentido de representarem qualidades próprias do fenômeno mental (enquanto processo cognitivo, cujo significado está na relação estabelecida). Faremos isso porque nosso foco de análise está na comparação interdisciplinar destes conceitos da filosofia da mente com outros conceitos oriundos das ciências da mente, em especial a psicologia cognitiva. As diferenças conceituais entre intencionalidade e representação serão discutidas em outro momento.

independente entre o input e o output com o passar do tempo evolutivo. Surge nesta evolução biológica um sistema central de informações, para onde convergem as principais funções algorítmicas perceptivas e motoras (regras informativas que controlam respostas mediante discriminação de estímulos, que desta forma confere ao mundo propriedades cognitivas através da análise dessas discriminações) formando memórias estáveis e conhecimentos confiáveis.

Tal capacidade de conhecimento pode ser mais bem compreendida sob uma ótica construtivista em larga escala temporal (esse é o principio defendido por uma epistemologia evolutiva e informativa). Essa visão evolutiva permite compreender como a partir dos mecanismos cognitivos primários (sensório-motor) podemos desenvolver conhecimento em termos de conteúdo estrito de memória, fortemente influenciado pelo determinismo genético em repostas aos fatores ambientais específicos no inicio de seu processo (sua onto/filogênese inicial), mas que hoje é capaz de soluções culturais muito diversificadas (sua onto/filogênese contemporânea). As possibilidades atuais de conteúdos de memória (e de conhecimentos) são virtualmente infinitas.

Tal evolução informativa que possibilitou primeiro uma memória implícita e depois uma memória explicita mediada por mecanismos operantes, são fundamentados em alguma propriedade centralizadora e seletiva de informações49. Estes novos mecanismos centrais e seletivos seriam essencialmente processos de realimentação, orientados por algoritmos que fariam a transdução entre os mecanismos sensoriais e os mecanismos motores, que assumem certa independência com relação ao grau de vinculação informativa através de uma contínua realimentação (sem essa independência, muitas operações mentais não seriam possíveis, nem mesmo o exemplo de Hume da formação do conceito de causalidade). A redundância informativa parece ter alguma relação com as propriedades representativas do objeto, uma vez que para podermos abstrair alguma propriedade não evidente de um objeto, devemos com certeza analisá-lo recursivamente e nesse sentido a redundância (uma realimentação constante) poderia ser o processo capaz de fazer sobressair dos objetos

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Podemos chamar a atenção para um exemplo similar encontrado no behaviorismo científico: os modelos respondentes e operantes são fundamentalmente dois níveis de comportamentos (e, portanto teríamos uma hierarquia funcional entre níveis de comportamentos), ou correspondem ao mesmo princípio causal ou um mesmo mecanismo (e assim teríamos que explicar por que são definidos de forma tão diferente)? Ao que tudo indica, são dois modelos distintos: o modelo respondente é controlado pelos estímulos antecedentes e caracterizado como involuntário, enquanto o aprendizado operante é orientado pelos estímulos conseqüentes, e em geral são associados com atos voluntários.

estudados tais propriedades informativas não evidentes. A recursividade parece fazer parte do mecanismo construtor de verdades.

Nossa defesa analítica sobre o desenvolvimento (“evolução”) de representações mentais desvinculadas como sendo a natureza do estado de conhecimento em si, portanto, com status ontológico e epistêmico próprio indica uma direção a esta questão: o conhecimento em si, é um estado psicológico de conteúdo desvinculado (o que daria a psicologia como conseqüência, um status de ciência com objeto de estudo definido e capaz de relacionar consciência com conhecimento, significados e critérios conceituais, e desta forma passando a ter também importância na análise epistemológica).

Essa perspectiva teórica integrativa que apresentamos para a psicologia está sustentada na compreensão da evolução posterior do cérebro humano (mais recente na escala evolutiva) desenvolvida por esses mecanismos de memória dinâmica (realimentação entre módulos50), que por sua vez se sustentam em mecanismos sensórios-motores, que correspondem as origens do significado vinculado ao mundo (as bases de significância das informações representadas, o que nos remete diretamente ao mundo e sua potencialidade informativa). Esse mecanismo sensório-motor (input-output) forma o código-base, sobre o qual as operações mentais (operações neurais sobre esses códigos) vão constituir o conhecimento (como verdadeiro significado “independente”: a marca da “autonomia” relativa do mental).

O código sensório-motor deve servir de base para outros níveis de codificação neurocognitiva, servindo dessa forma como solução lógica para o problema da redução ao infinito que um código puramente formal apresenta. Por outro lado a independência desvinculada do significado tem sua origem nesses mecanismos e suas operações. A mente independente nasce da memória combinatória (realimentação) e suas operações (de um modo descrito, por exemplo, em Baars e seu “espaço global de trabalho”, ou em Dennett e Calvin e suas idéias de “processo darwinista de seleção atencional do significado”), produzindo dessa forma um sistema de significados capaz de autonomia em certas operações informativas.

Este fluxo completo de informações envolve uma seqüência dinâmica: um mundo com múltiplas propriedades sensoriais, discriminação sensorial – seleção de respostas – realimentação entre módulos de memórias e modificações ambientais através da ação

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Embora Fodor tenha sérias críticas a esta realimentação entre diferentes módulos, tal conceito é fundamental em Pinker, Mithen, Cosmides, etc.

relacionada a sistemas de memória inteligentes. Quando esses eventos e processos são colocados na forma de uma seqüência temporal orientada por regras darwinistas (algoritmos de seletividade orientando seu desenvolvimento filogenético: uma seleção pela conseqüência adaptativa) alimentadas por adequação de respostas (reforço ou realimentação ambiental positiva de termos imediatos de sobrevivência e reprodução), tal condição de demanda informativa deve fazer surgir algum critério de discriminação entre níveis de processamento. Este mecanismo seletivo entre dois níveis de processamento que em termos cognitivos chamaríamos de atenção primitiva (involuntária ou automática) seria capaz de lidar com muitos tipos de informação processada simultaneamente e selecionar os aspectos mais salientes da informação (com base na importância adaptativa ou algum outro critério).

O foco atencional deste mecanismo seletivo deveria ser a principio não consciente. Nem todo processo atencional é consciente. (Ver evidências de processamento atencional não consciente, ou monitoramento não consciente, em Gazzaniga, 2006). À medida que foram aumentando os conteúdos da memória armazenada e as capacidades de operacionalizar essas memórias se manteve constante (um desnível entre demanda e produção informativa), mecanismos seletivos se tornaram necessário para dar continuidade a este processo anti entrópico da memória não genética. Mecanismos atencionais devem surgir de uma necessidade operacional e lógica de selecionar conteúdos entre níveis distintos de processamento.

Deve ter sido este processo seletivo que possibilitou a transformação de um algoritmo comportamental respondente (como um condicionamento pavloviano) em um algoritmo comportamental operante automático (como no caso de um padrão fixo de ação dos etólogos), ampliando a conexão associativa entre os estímulos em seqüências cada vez mais complexas e distanciadas no tempo (os estímulos de um condicionamento operante podem estar bastante distanciados no tempo, bem mais que os estímulos de um condicionamento respondente). Essa contingência seletiva deve ter produzido um tipo de memória com propriedades de ativação global da informação (em relação sintética com outros tipos de memórias), que foi denominada de memória de curto prazo, no modelo padrão de Atkinson, ou de memória de trabalho no modelo de Baddeley, ou o foco da consciência no modelo de Baars.

Para que um novo tipo de memória desvinculada pudesse se tornar realidade, mecanismos seletivos (como a atenção primeiro involuntária e depois volitiva) devem surgir

antes. Um tipo de mecanismo de atenção (um reprocessamento serial orientado) deve ser necessário para compor suas funções de significação superior (ou de 2ª ordem). Através de algum processo seletivo (similar a atenção), seria capaz de “elevar” algumas informa do seu nível de significado vinculado original para um nível desvinculado e relativamente independente de operações mentais capazes de gerar novos significados.

Esta seletividade automática da atenção sobre o fluxo de processamento sensorial e de respostas comportamentais é definida inicialmente por fatores genéticos e ambientais imediatos (sendo, portanto implícita ou não volitiva). E junto com os primeiros mecanismos de memória associativa (feedback em looping ou realimentação constante) estes mecanismos de atenção seletiva primitiva (orientada ambientalmente para os estímulos mais importantes) poderiam formar o que vamos alegoricamente chamar de “arqueo- fóssil” das nossas atividades fenomênicas enquanto experiências subjetivas, um “inconsciente psicodinâmico vinculado a um ego primitivo” descrito em termos freudianos ou então em termos neurocognitivos relacionados e equalizados para incorporar uma descrição fenomenológica em 1ª pessoa51. Um possível mecanismo primitivo de seletividade de conteúdos (que para Freud era fundamentalmente orientado por impulsos emocionais), em uma teoria cognitiva é orientado para o sujeito da ação cognitiva e suas representações (muitas com forte valor ou peso emocional).

Fundamentados em uma base teórica funcionalista não reducionista, poderíamos afirmar que a consciência seria uma função orgânica (anti entrópica de 2ª ordem) produzida pela organização informativa do cérebro (anti-entropia de 1ª ordem). Ou seja, a consciência é operacional52. Assim sendo o conhecimento e minha própria identidade são fenômenos operacionais (o que seria natural como já dissemos, em uma perspectiva ontológica relacional). E assim sendo podemos perguntar como tais processos cognitivos descritos em 1ª pessoa podem ser equalizados com as descrições fenomenológicas da experiência consciente? Uma descrição fenomenológica (em 1ª pessoa) pode ser relacionada com uma operacionalização (de relações conceituais descritas em 3ª pessoa)? Alguns conceitos fundamentais do “inconsciente freudiano” (e suas noções de motivação cognitiva

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Estamos nos referindo a especificidade das vias dorsais do sistema perceptivo-visual, que processam dados visuais dependentes do ponto de vista e relacionam seus resultados computacionais com o controle inteligente da ação. Um processo diferente ocorre nas vias ventrais, que processam dados visuais relacionados com elementos de memória formando conhecimentos relativamente desvinculados (ou independentes do ponto de vista).

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Muitos cientistas e filósofos cognitivistas concordam com esta proposição acerca da consciência, entre eles, Dennett, Baars, Calvin, Baddeley e Pozo.

primitiva e atuante) podem ter relação ontológica ampla com as noções cognitivas computacionais de processamento paralelo (e sua teoria da informação seletiva e seqüenciada sustentando um novo tipo de conhecimento)?

Nesta mesma linha de raciocínio, podemos levantar outros questionamentos psico- epistemológicos. Quando analisamos estas abordagens teóricas distintas, sob o pano de fundo de uma cosmologia termodinâmica, uma evolução darwinista e mais recentemente de uma evolução cultural, os conceitos emocionais e energéticos da psicanálise não podem ser conceitualmente equalizados com os processamentos cognitivos primitivos? Em ambos os casos o processamento inconsciente é geneticamente amarrados ao cérebro e a estímulos importantes do mundo, e a relação primária entre cérebro e mundo é revelada nas emoções. Afinal, emoções não são também informações com forte impacto sobre nossas decisões?

Essas operações emocionais implícitas podem ser relacionadas aos condicionamentos respondentes do behaviorismo e aos processamentos paralelos do cognitivismo computacional? A consciência surgindo como uma atividade superior de processos não conscientes parece ser um conceito inteligível (quando em perspectiva evolutiva)? E tal perspectiva pode servir de “elo” conceitual entre teorias bem diferentes como a psicanálise, o behaviorismo e o cognitivismo? Em todos os casos a consciência (como experiência e conhecimento) é um fenômeno operacional e derivado de novas combinações de antigos processos. E isso nos leva a questão das memórias.

Quanto à evolução dos mecanismos de memória podemos afirmar que uma memória primitiva operada inicialmente por mecanismos seletivos (algoritmos de atenção focal e memória específicas entre input e output) seria cada vez mais requisitada, em termos de demanda ambiental e evolutiva, relativa à complexidade do mundo imediato e histórico, gerando demandas reais para novos mecanismos seletivos como a atenção voluntária para lidar com eventos complexos e ambíguos (muito possivelmente formando pressões seletivas para estruturas já formadas, orientando dessa forma seu desenvolvimento).

Tal evolução mnemônica pode ter se dividido, gerando dois tipos de mecanismos de memória, cujos vestígios encontramos hoje na multiplicidade de memórias e operações cognitivas que apresentamos: uma memória operacional (com capacidade de trabalho limitada a algumas poucas unidades conceituais e isenta de conteúdos a priori e definidas pelo foco atencional) e múltiplas memórias especializadas (para objetos, rostos, nomes, animais e muitas outras categorias, com uma capacidade de armazenamento muito

grande, incluindo procedimentos complexos e fatos autobiográficos encadeados historicamente).

O conceito de memória se torna importante quando falamos em auto- organização informativa. Em termos de 1ª ordem de auto-organização a memória é estruturada por uma seqüência de moléculas auto-replicadoras e codificadores de mensagens que relacionam estruturas moleculares com funções metabólicas, enquanto que em termos de 2ª ordem, a auto-organização requer uma representação abstrata ou codificada simbolicamente (que remeta não mais a um tipo de estrutura, mas sim a alguma propriedade não imediata, capaz de ser abstraída dos estímulos e suas estruturas e que projete seu conteúdo além do tempo imediato).

Mas para conseguir estabelecer essa desvinculação informativa da anti entropia de 2ª ordem, um tipo de mecanismo de memória focal, operante, atencionalmente seletiva, ou seja, um sistema de memória que trabalha sobre outras memórias. Uma memória de trabalho básica ou memória operacional primitiva deveria ser inicialmente bastante limitada quanto a sua capacidade focal (em termos de capacidade seletiva de processamento superior ou atencional), mas que deve ter ganhando espaço e importância ao longo da sua evolução, e tornando possível hoje que eu descreva a mim, como um ser (e não um evidente conjunto de funções) e me descreva significativamente em termos de 1ª pessoa, e não como um objeto qualquer do mundo.

A memória operacional primitiva deveria ser um mecanismo seletivo com um foco de atenção involuntária (orientada para o meio, ou para “fora” a partir de um “ponto de vista”) vinculada a discriminações e respostas automáticas. O algoritmo que regula o funcionamento desta atenção primitiva deve envolver organização da informação entre o input e o output, e para tal precisa ter um marcador de estabilidade estatística que orientam a urgência de algumas respostas (e assim estabelecer critérios de seletividade informativa necessários para a evolução da consciência a partir de uma aprendizagem inicialmente pré- programada); bem como a capacidade de acessar outras memórias. Com o tempo evolutivo esse marcador de estabilidade estatística anti entropicamente orientado, deve ter criado possibilidades de distanciamento temporal entre os elementos da associação (o pareamento imediato do condicionamento respondente se torna um pareamento probabilístico no condicionamento operante, que se torna atividade operante cognitiva (opera significados complexos).

Temos então um novo critério regulador: não basta apenas responder adequadamente aos desafios ambientais; é preciso registrar sua freqüência e aprender com sua variabilidade não regular. E esta memória operacional se fundamenta inicialmente em mecanismos de aprendizagem associativa, e estará como veremos em uma sessão posterior, relacionadas a memórias episódicas que demarcam conteúdos sobre nós mesmos e nossa auto- subjetividade (e segundo Baars e Nacchache correspondem ao próprio fenômeno da consciência operada por códigos processados no lobo frontal, em especial o córtex pré-frontal em relação com várias fontes de memória fixa distribuída por todo o córtex).

Mas estas atividades são operacionalizadas por um processo atencional no qual se fundamenta qualquer descrição subjetiva em 1ª pessoa (onde essa descrição ganha significado). Esta memória operacional deve trabalhar em conjunto com um banco de memórias fixas (memórias autobiográficas e sistemas semânticos), integrando-as em uma dimensão de relação entre o indivíduo (ponto de vista, orientado pela atenção, o “eu” primitivo, ou o estado latente do ser humano, implícito em sua atenção seletiva e sua intencionalidade) com a ambiente (o “não eu” ou os estímulos em si do mundo) e nosso conhecimento do mundo, que se forma nessa relação.

CAPÍTULO 7 – CONDIÇÃO TERCEIRA: UMA ONTOLOGIA INTENCIONAL DA