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Barthes constrói sua tese em outra direção, foi um dos opositores da ati- tude engajada do escritor proposta por Sartre (1999). Barthes inicia seu posicio- namento caracterizando a língua e o estilo, e afirma que a língua ainda não é a literatura, pois ela é o dado social através do qual e com o qual os homens se comunicam. A língua pré-existe à literatura, que será feita com ela e nela. O es- tilo está quase além da língua, é algo que não integra propriamente a literatura, pois está mais no autor: “ele é a coisa do escritor, seu esplendor e sua prisão, é a sua solidão” (BARTHES, 2000, p. 11, grifo do autor), afinal não se trata nem de escolha do escritor nem de reflexão sobre a literatura, simplesmente faz parte da formação do indivíduo, por isso lhe é profundamente íntimo e se situa fora da arte, já que não faz parte do acordo que une o escritor à sociedade. Esse acordo se faz através da escrita e é a escrita que engaja o escritor, através da escolha de um tom dado à forma literária. A escrita é a linguagem literária alcançando destina- ção social. E essa escrita é uma realidade que decorre da relação entre o escritor e a sociedade, mas o escritor não dá à sociedade uma linguagem que qualquer um possa consumir (ele não escolhe para quem escreve) e sim aquela que sua opção e o seu tempo lhe permitem criar. Aí reside um aspecto da dimensão social da escri- ta, pois o escritor, por mais que escolha livremente a escrita que quer construir, estará mais ou menos prisioneiro das palavras dos que lhe antecederam. Barthes pensa a escrita como um lugar privilegiado da literatura e centra, na forma es- crita, o valor da obra. O que faz da literatura, literatura, não é nem a língua nem o estilo nem o conteúdo, mas um modo de ser que é um fechamento, um quase isolamento; esse modo de ser é a espessura de uma linguagem ritual, que coloca a literatura como uma instituição.

Barthes vai construindo seu pensamento em etapas para provar sua tese. Inicia comparando a linguagem falada com a escrita para dizer que esta tem um caráter de fechamento em relação àquela, pois enquanto pela fala, a comunicação flui numa linguagem unidimensional, na escrita não há uma única intenção de linguagem, pois nela há a ambiguidade provocada por uma intenção que está além da linguagem. Para comprovar isso, ele nos remete ao romantismo francês e afirma que aquela linguagem que parece excessiva, inchaço até, era somente ade- quada às circunstâncias, pois a realidade parecia, aos escritores daquele tempo, daquele tamanho. Não caberiam poucas palavras para exprimir esse tempo que

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exige ampliação teatral. Outro exemplo dado é o da escrita marxista, cujo fecha- mento se dá não pela retórica romântica, mas pela escolha de um vocabulário pe- culiar técnico, com metáforas que funcionam como códigos. Por isso a linguagem escrita, no seu fechamento, revela-se e quer parecer um poder. Então Barthes se refere a uma escrita intelectual e cita a revista literária Temps Modernes, dirigida por Sartre (1999), em que a linguagem perde seu lugar privilegiado e transforma- -se em sinal de engajamento, porque nessa literatura – que Barthes denomina de paraliteratura – o centro está no conteúdo que comunica e não na forma que o constrói. A linguagem funciona apenas como meio para alcançar outro fim. Esse fim é uma pretensa conscientização do possível leitor, mas de fato é uma forma autoritária de escrita, fruto de regime autoritário, que no caso específico aponta mais para o indivíduo (Sartre). Para Barthes, a verdadeira linguagem da literatura é capaz de engajar o escritor sem dizê-lo. Esse seria o poder da forma, que ele vê como um objeto autônomo, pois a linguagem usada como meio é a alienação da linguagem, ela precisa estar no centro do interesse porque ela, em última ins- tância, é a coisa dita. Desse modo “a Literatura se torna Utopia da linguagem” (BARTHES, 1997, p. 73).

Traçando o caminho da escrita literária, Barthes conduz aos tempos bur- gueses, que são tanto os clássicos como os românticos, para afirmar que na pas- sagem do momento clássico para o romântico não ocorreu o dilaceramento da forma da linguagem, porque as consciências não estavam dilaceradas, já que o burguês, que então era dono do poder econômico e intelectual, passou a ser tam- bém do político e social. Mas em torno de 1850, o escritor começou não mais testemunhar o mundo, mas sim tomar consciência dele. Então passa a se recusar a retratá-lo e assume outro compromisso: com a forma. Gustave Flaubert foi pio- neiro na prosa, Charles Baudelaire na poesia, e desde então a literatura tornou-se uma problemática da linguagem. A literatura deixa de ser um valor-gênio e pas- sa a ser um valor-trabalho, fruto de uma construção, como a produção de uma joia. Então proliferaram as formas de dizer ou de negar a linguagem, como o fez Mallarmé. A partir daí proliferaram escritas modernas, ora revelando vocabulário audaz ora trabalho retórico ora aventura da forma. Então a pergunta: qual o ca- minho mesmo da literatura? Abordando a preocupação que os escritores, desde Flaubert, revelam a respeito da linguagem, Barthes salienta a busca por uma es- crita real e cita a escola naturalista como um desvio dos propósitos por substituir a frase natural pela artificial, isto é, criaram clichês literários: diziam demais para

dizer nada. Mesmo caminho adotado pelo realismo socialista francês. Na contra- mão desse roteiro de uma sintaxe da desordem, Rimbaud e Mallarmé chegaram à desintegração da linguagem e ao silêncio, e Camus alcançou a escrita neutra, em que a palavra é transparente e as forças sociais e míticas da linguagem desapare- cem, assim como o pensamento não se mostra engajado. A literatura perdeu de todo sua elegância e ornamentação.

O escritor sempre quis apreender a linguagem real e há muitos exemplos dessa tentativa de conquistar a naturalidade das linguagens sociais, um deles é, segundo Barthes (1997), Sartre e seus diálogos romanescos como uma tentativa, que resultou insatisfatória, pois aqueles longos recitativos permanecem conven- cionais. A literatura só alcançaria sua condição adequada, quando fosse reduzida a uma problemática da linguagem, em outras palavras, quando a forma fosse “a primeira e a última instância da responsabilidade literária” (BARTHES, 1997, p. 75). Barthes quer uma ética da escrita, não uma atitude ética como valor social da literatura. Ele constata que o escritor moderno faz da forma uma conduta e que a identidade de uma obra se faz por sua escrita. Mas o escritor vive um impasse: sua escrita busca uma linguagem universal – o que parece impossível à maioria – ou um não-estilo, um estilo oral, um grau zero – o que presumiria uma homogeneidade social. Resulta então que numa sociedade de dilaceramento de classes, há a necessidade do dilaceramento da linguagem, são coisas que não se separam, e a literatura é ao mesmo tempo a consciência do dilaceramento e o empenho em superá-lo. É então que a literatura alcança a condição de ser o sonho da linguagem, pelo menos assim pensou Roland Barthes, ainda nos anos cinquenta do século XX.

Vê-se que os caminhos dos dois estudiosos franceses até aqui abordados são diametralmente opostos: o primeiro quer a relação da literatura com a socie- dade através do centramento no conteúdo, o segundo compreende essa relação na forma; o primeiro propõe que por trás da criação estética haja uma atitude ética, o segundo quer uma ética da escrita, ou seja, uma atitude do escritor ante a linguagem a adotar para a obra. O interessante é que ambos querem salvar a literatura, um por compreendê-la somente se impregnada das realidades sociais, outro por condicioná-la na forma dessas mesmas realidades.

Nos anos oitenta do século XX, com o desabamento do bloco soviético, é certo que o sonho revolucionário perdeu seu horizonte, depois de ter mobilizado

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tantos intelectuais por em torno de cem anos. Entretanto o engajamento não se resume a uma tomada de posição política, antes é a busca do lugar e da função que a literatura ocupa na sociedade. Engajamento é um caminho através do qual se procura perceber se a literatura pode, e em que medida pode ser ao mesmo tempo um objeto estético e um poder de atuação social, se sua gratuidade não será ela mesma a própria sedução que leva à ação, se o fato literário pode inter- ferir na história imediata. Trata-se na realidade de um questionamento sobre as fronteiras da literatura, caso contrário, seus mais persistentes estudiosos não partiriam de perguntas, como o fizeram Sartre e Barthes (Que é a literatura? Que é a escrita? Existe uma escrita poética?), partiriam para definições e respostas. Não seria o engajamento uma maneira de levar a literatura a seus limites? Ou, por outro lado, todo escritor, algum dia há de questionar-se sobre seu papel social e a função de sua escrita. Esses questionamentos não terminam porque não há mais um muro de Berlim ou porque a utopia revolucionária foi, por ora, sufocada. A busca de motivos e valores, enfim, de uma ética faz parte do escrever. O engaja- mento acaba sendo, de certa forma, uma busca necessária, mas ao mesmo tempo uma meta inalcançável pelo escritor, pois se o assumir explicitamente, corre o risco de pôr sua literatura a serviço de outro fim – o que seria já não fazer litera- tura – mas se mostrar uma criação sem relação com seu mundo ou pelo menos o mundo, será um alienígena, o que é impossível, já que todo escritor é engajado por suas tomadas de posição, sejam quais forem.