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TRABALHO E TECNOLOGIA NA OBRA DE LYGIA BOJUNGA

INTRODUÇÃO

Trabalho e tecnologia são os dois termos que nortearão o desenvolvimento desta pesquisa, visto que têm estreita relação dentro do contexto social e econô- mico contemporâneo, daí a necessidade de conceituá-los.

O Dicionário do Pensamento Social do Século XX (OUTHWAITE et al., 1996) define trabalho como esforço humano dotado de um propósito, além do que en- volve a transformação da natureza através do dispêndio de capacidades físicas e mentais. Vê-se, pois, que trabalho difere de emprego, pois este se refere a uma relação mais ou menos duradoura entre quem organiza o trabalho e quem o rea- liza. Trata-se de uma espécie de contrato no qual o possuidor dos meios de pro- dução paga pelo trabalho de outros. A ideia de emprego reside, portanto, numa relação de intermediação para a produção de algo, que se concretiza através de um trabalho.

O termo tecnologia, de origem grega, é formado por techné, que significa saber fazer, e por logus razão. Assim, tecnologia significa a razão do saber fa- zer (RODRIGUES, 2001), isto é, o estudo da técnica, o estudo da própria ativida- de do modificar, do transformar, do agir (VERASZTO, 2004; SIMON et al., 2004). Portanto, a palavra é empregada comumente para definir os conhecimentos que permitem fabricar objetos e modificar o meio ambiente, a fim de satisfazer as ne- cessidades humanas. Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (2010), tecnologia é o conjunto dos instrumentos, métodos e técnicas que permitem o aproveitamento prático do conhecimento científico.

Como esta pesquisa tem o intuito de verificar como são representados os discursos do universo do trabalho e da tecnologia nas obras literárias da escritora Lygia Bojunga Nunes, é pertinente analisar como o trabalho e a tecnologia vêm evoluindo historicamente dentro do contexto sociocultural.

Para Bauman (2008, p. 30), o fenômeno da desigualdade entre as nações tem origem no trabalho pelo fato de conotar fonte de riqueza: “Uma vez que se descobriu que o trabalho era fonte de riqueza, foi tarefa da razão minar, drenar e explorar esta fonte de uma forma muito eficiente e jamais vista”.

Sennet (1999), por seu turno, com a obra A corrosão do caráter – consequên- cias pessoais do trabalho no novo capitalismo, conduz o leitor a questionar sobre as suas próprias histórias de vida, como está superando as suas frustrações e

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construindo suas narrativas em um sistema capitalista que valoriza a aparência, o fútil, o descartável, o individualismo e leva à desumanização do homem.

A exploração do trabalho, assim como sua utilização em uma realidade que valoriza o fútil, são questões indispensáveis a serem verificadas na produção de Lygia Bojunga Nunes, uma autora considerada pela crítica como da Literatura Infantil e Juvenil. As obras dessa autora são altamente recomendadas pela crítica, e precisam ser discutidas em âmbito acadêmico, principalmente na área de Letras ou Educação. São obras que auxiliam na formação do caráter, na humanização do ser, no conhecimento do mundo e de si mesmo, além de proporcionar ficção e fantasia, funções essenciais da literatura, de acordo com Candido (1970).

UM PAINEL

Lygia Bojunga Nunes revela uma posição singular a propósito dos termos trabalho e tecnologia, pois o primeiro ela o compreende como arte e ao segundo revela certa aversão. Isso se pode constatar em rápido painel do conjunto de suas obras. Desde as suas primeiras produções, nota-se que o trabalho está aliado ao prazer, à arte, à cultura. Em Os colegas (1972), os cachorrinhos, personagens da obra, irão trabalhar em um parque de diversões para poderem se sustentar; em Angélica (1975), o trabalho se realiza como ator de peça de teatro; em A bolsa ama- rela (1976), o desejo de Raquel é ser escritora. Além disso, nessa obra critica-se a visão do trabalho como obrigação e não prazer e a divisão de trabalho de acordo com o gênero (mulher X homem).

No livro A casa da madrinha (1978), Augusto, para sobreviver, faz número de magia teatralizada para conseguir alguns trocados; em Corda bamba (1979), o mundo da arte circense predomina a obra; em O sofá estampado (1980), Vítor, o tatu, vai trabalhar como garoto propaganda para conquistar sua amada, Dalva. Além disso, nessa obra, há menção a outros trabalhos com fins lucrativos de acordo com o sistema capitalista, como da indústria de carapaças do pai de Vítor, as empresas de Popô e de Ipo. Contrapondo, porém, a essa visão capitalista, a au- tora discute o trabalho do Inventor que transforma mágoa em sentimentos bons, como solidariedade, amizade, amor, e o trabalho da avó de Vítor, como ecologis- ta, que luta a favor do meio ambiente.

Em uma obra de contos intitulada Tchau (1984), o trabalho não é visto como um fardo difícil de se carregar, pois as personagens sentem prazer pelo que fazem. Da mesma forma, na obra Meu amigo pintor (1987), que trata da arte da pintura e em Nós três (1987), na qual o trabalho que se destaca é a escultura.

Nas obras Livro – um encontro (1988), Fazendo Ana Paz (1991) e Paisagem (1992), uma trilogia, Bojunga retrata o seu relacionamento com o livro, o fazer literário, a construção de uma obra literária, enfim, o papel do escritor. No livro Seis vezes Lucas (1995) destaca-se o trabalho da professora de Artes; em O abraço (1995) a arte do teatro improvisado; em Feito à mão (1996) é o artesanato. No romance A cama (1999) não há destaque para um trabalho em especial, mas para uma cama, que representa um trabalho artístico, artesanal quanto à sua feitura. Outro livro da autora é O Rio e eu (1999), uma belíssima obra que narra o amor da escritora pelo Rio de Janeiro. Por ser autobiográfico, relata o trabalho artístico de Bojunga, seu amor pelas artes, pelo teatro, pela literatura.

Também nas obras voltadas mais ao público juvenil, o trabalho sempre tem essa conotação voltada à arte e ao prazer, como se percebe em Retratos de Carolina (2002), em que a arquitetura é vista mais como arte que trabalho burocrático; em Aula de inglês (2006), o professor gostaria de fazer da fotografia sua atividade de sustento, mas ser fotógrafo é apenas um modo de se realizar pessoalmente de forma prazerosa; Sapato de salto (2006), em que a dança, embora seja o sustento da família, não deixa de ser prazeroso e visto como arte; e finalmente Querida (2009), que trata da arte teatral.

Definido o olhar geral da autora a respeito do trabalho, cabe alguma consi- deração sobre o termo tecnologia ou o seu uso.

Na obra Feito à mão, em um capítulo intitulado Pra você que me lê, Bojunga (1996) explica o projeto de feitura do livro. A escritora sentiu uma vontade de fazer o livro feito à mão, do princípio ao fim, como sugere o título. De acordo com ela, duas foram as razões: a primeira – tudo que gostaria de escrever estava relacionado ao artesanato; a segunda – a sua compulsão de remar contra a maré: “quanto mais a tecnologia se impõe, mais rédea eu vou dando pro meu gosto de fazer à mão” (BOJUNGA, 1996, p. 81-82).

Assim, resolve produzir seu próprio livro, mas de forma artesanal, desde o papel até a encadernação. A escritora, juntamente com uma amiga, produz papel reciclável onde suas histórias vão morar. A princípio quis escrever manualmente

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os seus textos, porém verificou que não seria possível, pois gastaria uns vinte e cinco anos caligrafando. Então resolveu utilizar a tipografia – a segunda opção mais artesanal, porém viu que não teria tempo hábil para finalizá-lo até a data prevista para o lançamento de outros dois livros programados pela Editora. As- sim, teve que datilografar em negrito em uma obsoleta máquina de escrever e fotocopiar em uma copiadora bem profissional.

Enfim, consegue produzir cento e vinte exemplares, criados artesanalmen- te pela própria autora. Entretanto, devido à exclusão de uma grande parcela de leitores do Feito à mão, resolveu publicar também de forma industrial.

A vontade da autora é manter vivo o artesão frente a uma realidade de industrialização, porém ela mesma percebe a dificuldade da tarefa, já que se vê premida a usar de tecnologia mais sofisticadas para alcançar sua meta.

Ainda assim fica clara a marcante presença nas obras, ainda que mostradas superficialmente, de um olhar peculiar sobre o trabalho e a tecnologia e, a esse propósito, cabe investigação mais profunda no conjunto da obra da autora. Aqui nos propomos a uma pequena contribuição analisando O sofá estampado.