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POESIA E TECNOLOGIA EM GAGÁRIN

INTRODUÇÃO

Heidegger (1959, p. 23), em Serenidade, texto de uma conferência proferi- da em 1955, afirma: “O pensamento que medita exige de nós que não fiquemos unilateralmente presos a uma representação, que não continuemos a correr em sentido único na direção de uma representação”. Dizia isso em relação ao aparato técnico, do qual reconhece a utilidade, porém condena o apego aos objetos técni- cos dos quais as pessoas se tornaram dependentes. Pelo menos sua condenação reside no fato de se aceitar essa realidade sem reflexão.

A propósito da técnica e da ciência, o citado pensador alemão desenvolveu singular percurso ao colocar a questão sob o prisma ontológico, ao defender que a técnica e o desenvolvimento que alcançou representam o ponto extremo do esquecimento do ser. Esse encaminhamento reflexivo encontra-se em vários de seus escritos, mas de modo mais denso e desenvolvido em A questão da técnica, publicado em Ensaios e conferências. Numa trajetória, segundo Heidegger (2010), que começa em Platão e chega a Nietzsche, passando por Aristóteles e Descartes, constrói-se a história da metafísica que, em última análise, mostra como o ser se retira do ente, ou melhor, como o desenfreado domínio da maquinação reduziu o homem à sua representação enquanto coisa. Como tal, o homem se põe perante a natureza não mais como parte dela, mas como alguém que a analisa, observa e a mede, pondo-a sob seu crivo racional de modo que a tudo pareça possível avaliar, calcular, saber. O saber se sobrepõe ao ser, o que gera a ideia de que só é o que pode ser mensurado e enquadrado no olhar do homem, que é a medida. Dessa forma a manifestação do ser, o seu dar-se é o que cabe nas referidas medidas. Esse modo de concepção do ser impediria, segundo o filósofo, de o homem viver a experiência do verdadeiro ser do ente.

Onde ficou o espaço para a dúvida, para a sensibilidade? A linguagem, tomada apenas como objeto de clareamento, como instrumento de comunica- ção objetiva, perde sua força criativa, torna-se arbitrária em sua simbologia e serve apenas para a representação. Mas sabemos que, na contramão do domínio técnico, estão as artes (é verdade que muitas das criações se dão pelo uso das competências técnicas desenvolvidas) com suas propostas avessas à lógica e a ela resistentes. A literatura – ainda que se tenham livros eletrônicos – e especial- mente a poesia – embora se possa encontrá-la em blogs – estão constantemente desafiando o raciocínio monológico e monolítico. A palavra do poeta não é o

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vocábulo acostumado e o escritor é aquele que vai procurar as palavras “lá onde elas urinam na perna”, para citar Barros (1997, p. 47). Parafraseio ainda Lima (1954), que há quase um século já pensava a palavra poética como um refluir para a fonte, uma busca do original. Penso que Heidegger vislumbrava nas artes a possibilidade de resgate do ser.

Os formalistas do início do século XX atribuíam a literariedade de um texto ao estranhamento que podia causar nos leitores pela escolha vocabular de sua ela- boração, por suas estruturas sintáticas ou formais, pelo inusitado arranjo dos sons. Esse olhar centrado no objeto artístico, em suas formas intrínsecas e em sua cons- tituição estética se enriquece sobremaneira quando agregado a um viés sócio-his- tórico que permite compreender a poesia como resistência à ideologia dominante, conforme a pensou Bosi (2000). Em situações de opressão há um desencadear de “forças profundas de resistência” (BOSI, 2000, p. 204) que geram manifestações artísticas mitopoéticas, como propôs o referido professor da USP, mas se a voz do poeta que canta essas dores parece “mais forte ou mais clara que o gemido da cria- tura opressa, é porque desta, e só desta, recebeu o fôlego para gritar” (BOSI, 2000, p. 215). A poesia, pois, não é apenas um dizer subjetivo, tampouco uma mera ma- nifestação de emoções pessoais, mas sim uma tocha acesa na noite que possibilita a aproximação entre as pessoas e a visualização da realidade por um viés incomum que leva à reflexão. Enfim, “a poesia traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual, ou contra a qual, vale a pena lutar” (BOSI, 2000, p. 227).

O desenvolvimento das tecnologias (não pensaria em retornar à situação anterior a elas) não só tornou o homem dependente delas, mas também gerou o seu intenso consumo, já não mais apenas como necessidade, mas como escravi- zação. A cada dia se precisa de algo novo para satisfazer um vazio que não será nunca preenchido pela posse ou aparente domínio do novo objeto de distração. “O Homem da era atômica estaria assim entregue, de forma indefesa e desam- parada, à prepotência imparável da técnica” (HEIDEGGER, 2010, p. 22). É preciso espaço para pensar, é fundamental o tempo da meditação a fim de que se possa questionar ao menos para compreender o que é o homem nesse contexto em que a maquinação se apossa dos espaços de reflexão.

Após Segunda Guerra Mundial, com a rivalidade soviético-americana, exa- cerbou-se o desenvolvimento de produtos de tecnologia, tanto para gerar mais bem-estar como para mostrar competência e superioridade. Instalou-se a Guerra-

-Fria, que aqueceu os cofres das indústrias ocidentais e gerou gastos exorbitantes aos governos envolvidos no desenvolvimento de armamentos de ataque e defesa, com investimentos nos primeiros computadores, assim como uma corrida espa- cial no intuito de conquistar novos espaços para além da Terra, pois esta já estava polarizada com territórios propensos a um ou outro lado.

É nesse contexto que, no início dos anos sessenta do século XX, com as novas máquinas pensantes que assustavam e também causavam admiração e es- panto, que surge no Brasil uma obra de Ricardo (1976) denominada Jeremias sem chorar, livro de poemas repletos de motivações em torno de tecnologias, trabalho e consumo, como o poema Sol de metal ou Ciência & Inocência ou ainda Ladainha.

O interesse deste estudo está centrado no poema Gagárin, aliás, um dos textos mais lidos e discutidos deste autor de longa e rica produção na história do Modernismo brasileiro desde a sua origem.