• Nenhum resultado encontrado

Dividido em três partes, o poema Sol de metal faz uma leitura do modo como se organiza uma sociedade de consumo a partir de duas visões diferentes: o que a propaganda mostra versus o que ela esconde.

A primeira parte do poema trata do que é exposto ao homem, ao consu- midor. O poema sugere imagens de uma situação genérica ocorrida em qualquer lugar: os enormes edifícios, disputando espaço com a lua no céu, representando os grandes centros; o anúncio brilhante invadindo os olhos do transeunte, antes as janelas da alma, agora uma porta bombardeada por informações; a árvore de natal, símbolo de uma festa de consumo, cujos enfeites luminosos se assemelham aos sedutores anúncios coloridos colocados no alto de um prédio, movendo-se so- zinhos, como a lua, e chamando mais atenção que ela. Toda uma situação criada para seduzir quem passa na rua, para satisfazer seus desejos de animal lírico-vi- sual, uma substituição do natural pelo artificial.

Isso, porém, é apenas um lado, o lado mostrado para a sociedade. Ainda na primeira parte, o eu-lírico ressalta esse fato: “Mas quem vê a face / do anúncio / não lhe vê a outra face / da lua. / O sol de metal que está / atrás do anúncio”. A outra face da lua (retomando a ideia de que, para quem observa a partir da Terra, só é possível ver um dos hemisférios lunares) funciona como uma metáfora para introduzir a segunda parte do poema: para o transeunte só é possível ver uma das faces dessa organização de consumo, sendo que a outra permanece oculta, o lado escondido do anúncio. O eu-lírico encerra a primeira parte falando sobre “A máquina / que é um dédalo de dedos. / Ou de dedos sem dedal”, propondo o que podemos encontrar atrás do anúncio: no trabalho da máquina, pois esses dedos não precisam de dedal, e são muitos, uma confusão de dedos, a produção desen-

freada na fábrica – denominada “N. S.ª / da Anunciação” – na qual se produz o que é vendido pelo anúncio.

A segunda parte do poema mostra o que é escondido atrás do anúncio. A primeira estrofe retoma o início da primeira parte do poema. Lá, temos “uma lua se automovendo” enquanto aqui verificamos “Uma peça se automovendo / mas centenas de outras / se automovendo antes dela / atrás do anúncio”, em uma ligação bastante clara. Logo, essa lua – não mais a lua, corpo celeste, satélite na- tural – é convertida em uma das peças da engrenagem do sistema de produção. Essa é a “lógica terrível”, na qual tudo se transforma em um meio para alcançar os fins do consumo, sem preocupação alguma sobre como isso será alcançado. Mas, afinal, o que se encontra atrás do anúncio? Os versos (“A lógica terrível / em que as peças se engre- / nam / umas concluindo / o que as outras / dizem”) nos mostram que o grande mecanismo é composto por operários – peças combinadas em uma cadeia hierárquica, o que justifica a separação da palavra engrenam em dois versos diferentes – e seu “suor sujo escorrendo / em vogais de óleo” pelo ros- to. O operário é apenas usado pela “lógica terrível”, pois ele está nas mãos de N. S.ª da Anunciação. Não no sentido de entrega dos problemas para uma divindade superior, mas no sentido de estar sob o controle da fábrica.

Enquanto as duas primeiras partes do poema mostram os dois lados do anúncio, a terceira parte é responsável por expor como se dá a relação entre esses lados. Aqui, os versos são ligados pela ausência de pontuação, criando um ritmo acelerado, desgastante, dificultando a sua compreensão. Esse ritmo permite várias interpretações: é o ritmo da jornada de trabalho do operário; é o ritmo da produção e do consumo; é o ritmo da própria vida urbana, rápida, confusa, na qual o operário – o mesmo que está atrás do anúncio – é também o transeunte lírico-visual, aquele feito para se convencer. Assim, os versos (“o operário núncio / de um mundo só / os produtos em série / em procissão uns atrás / de outros ao fim / da paisagem em viagem”), podem se referir tanto aos próprios bens de consumo quanto ao próprio operário-consumidor, pois existem algumas semelhanças entre eles: a produção os organiza (operários e produtos) em fila, o produto sendo montado e o operário (um produto dessa organização) realizando a sua parte da produção. Após isso, a pro- paganda organiza os transeuntes em filas nas portas das lojas, ávidos de consumo. Dessa forma, a própria figura do operário faz a previsão do futuro, um futuro feito apenas por produtos em série – pois até o fim da paisagem, o que se vê é a fila de produtos – e também um futuro em que o homem se torna uma figura solitária, consequência da ânsia pelo consumo daqueles produtos, tornando-se uma máqui-

58

na de consumo, esquecendo-se do ser homem e valorizando exacerbadamente o

ente homem, isto é, apenas sua necessidade física. A partir dessa valorização, veri- ficamos um processo de coisificação do ser humano, uma vez que já não se separa o ser do ente: acredita-se que o ser está no ente, ou melhor, é o ente e que, alimen- tando este, alcançamos aquele. A falta dessa distinção impossibilita a reflexão, o que nos leva, então, ao homem coisificado.

Merece também consideração o título do poema, Sol de Metal. Da natureza, quando existe um contato entre ela e o humano, pois o homem precisa conhe- cê-la para poder retirar dali a sua sobrevivência, lembramos a necessidade de respeitar o tempo exigido por ela: os ciclos para plantar e colher, determinados pelas estações, pela chuva e pelo sol. Esse mesmo sol, fornecendo não só o calor, mas também a luz para que a colheita seja possível, e, na sua ausência, o tempo do descanso, da recuperação. Ora, a necessidade da produção rápida faz com que esses tempos não sejam mais respeitados. Temos, então, duas interpretações para o título do poema. Na primeira, a própria lua passa a ser também um sol (“de me- tal por causa da sua cor”), pois já não existe uma diferenciação entre os períodos de tempo dados pela natureza. Na segunda interpretação, por outro lado, o sol é apenas uma metáfora para a luz artificial utilizada nos recintos fechados de uma fábrica – portanto, um sol de metal, uma lâmpada. Porém, em ambas as análises, a conclusão a que chegamos é a mesma: devido à evolução do processo de produ- ção e também da tecnologia, as necessidades da natureza já não são mais respei- tadas. Não é preciso a luz solar para o trabalho, tampouco para o contato entre homem e natureza, já que se produzem plantas em estufas, sob luz artificial.

“Afinal a noite é grande / noite industrial”. A noite é um símbolo de fim, de encerramento. Mas é um encerramento de quê? Percebemos que não é o encer- ramento da produção, pois essa já não depende dos períodos de dia e noite para acontecer. Retomamos o verso imediatamente anterior ao citado neste parágrafo: “da paisagem em viagem”. A viagem é a mudança, a transformação de toda a pai- sagem em um híbrido natural-mecânico. Isso fica bastante claro ao retomar outro aspecto dessa parte do poema: a fusão de eventos naturais – a manhã, sons dos pássaros, as lágrimas – com outros elementos artificiais, mecânicos – o trinado é causado pelas máquinas de escrever, o gorjear é o do comércio, as lágrimas são efeito do gás lacrimogêneo. Essas colocações mostram como se dá a transforma- ção da natureza, a sua mecanização, sua artificialização.

Por fim, temos a figura da noite como a Nossa Senhora da Anunciação, pois ela, assim como o operário, é responsável por trazer as notícias de como é o

destino para o qual a humanidade caminha. Então vemos o jogo com a palavra anúncio: ao mesmo tempo em que a noite carrega a mensagem desse evento fu- turo, também é ela, a “noite industrial / cercada de letreiros / resplandecentes”, a responsável por realizar o anúncio publicitário, incentivando o consumo e, assim, perpetuando o processo desenfreado da produção e consumo.

Tendo em vista o que foi exposto até aqui, podemos concluir que o poema tem por objetivo explicitar como funciona a “lógica terrível” que organiza essa sociedade, a qual incentiva o consumo desenfreado e, por consequência, a pro- dução. O homem sente a necessidade de se completar. Porém, ele não sabe como fazê-lo, então busca consumir nesse processo. O problema reside no fato de que essa situação apenas alcança o ente homem. Esse ente “foi feito para ver / (e se convencer)”, é para esse ponto que os anúncios, que são apenas uma engrena- gem de toda uma indústria, se dirigem. O que ocorre a partir desse processo é o esquecimento do ser, justamente o que o ser humano deveria buscar e que não é tão simples de satisfazer, ao contrário do ente.

Isso é o que ocorre no lado visível do anúncio. Porém, o esquecimento do

ser também se dá no lado escondido do anúncio, pois os processos de produção são desumanizadores. Nem transeunte nem operário questionam ou refletem, suas ações são direcionadas à produção e consumo visando ao ente humano, e isso não basta, o que apenas aumenta o ritmo do processo. Como consequência, vemos a maquinização de toda a paisagem, o que inclui o homem. A necessidade, por um lado, de suprir os anseios do consumo; por outro, de produzir o que seja consumível, sendo que os dois se completam, relega, a segundo plano, o ser. Não só o ser homem, mas também o ser natureza, até porque aquele está neste, e ambos utilizados para satisfazer os anseios do ente homem.

Assim, a arte cumpre sua função social, como compreendia Heidegger (2010), ao permitir ao homem refletir sobre sua própria condição e contribuir para o resgate do ser.