• Nenhum resultado encontrado

Os deslimites da palavra, segunda parte do livro, iniciam pelo que o poeta denomina de “Explicação desnecessária”. Essa explicação, entretanto, não é va- zia, mas muito bem planejada. Começa por lembrar a “enchente de 22, a maior de todas as enchentes do pantanal”. Podemos ficar com o convencional da infor- mação e aceitá-la passivamente, entretanto não há como não nos reportarmos à Semana de 22 – embora em São Paulo – e sua cheia de novas proposições para as artes nacionais. A explicação apresenta um canoeiro que teria vagado sobre as águas por três dias e noites sem comer nem dormir. Durante esse período, o canoeiro teve um “delírio frásico”. O poeta diz que encontrou os escritos em Corumbá, num caderno, cerca de 200 frases soltas que levou para casa e pas- sou anos “penteando e desarrumando as frases”. O poeta apresenta isso como uma estórea. O termo aparece sutilmente na frase até para passar despercebido e angariar ares de veracidade, mas a palavra aponta para estória, termo que já indicou o ficcional, não o histórico. Logo, toda essa explicação inicial não é inocente como pode parecer. Apropriar-se, aliás, de possíveis textos e ideias de outro tem sido uma técnica narrativa frequente, basta lembrar Em Liberdade, de Silviano Santiago, para ficarmos com exemplo importante. O ingrediente, porém, que merece maior atenção nessa explicação é o nome dado ao canoeiro: Apuleio. Nenhum canoeiro pode chamar-se assim impunemente. Lucio Apuleio, escritor romano, autor de Asinus Aureus (Asno de Ouro) relata a história de um homem que, após aventura malsucedida, se transforma em burro, vive muitas peripécias

184

querendo voltar a ser homem. Então aprende, como burro, o que significa ser homem. Finalmente, do personagem nasce o narrador que conta sua experiência. Os relatos de Apuleio (2010) – o escritor – são representativos de uma literatura carnavalizada, que rompe com as convenções e traz à flor da palavra o espírito dionisíaco. Além disso, é um relato em que autor e personagem se confundem, de sorte que hoje já não se sabe se Lucio Apuleio era de fato o nome do escritor, pois Lucius também é o nome do personagem.

Cremos que nada disso pode ser gratuito e investigamos esse diário das águas como um roteiro de rupturas, um caminho de criação poética que se propõe olhar pelos olhos do simples o inusitado da experiência vital, como o fez o escritor latino. A organização é de diário marcado por eventos mágico-poéticos. Para cada dia há vários (poemas) acontecimentos. O DIA UM começa com a descrição de uma cheia. Nesses versos iniciais vale destacar que o canoeiro está à mercê das águas: tudo está molhado, não há horizonte, pois só enxerga “a fronteira do céu”, a “canoa é leve como um selo” e assim o canoeiro voga “à imagem de uma rolha”.

O segundo poema do primeiro dia é de importância capital, pois nele o canoeiro se apresenta: “Eu hei de nome Apuleio. / Esse cujo eu ganhei por sacra- mento”. Eis o nome institucional, que faz a remissão ao poeta romano. Mas logo em seguida: “Meu vulgo é Seu Adejunto”, “Não tenho proporções para apuleios”. Naturalmente a modéstia fala na voz do poeta que tem plena consciência do que faz, pois seu canoeiro insiste: “Meu asno não é de ouro”. É como se o poeta dis- sesse para pensar sua arte aos moldes da de Apuleio, mas como um adjunto, não o próprio nome. Entretanto conclui o poema afirmando que não é possível a uma pessoa “esconder as suas natências”, o que corresponde a afirmar que, por mais que uma pessoa possa ter vivido, como o personagem de Apuleio – uma experiên- cia de burro – não deixa de ser pessoa. Isso aplicado ao pensamento de Barros sobre a criação poética permite compreender que não dá para adquirir natureza de coisa, pois sempre permanecerá presente a natureza de gente, assim como o canoeiro Apuleio é ao mesmo tempo seu nome oficial e seu vulgo. Isso sugere que a palavra poética em Barros, por mais que busque a originalidade para constituir as experiências das coisas e pessoas, sempre estará presa também aos limites da palavra instituída.

Apuleio é uma espécie de Noé, em cuja barca está só, mas a vida permane- ce ao seu redor. Essa enchente é sua travessia. Do primeiro dia, até o quarto dos

sete poemas, prevalece a descrição das dificuldades de sobrevivência na região pantaneira, mas já no quarto poema há encaminhamento novo: “Sou puxado por ventos e palavras”. O canoeiro aqui começa a se confundir com o poeta. É certo que, à mercê das condições climáticas, fosse conduzido pelo vento, como também as palavras de suas anotações o impulsionam, mas as palavras, como escreve o poeta na “Explicação desnecessária”, foram desarrumadas e a partir de agora elas começam a aparecer melhor como exercício de criação. No poema cinco há ainda uma retomada da ideia de pequenez: “Não tremulam por mim os estandartes. / Não organizo rutilâncias / Nem venho de nobre nobrementes”, mas à ausência de grandezas se contrapõe uma pessoalidade característica: “Eu sou meu próprio estandarte pessoal. / Preciso do desperdício das palavras para conter-me”.

A partir daí o delírio verbal retorna predominante, com versos de ampli- tude significativa e imensa originalidade, como ocorre com os versos soltos, en- tremeados de reticências, no sexto poema: “Tirei as tripas de uma palavra?”. O verso é uma pergunta, mas que revela o método do poeta: não ficar na superfície dos vocábulos, nem na sua forma nem em suas proposições significativas, como se pode perceber em “A chuva deformou a cor das horas” “Não uso de brasonar”. Como escreve o poeta: “Do que não sei o nome guardo as semelhanças”, ou seja, se a palavra conhecida não dá conta da coisa, vai outra que se pareça mais com a situação íntima que quer revelar e para isso usa a oralidade: “Minha boca me der- rama?”, “Respeito as oralidades. / Eu escrevo o rumor das palavras”, mas afiança: “Não sou um sandeu de gramáticas”. Prova de seu conhecimento e capacidade de manipulação da linguagem está no verso: “No fim da treva uma coruja entrava”. Entravar ou entrar? Um termo de significação convencional, o outro remete a uma inusitada experiência.

A propósito das técnicas usadas para ampliação significativa das palavras, são numerosas as sinestesias: “Escuto a cor dos peixes”, “Cheiroso som de asas vem do sul”, “Ouço o tamanho oblíquo de uma folha”, “Quero apalpar o som das violetas”, “Este horizonte usa um tom de paz”, “A cor de uma esperança me garrincha”, “O ninho está febril de epifanias”, ”Não sei mais calcular a cor das horas”, “Quero apalpar meu ego até gozar em mim”, “Durmo na beira da cor”, “Um perfume vermelho me pensou”... Isso para citar algumas apenas. Todos es- ses versos provocam o deslumbramento do leitor, que para ante o inesperado da associação de termos para buscar chão, mas o terreno é sempre fluido.

186

Algo similar ocorre com as oposições, também elas descaminham as com- preensões: “Ando muito completo de vazios”, “amanheço ontem”, “A minha inde- pendência tem algemas”, “Vou encher de intumências meu deserto”, “Sou pessoa aprovada para nadas”, “As coisas me ampliaram para menos”, “É a sensatez que aumenta os absurdos?”, “O ocaso me ampliou para formiga”.

Outra intensa exploração do novo está nos muitos neologismos. Estes com possíveis significações mais palatáveis, mas ainda assim estremecem o óbvio e geram instabilidade: “Tenho vanglória de niquices”, “Dou nacedade às palavras”, “Agora biguás prediletam bagres”, “Vou desmorrer de pedra como um frade”, “O infinito do escuro me perena”, “É tudo tão repleto de nadeiras”, “Me mantimento de ventos”, “Um sabiá me aleluia”, “A luz de um vagalume me reslumbra”. Esta última palavra permite vários casamentos que remetem sempre a oposições (res- plende + umbra), (reluz + umbra), (res + luz + umbra), (re + deslumbra).

Cremos que essas três técnicas são as mais presentes na elaboração poética de Barros e em conjunto elas se complementam para constituir um dos processos de sua criação: a desestabilização da convencionalidade das palavras. Certamente que para além disso está a poesia, e de outras habilidades se utiliza o escritor para desvelar sua visão de mundo e de arte. Como destacado, uma dessas habili- dades está em o eu lírico se aproximar do pequeno para revelá-lo, ou manchar-se das experiências que quer configurar em linguagem: “As sujidades deram cor em mim”. Barros apresenta, assim como seu personagem nessa narrativa poética que é a travessia de Apuleio, sua arte sem grandes aparatos e sensacionalismos: “Não uso morrimentos de teatro”, “Minha luta não é por frontispícios”. Mas a propo- sição de ausência de grandiloquência tanto na linguagem como na revelação do mundo, acaba monumentando (termo cunhado no Livro sobre nada) o pequeno, aquilo que ele denomina de meu deserto, ou que no Livro sobre Nada é o fundo do posso, ou seja, o que não se vê, e que para ser percebido requer aproximação. “Palavra que eu uso me inclui nela”, escreveu o poeta, logo sua lingua- gem revela uma intensa pessoalidade, é a presença do pessoal no social, pois a linguagem se faz dessa mútua interferência. O poeta, entretanto, se diz “melhor preparado para osga”, pois em suas “memórias enterradas / Vão encontrar mui- tas conchas ressoando”, o que não sugere um fechamento, mas um permanente eco. Aí está uma imagem que aproxima a poesia de Barros da experiência que constitui em seus versos: a coisa em si lhe foge, mas sua voz que “inaugura os

sussurros” continua ecoando como se em busca de ouvidos para ouvir, uma voz à procura da palavra inaugural.

Assim como na história de Apuleio autor e personagem se confundem, nos versos de Barros, enquanto seu Apuleio faz a trajetória sobre as águas em busca de um barranco, o poeta conduz o leitor por uma reflexão sobre o poético e a vida, e como barqueiro perdido na enchente, o poeta revela o que é a solidão do homem e a poeticidade que se pode extrair desse isolamento em contato apenas com as coisas comuns da natureza. Aí se desvela a incompletude e pequenez do homem ao mesmo tempo em que sua grandeza: a capacidade de percepção cons- ciente de onde se encontra e a possibilidade de preservar em linguagem sua his- tória, ainda que as palavras para isso sejam instrumento de eficiência limitada.

A propósito da solidão e da poeticidade dela extraída, tomamos versos des- sa trajetória sobre as águas para retratá-la. “Daqui só enxergo a fronteira do céu.” “Eu hei de nome Apuleio.” “Não uso alumínio na cara.” “Sou puxado por ventos e palavras.” “Sou muito comum com pedras.” “Tenho ombro a convite das garças.” “Do que não sei o nome eu guardo as semelhanças.” “Só sei o nada aumentando.” “Aceito no meu fado o anoitecer.” “Ó solidão, opulência da alma!” “No ermo o silêncio encorpa-se.” “Estou só e socó.” “Essas coisas me mudam para cisco.” “O fim do dia aumenta meu desolo.” “O infinito do escuro me perena.” “Tem um chei- ro de malva esta manhã.” “Espremida de garças vai a tarde.” “Chegam aromas de amanhã em mim.” “Cresce destroço em minha aparência.” “Alguns pedaços de mim já são desterro.” “Diviso ao longe um ombro de barranco.” No conjunto, esses versos extraídos um de cada poema traçam a trajetória de Apuleio, assim como o identificam e descrevem sua solidão. No começo, a identificação na imen- sidão das águas, as competências... Depois o silêncio e a pequenez a que se segue alguma esperança, por fim o desmantelamento físico e o barranco onde apoiar a canoa, o reencontro com os homens. Apuleio, perdido numa imensidão de água, escolhe ser Seu Adejunto, pois personagem principal é a vida. Como Adejunto se identifica com Barros, porque substantiva deve ser a poesia.