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O VALOR DA FORMA E DO CONTEÚDO

Nos estudos a propósito da relação entre literatura e sociedade, não é pos- sível desenvolver análises do texto literário abordando nem somente o conteúdo e tampouco apenas a forma, caso se queira ver integralmente a obra, além do que, só é possível entender uma obra se com o texto se integrar o contexto. O contexto, esse elemento aparentemente externo à obra, esse elemento social, não importa como significado da obra ou como causa, mas como parte integrante da sua própria estrutura, tornando-se, portanto, também elemento interno. Uma obra será mais bem resolvida na medida em que o social não apenas forneça matéria para a criação literária, senão também que se constitua como essencial na obra como ingrediente artístico. É certo que se possa ver no elemento social a matéria que permite identificar certo tempo histórico ou as ideias de uma época, mas essas observações pertencem mais à sociologia ou à história que à literatura. Sartre (1999), porém, pretende o social como causa e como consequência da obra, isto é, entende haver uma motivação social que leva o artista a dizer o mundo, e que existe um interesse social: tocar a sensibilidade do leitor e lhe exigir uma atitude. Mas para o pensamento formal, o elemento social só cabe na obra como parte de sua estrutura, nem como causa nem como finalidade. Ou seja, o motivo trabalho na poesia moderna brasileira não funciona somente como assunto para os poetas, mas cada poeta, na medida de sua competência, realizará melhor sua poesia quando e se conseguir internalizar na forma de construir poeticamente o tema a própria forma externa do trabalho na sociedade. Se o trabalho socialmen- te constituído em 1925 se apresentar caótico e desorganizado, há que o poeta configurá-lo artisticamente assim, então o elemento social estará integrando à obra, caso contrário será apenas apresentação de um tema a que faltará a própria

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alma. Dito de outro modo, a apreensão da realidade é individual, esse individual, porém, precisa universalizar-se por meio da internalização absoluta desse con- teúdo, de tal modo que deixe de ser uma representação do social através do sujei- to, para tornar-se uma força espontânea do sujeito que se revela em linguagem. Não a linguagem como meio para dizer o mundo, mas um sujeito que “soa na linguagem, até que a própria linguagem se faça ouvir” (ADORNO, 1975, p. 206)5,

assim o social da poesia estará exatamente naquilo que não é social – o indivíduo – que se universaliza.

Por outro lado, segundo Culler (1999), para realizar uma crítica integral da obra se faz necessário não a olhar apenas por um ângulo, mas sim unir os aspec- tos linguísticos, sociológicos ou psicológicos que possam conduzir a uma leitura coerente. Será preciso, pois, integrar à análise da obra literária os estudos que se denominam genericamente de teoria, isto é, estudos em outras áreas (psicologia, sociologia, história...) que permitam investigação na literatura. As análises for- malistas são avessas a isso, pois veem a obra como um universo fechado. Esses estudos, embora importantes para avaliar as qualidades específicas da constru- ção literária, são incapazes de dimensionar principalmente o valor histórico da obra. Naturalmente que se está aqui olhando a obra pelo ângulo da análise crítica e não em função de sua produção.

Como compreender que o ingrediente social deva ser visto como elemento da estrutura da obra? A questão está relacionada ao que é o artista: nem reflexo nem resultante da sociedade, mas indivíduo pelo qual o que passa da sociedade se transforma, pois ele recria e não apenas devolve. Há, portanto uma influência da obra de arte na sociedade, assim como desta naquela. Que a arte é expressão da sociedade é uma verdade comum e já há muito constituída; mas se ela estiver interessada nos problemas sociais, estará submissa a um valor moral ou político, o que a colocaria como meio para outro fim que não o de arte, no que se identifica parcialmente com o pensamento de Sartre (1999), já que ele defende o imperativo moral como motivação do artista, não como objetivo da arte.

Ao estudar a influência do meio sobre a arte, se faz necessário ressaltar os fatores socioculturais importantes que constroem a influência: a estrutura social, os valores ideológicos e as técnicas de comunicação. A estrutura social define a posição social do artista e dos grupos de leitores; os valores ideológicos inter- 5 Para Adorno (1975), a sociedade se revela na poesia não por uma intenção direta do poeta, mas espontaneamente, pelo aprofundamento do eu em si mesmo que se transfigura em linguagem. Assim o poetizado representa o social, não a ideologia social, até porque, para o autor, a arte expressa o que a ideologia encobre.

ferem na forma e conteúdo da obra; as técnicas de comunicação atuam sobre a construção e repercussão da obra. Desse modo se definem um artista que cria dentro de padrões de seu tempo, uma obra com temas e formas, e um público so- bre o qual a obra age. Mas isso não é suficiente, é preciso que se saliente a neces- sidade da intuição tanto do criador quanto do leitor, pois a obra não é transmis- são de conceitos ou noções sobre a vida, mas expressão de realidades ficcionais radicadas no artista6. A poesia, por exemplo, só tem um conteúdo no momento

em que adquire uma forma, ou melhor, no instante em que se expressa, quando a palavra é a um só tempo forma e conteúdo, aquilo que Sartre (1999) denomina de coisa e não de signo. Certamente que não se defende que a obra é apenas vivência do artista, afinal o artista busca na vida social os temas e formas de sua obra e mais, se amolda ao público. Há, portanto, uma interação entre esses elementos. Por outro lado, também é verdade que haja obras em que a relação com o público seja mais seletiva, pois elas exploram recursos simbólicos novos que dificultam os leitores num primeiro momento7.

A propósito da posição do artista nas relações entre arte e sociedade, há sobejas evidências de que, desde há muito na história humana, ele ocupa papel específico, como de um indivíduo que assume a iniciativa de criar, mas em acordo com a necessidade da própria sociedade em que está inserido. Esse indivíduo criador só conseguiu maior autonomia, tornando-se profissional e vivendo da arte nas sociedades mais recentes. Em sociedades primitivas essa função era rara.

A obra de arte, por seu turno, é um objeto fruto do artista integrado no seu tempo e se configura de conteúdo e de forma. O conteúdo passa pela força das grandes ideias e movimentos sociais, religiosos ou revolucionários da huma- nidade, enfim aquilo que, por razões quer íntimas quer históricas, se configura para o homem como algo que suscita a sensibilidade e invoca grandes emoções, e aí cada época tem seus motivos e temas. Assim se compreende por que Camões usou, no século XVI, o motivo das navegações marítimas para contar a história grandiosa de seu povo. A forma da obra depende do tempo e do lugar. Em épocas anteriores à escrita, a poesia provocava sensações auditivas, daí os estribilhos e as repetições; em tempos mais presentes, assumiu configuração visual, pois passou a ser lida e adquiriu formatos comunicativos. Em suma, a forma também está circunscrita à sociedade em que a obra é criada. O público, modernamen- 6 Antonio Candido desenvolve estudo nessa área em Literatura e Sociedade.

7 A isso, Antonio Candido chamou de arte de agregação e arte de segregação. Enquanto as primeiras repercutem os símbolos conhecidos e agregam leitores, as segundas renovam as artes e criam novos desafios a um público de iniciados.

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te falando, pode ser uma massa informe, de gostos e motivações heterogêneas que influenciam os artistas, alguns deles produzindo para atender a esse público e assim conquistar os benefícios comerciais daí advindos. Poucos, porém, são os artistas que conseguem produzir imunes ou quase imunes às influências do gosto e da moda, mesmo quando pensam estar fazendo uma produção livre, a sensibilidade, espontaneamente, se configura conforme os padrões, isso porque se introjetam as normas sociais, mas o artista tem a sensação sincera de estar sendo original. Na verdadeira obra de arte predominam impulsos pessoais sobre os ingredientes sociais a que se combinem, mas sempre estará presente a ação do meio. Também é importante salientar que é o público que dá sentido e realidade à obra, por isso há autores incompreendidos em seu tempo, mas a quem a poste- ridade pode conferir valor, porém sempre é o autor o agente que desencadeia o processo de relação que o público fará com a obra. Público, aliás, que não passa imune pelas obras, pois das obras podem nascer correntes de opinião e grupos de leitores com interesses comuns, desenvolvendo estudos específicos sobre pa- drões estéticos ou morais.

Em suma, Sartre (1999) fornece a atitude do artista, exigindo dele cons- ciência sobre o ato criador e sobre a força desse ato em relação ao leitor. Essa consciência, embora não determine os temas que podem ou devem ser aborda- dos, já que isso depende da liberdade do autor, implicitamente sugere que tra- tem das questões de seu tempo, com o intuito de mudá-lo pela ação consciente também do leitor. O escritor é livre, o leitor é livre, mas não tão livres, pois estão amarrados às circunstâncias do seu contexto sobre o qual devem agir. De outro lado vem a contribuição da necessidade de uma ética da forma: o artista precisa tomar consciência de que ele produz arte da palavra e de que é na linguagem que se constitui seu ato criador, que o engajamento, enfim, se faz na escrita, pois “não há pensamento sem linguagem”, portanto, só na escrita o pensar se con- cretiza, daí que “a Forma é a primeira e a última instância da responsabilidade literária” (BARTHES, 2000, p. 75). Mas a linguagem é um dado social que o artista compartilha com o público, e a obra é socialmente útil quando bem resolvida esteticamente. O sentido útil da obra está em que ela proporciona prazer e conhe- cimento estético e que ambos ampliam ou a visão de mundo ou o refinamento da sensibilidade. Porém a estrutura externa do conteúdo precisa adquirir forma interna na obra para ter valor, e o poeta não funciona como um espelho que re- flete a realidade, pois tudo passa por seu crivo pessoal e se transforma, antes de

voltar à sociedade. Portanto é impossível dissociar, para um estudo mais pleno da obra literária, a forma de seu conteúdo, pois os dois mutuamente se constituem.

As relações entre arte e sociedade não são inerentes apenas à prosa, a poe- sia é também arte que se relaciona com a vida social, quer no conteúdo quer na forma. No conteúdo, pois pode tratar de qualquer assunto da vida, pessoal ou social. Na forma, porque a linguagem, por mais criativa ou pessoal que possa ser, vem da vida social e está vinculada ao momento histórico. Castro Alves usou a pa- lavra grandiloquente para questionar a escravatura, Olavo Bilac selecionou seus termos e usou epanástrofes e inversões, Mário de Andrade fragmentou seu dis- curso poético, cada qual estava usando a linguagem conveniente para o contexto em que se inseriam. Castro Alves engajado emocionalmente na luta abolicionista, Olavo Bilac ligado ao gosto da elite burguesa, Mário de Andrade representando valores sociais em esfacelamento.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. Conferência sobre lírica e sociedade. In: LOPARIÉ, Z.; FIORI, O. B. (Org.). Textos

escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 2001-2214.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. BARROS, M. Livro sobre nada. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.

BARTHES, R. O grau zero da escrita. Lisboa: Edições 70, 1997. BARTHES, R. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

CULLER, J. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999.

HORÁCIO. Arte poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

LYRA, P. Utiludismo: a socialidade da arte. 2. ed. Fortaleza: Edições UFC, 1982. MARCEL, G. Journal metaphysique. Paris: Gallimard, 1927.

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POUND, E. ABC da literatura. 16. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

ROBERT, P. Le nouveau Petit Robert. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1993. SARTRE, J-P. Que é a literatura? 3. ed. São Paulo: Ática, 1999.

JEREMIAS SEM CHORAR: UMA