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JEREMIAS SEM CHORAR: UMA VISÃO HEIDEGGERIANA SOBRE A

TECNOLOGIA

Rodrigo Luciani Faria Nabylla Fiori de Lima

INTRODUÇÃO

Após o término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, ocorreu uma trans- formação no cenário internacional. A Europa perdeu a sua hegemonia e o mundo se bipolarizou entre duas forças com ideologias conflitantes: o capitalismo, lide- rado pelos Estados Unidos (EUA), que defendiam a propriedade privada, o acú- mulo de capitais, a usura e o lucro; e o socialismo, representado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), defensora da coletividade das proprieda- des, a distribuição dos bens e igualdade para todos os indivíduos. Esse período ficou conhecido como Guerra Fria (1945-1991), pois não houve embates militares diretos entre estas duas potências, mas sim corridas armamentistas e espaciais, resultando no aprimoramento tecnológico que possibilitou a chegada do homem ao espaço e à Lua, e também uma produção exacerbada de armas nucleares po- tentes, as quais deixavam o mundo em tensão, pois se fossem utilizadas pode- riam devastar partes do planeta.

Apesar de o embate entre os blocos – capitalista e socialista – não ser efetivo, a tensão causada pela ideologia teve grandes impactos pelo mundo. Na América Latina, inclusive no Brasil, tivemos a implantação de ditaduras através de golpes de Estado, justificados pelo medo de o comunismo se estabelecer no lugar da ideologia capitalista.

É nesse contexto histórico que se encontra a poesia de Cassiano Ricardo que nos interessa neste estudo. O autor nasceu em São José dos Campos, em 26 de julho de 1895. Formou-se em Direito no Rio de Janeiro, em 1917, mas tam- bém atuou como jornalista, poeta e ensaísta brasileiro, sendo um dos líderes do movimento modernista de 1922. Em 1937 ocupou a cadeira nº 31 da Academia Brasileira de Letras e, em 1950, tornou-se o 10º presidente do Clube da Poesia de São Paulo. Quando editou a revista concretista Invenção, sofreu rejeição do grande grupo, por sua oposição a Oswald de Andrade. Afastou-se do grupo por considerar os poetas concretistas radicais demais. Sua obra passou por diversos momentos: transitou por técnicas de composição anteriores ao movimento mo- dernista, conviveu com a ruptura do grupo de 22, experimentou as técnicas do concretismo e da práxis e, finalmente, criou seu próprio método, o linossigno, sobre o qual não pretendemos discorrer. No Modernismo explorou temas mais in- timistas, cotidianos, ou mais próximos da realidade observável, mas se destacou pelos enfoques dados à realidade nacional, preocupado com o sangue, a terra e a

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gente brasileira. Sua linguagem incorporou os valores da prosa com definições e explicações. A obra selecionada para este trabalho, Jeremias sem chorar (RICARDO, 1976), mostra sua capacidade de reciclar-se, produzindo poemas tipográficos e visuais sem perder suas características.

Em 1964, o poeta publicou o referido livro tematizando a nova realidade vivida pelo homem durante a Guerra Fria. Como indica José Guilherme Merquior no prefácio da 1ª edição do livro, Cassiano mergulha e traz à tona um universo mecânico, orientado pela precisão, porém nele o homem ainda se revela um ne- cessitado. A tecnologia parecia preencher todos os vazios das necessidades hu- manas, entretanto o vácuo lá continuava, pois o que a tecnologia não conseguia suprir era a própria humanidade do homem, isto é, a solidariedade ausente e o desamor presente. A poesia de Ricardo (1976) permite uma visão pessoal e crítica sobre esse período, e, da obra que tomamos para leitura e estudo, destacamos seis poemas:

a) 7 razões para não chorar; b) Ladainha;

c) Sol de metal; d) Ciência & inocência; e) Amor ao próximo; f) O urso e as crianças.

A escolha não se deve ao fato de apenas estes poemas tratarem da tecno- logia, pois o livro todo está impregnado do tema, basta que nos lembremos de tí- tulos como Andorinhas nos fios do telégrafo, A máquina e seus prefixos, Xilogravura ou, ainda, o título de uma das partes do livro Lamentações eletrônicas, composta de vários poemas. Isso tudo sem considerar o poema Gagárin, objeto de análise específica num dos estudos desta obra.

Mas o que nos trouxe a esta preocupação? Por que estudar a relação da poe- sia com a tecnologia? Para isso nos valemos do pensador Heidegger, coetâneo de Cassiano Ricardo, de quem conhecemos a obra Serenidade e o artigo A questão da téc- nica em Martin Heidegger, no qual Cocco (2006) fez algumas considerações sobre o assunto a partir da leitura do filósofo alemão e de quem inicialmente nos valemos.

Heidegger, segundo Cocco (2006), em A questão da técnica em Martin Hei- degger, entende que as tecnologias – principalmente as desenvolvidas a partir do século XX – têm causado o esquecimento do ser em benefício do ente. Essa

percepção do filósofo aponta o lado problemático da tecnologia. Ele não nega a importância e utilidade de técnicas no cotidiano, pois elas facilitam a vida huma- na. Porém, quando o homem se esquece de si, de seu fazer e de sua competência de reflexão e aceita que as tecnologias comandem a sua vida, aí se dá o esqueci- mento do ser. Heidegger ainda percebe que as artes poderiam ser um caminho de reversão desse processo, pois nelas e com elas o homem recupera e desenvolve a capacidade reflexiva e principalmente a subjetividade e a sensibilidade, forças necessárias para enfrentar a mecanização. Portanto, apoiados nesse olhar heide- ggeriano, propomo-nos a construir, a partir do corpus selecionado, uma reflexão que pretende verificar como a poesia de Ricardo (1976) trata criticamente a tecno- logia, acreditando ver aí, como hipótese, a possibilidade do resgate do ser.

Em O ser e o tempo da poesia, o crítico Bosi (2000, p. 140) aponta:

O curso da História no Ocidente tem resultado de um esforço cumu- lativo para apartar o homem do mundo-da-vida, graças à crescente divisão das tarefas e à supremacia do valor-de-troca e das suas más- caras políticas sobre o trato primordial e afetivo com as pessoas e a Natureza.

O que corrobora a visão de Ricardo (1976) e Heidegger (2010) de que a tec- nologia, que influencia diretamente a vida do homem e seu ritmo de vida, vem fazendo o homem se esquecer de seu ser, limitando-se às funções que pode exe- cutar e aos limites físicos que o conformam. Isso nos desvela uma parcela dos as- pectos sociais vividos no mundo contemporâneo durante o século XX. Bosi (2000, p. 141) complementa que, quando a poesia se produz em relação a uma causa, ela consegue fazer a gente “reaproximar-se do mundo-da-vida, da natureza liberada dos clichês, do pathos humano que enforma o corpo e a alma”, e é aqui que se confirma a relevância da poesia de Ricardo (1976) em Jeremias sem chorar, pois, mediante a arte poética engajada – sem ser submissa – encontramos alicerces para recuperar o homem na perspectiva heideggeriana.

Esta reflexão se pautará em pesquisas bibliográficas de fontes e publica- ções científicas, embora seu foco central se concentre na análise dos poemas selecionados e sua relação com tecnologia e sociedade, bem como a teoria heide- ggeriana que vê a literatura como um resgate ao ser.

Para a realização da análise, utilizaremos os seis poemas já escolhidos e mencionados do livro Jeremias sem chorar, na sequência mesma de seu apareci-

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mento na obra. Eles serão o nosso objeto de estudo, sobre os quais nos debruçare- mos para verificar como a arte serve para resgatar o ser do homem, este reduzido às suas funções práticas. A análise também se pauta nas orientações técnicas para a leitura da poesia das obras de Cara (1998) e Goldstein (1999).