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se deixar de ser privada pode ser recuperada?

— Sim, é preciso sanear,

desinfetar a coisa pública,

limpar a verba malversada,

dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia

de empresas públicas-privadas

que querem ver suas fezes

em ouro alheio transformadas.

A coisa pública e a privada utiliza-se principalmente da ambiguidade se- mântica da palavra privada, que apresenta duas interpretações óbvias – a de pro- priedade privada (que se opõe à coisa pública) ou a do lugar privada (que ironiza a coisa privada), onde se liberam dejetos intestinais.

Segue o título do poema uma explicação posta entre parênteses: “Repúbli- ca vem do latim res = coisa + pública”. A data de publicação remete à Era Sar- ney. José Sarney assumiu a presidência do Brasil após a morte de Tancredo Neves, foi o primeiro presidente da república pós-ditadura.

Neste contexto e circunstâncias, já na primeira estrofe, Sant’Anna (1999) refere-se à República como uma instituição acomodada entre interesses públi- cos e privados. O termo escolhido para ilustrar essa acomodação – assentada

– guarda relações com privada (em seu sentido de objeto de louça), termo que se encontra dois versos acima e com o qual rima, o que aproxima ainda mais os termos. Assentada é também termo que sugere o que se costuma entender por estar há muito tempo no mesmo lugar, acomodada. No caso, mesmo tendo mudado o regime no país, que saía de uma ditadura para um regime democrá- tico, o poder permanecia nas mãos dos mesmos homens. Na época, foi assim com grande parte dos membros do Congresso Nacional, inclusive o presidente da república representava a manutenção, pois houvera sido, até bem pouco tempo antes, membro mantenedor do regime autoritário e era – ainda é – líder de uma poderosa oligarquia no poder. O poeta acredita na falta de posição da República, colocando-a como um meio-termo entre a coisa pública e a privada, ou seja,

joguete dos grupos organizados do poder e servindo a seus interesses.

A dinâmica das relações dos detentores do poder (tanto público quanto pri- vado) com a coisa pública é explicitada na segunda estrofe, na qual o autor, utilizan- do-se de vocábulos como privar, provar, privada e provação, denuncia o jogo de interesses daqueles que detêm o poder público e anseiam perpetuá-lo ou dele obter benefícios. Essa dinâmica não pode ser revelada em sua natureza real, devendo a privada (ambiente onde se realiza essa sujeira), portanto, parecer perfumada.

Continuando a associação do tema principal do poema com o universo escatológico, Sant’Anna (1999) usa, na terceira estrofe, termos ambíguos, tais como luta intestina, que representa uma luta que vale a vida, mas também se identifica com o vocábulo intestinal. “Entre a gula pública e a privada” é expres- são que associa a gula pública tanto aos impostos quanto à supracitada vontade

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de privatizar o bem público; e a privada aos interesses particulares de posse. Essa luta de interesses deixou a República desarranjada, palavra também ambígua que denota um desequilíbrio dos cofres públicos ou um desarranjo intestinal, isto é, interno. A referência de Sant’Anna (1999) à empresa pública indecisa entre ser privada pública ou pública privada denuncia um período histórico em que a privatização de empresas públicas começou a ser cogitada e discutida, o que por um lado definiria as posições do público e do privado; mas de outro diminuiria as regalias dos que se locupletam dos benefícios que usufruem privadamente da coisa pública. A pública privada explicita a denúncia do poeta no que se refere ao caráter do Estado como privada pública – lugar em que todos liberam seus deje- tos intestinais, lugar onde não se precisa primar pela boa administração, afinal a instituição não é particular, ainda que gere benefícios privados.

A quarta estrofe do poema retoma a explicação que sucede o título, com- parando a res = coisa com rês = gado, um animal que é dominado e sua força é usada para o usufruto de outro. Gado é o homem explorado, que é levado em rebanho, tangido, marcado e consumido. A referência a termos desse campo se- mântico continua com avacalhada, charqueada, corneada e os versos “que por mais que lhe batessem na cangalha / mais vivia escangalhada”, o que comprova a insistência do poeta em clarear bem como a coisa pública é tratada. E mais, a República tem uma cangalha (enquadramento, controle) colocada para limitá-la e que, por mais que se tente controlá-la, menos funciona, deixando-a escangalha- da. O fato de a República ser colocada como publicamente/corneada destaca, de um lado, o descaramento com que se traem os interesses públicos, e, de outro, a alienação do povo frente às injustiças explícitas contra si mesmo.

Os primeiros versos da quinta e sexta estrofes apresentam a procura de uma solução – “Qual o jeito?”, “O que fazer?”. As alternativas apresentadas pelo poeta, ironicamente, apontam um jejum ou um purgante – o que combateria a gula citada anteriormente. Quando sugere um purgante, Sant’Anna (1999) refere-se à prisão de ventre e à pança inflacionada da República, termos que podem ser encarados, respectivamente, como uma doença e algo como estar cheia além de sua capaci- dade, numa referência à inflação, um problema nacional do tempo de escritura e publicação do poema. Além disso, ainda é apresentada como solução a privatização da privada, sugerindo ambiguamente que a República já está sob o domínio parti- cular e que ela representa o lugar onde se põe o que fora alimento e agora é dejeto. Nessa privada pública estão publicamente assentados, portanto sem razão para

se esconder, os que privam a coisa pública, já que lá estão por escolha popular. Então surge no poema a expressão “publicar, de uma penada”, o que denuncia uma República que não funciona, uma vez que não se discutem projetos para mudanças e melhorias, apenas se assinam ordens e determinações, segundo vontade privada e não interesse público. Isso tudo demonstra uma mentalidade coletiva que con- sidera o problema como parte do sistema, e não das pessoas que o administram. Afinal quem está no poder não é cobrado por quem teoricamente permitiu que lá estivesse, e quem lá está não presta contas a quem delega que lá esteja.

Algumas das soluções propostas por Sant’Anna (1999) nas últimas estrofes são postas categoricamente no final do poema, como um ultimato. As indagações feitas anteriormente são respondidas: “é preciso sanear [...] desinfetar [...] limpar [...] dar descarga”. O vocábulo sanear é o que mais permite conjecturas, já que conserva alguma semelhança fonética com Sarney e sarna. No sentido de sanear, pode-se inferir Sarney e o plano econômico do cruzado como uma solução (o que é possível, considerando a época em que o poema foi escrito), ou, por outro lado, como a necessidade de livrar-se desse Sarney – que, no assemelhar-se a sarna, significa uma forte alergia que provoca muita coceira e incômodo. As outras pala- vras, como desinfetar, limpar e dar descarga associam-se novamente ao concei- to de privada como objeto de louça, que precisa ser higienizado (livrando-se dos usos privados). A última estrofe conclui a ideia da limpeza, colocando as empre- sas públicas-privadas como as causadoras de todo o problema apresentado, visto que estas procuram “ver suas fezes / em ouro alheio transformadas”, ou seja, com suas fezes (aqui, significando seus erros), apropriarem-se dos bens públicos, através da alienação do povo. Para o poeta, há que se acabar com essa alquimia.

Numa análise geral da forma deste poema, percebe-se a insistência nas rimas terminadas em –ada: privada, assentada, perfumada, desarranjada, ava- calhada. Acreditamos que essa repetição almeje reforçar o sentido de privada, termo chave que carrega grande parte do significado e dos jogos de palavras do poema, bem como ampliar a compreensão e alcançar, por se tratar de uma rima fácil, a leitura e interesse popular.

Notamos, nesse poema e na posição exposta pelo poeta, uma marca este- reotípica do modo de ser de brasileiros que alcançam posições de comando públi- co e poder: o interesse privado suplanta o público, o que revela uma deterioração do caráter, explicitado na malversação do erário público.

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