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Em Mundo pequeno, terceira parte do livro, Barros (2008) inicia exploração de um foco temático que será o centro de sua próxima publicação, Livro sobre

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nada: onde desenvolve poemas sobre a pequenez, ou as coisas pequenas e co- tidianas para as quais não se dá importância e nas quais o escritor vê não só poeticidade, mas experiência vital. Há a casa, o rio, a roseira com as formigas e o menino com suas latas. Tudo coisas simples de um mundo rural em que a palavra lírica constrói o “horizonte [que] enrubesce” e os homens simples que “catavam pregos na beira do rio para enfiar no horizonte”.

Esse homem comum que é mostrado ora em primeira pessoa (um eu falan- do que seu mundo é pequeno) ora em terceira (“um poste mal afincado” de quem se fala) é revelador do olhar pantaneiro do poeta, de suas vizinhanças com a Bolí- via e o Paraguai, mas que prefere, ao invés de destacar as grandiosidades daquela terra, mostrar suas miudezas, desde o personagem “Sombra-Boa” – alter-ego do poeta que o Manoel diz “feito de restos” – até a linguagem que falava “em via de hinos”, mas que em verdade “eram coisas desnobres como intestinos de moscas que se mexiam por dentro de suas palavras”. Esse “desenho de uma voz” é “um escorço de poeta” que “nascera engrandecido de nadezas”, que realiza “conversa- mentos de gaivotas” e por cuja linguagem transitam lagartos, gaivotas, aromas de tomilhos, borboletas, garças, árvores, formigas, pedaço de rio e horizontes.

Outra vez retorna a reflexão sobre a linguagem. As técnicas não mudam, mas no poema VI, a trajetória das ideias é reveladora quanto à compreensão do poeta sobre a relação palavra/mundo: “De primeiro as coisas só davam aspecto / Não davam ideias. / A língua era incorporante”, ou seja, a linguagem não repre- senta a coisa, pois faz parte dela, a palavra ainda não é signo, é onomatopeia. Depois dessa introdução, o poema faz um trajeto para mostrar a variação do termo concha. Nota agregada ao poema explica que o termo concha era usado no Português e no Nheengatu para designar vulva. No espaço erudito, entretanto, a expressão era “urna consolata”, no vulgar, “cona”, e o poeta conclui que um ou outro “não passava de concha mesmo”. Aí se percebe como as palavras vão alterando as coisas e as coisas se alterando nos usos cotidianos e na palavra não convencional da poesia, mas a coisa em si permanece a mesma, apenas o olhar sobre ela se altera. Aliás, a dicção poética em Barros não só rompe o óbvio – isso é obrigação de toda poesia –, mas, à moda de Baudelaire e dos bugres, procura a doença das palavras e os atalhos do caminho, para colher em “agramática” as “surpresas e ariticuns maduros”.

No dilema manoelês mora um paradoxo: num poema há a sugestão de que a palavra se apossa da coisa (“Se a palavra é a posse da coisa nomeada”), em ou-

tro, a palavra não é a coisa (“O mundo não foi feito em alfabeto”). Então, por um lado o mundo foi feito em coisas (água, luz, árvore, lagartixa, homem, concha, pedra...), mas sua história constituída por linguagem, de forma que o anterior à palavra passa a existir pela palavra elíptica de Barros, como em “Ele me coisa / Ele me rã / Ele me árvore”. Essa linguagem desarticula o óbvio e na linha de de- sarrumar os significados, surge Bernardo, outro personagem pantaneiro (Outro alter-ego do poeta?), cujos instrumentos de trabalho são mágicos (“I abridor de amanhecer / I prego que farfalha / I encolhedor de rios – e / i esticador de horizon- tes”) e desregulam a natureza. Assim como “seu olho aumenta o poente”, poderá o poeta, com seu instrumento de linguagem, “enriquecer a natureza”?

Os dois últimos poemas se mostram explicitamente autobiográficos. O pe- núltimo revela a opção por aproximar-se da vida comum, dos lugares, quer pe- ruanos, quer bolivianos, quer brasileiros, para neles se integrar nas experiências dos homens e das coisas: ser pedra para pensar pedra, ser vegetal para sentir vegetal, ser cigarra ou borboleta para zunir ou voejar como esses seres e assim alcançar “os deslimites do Ser” e desse modo, diz o poeta, “Meu verbo adquiriu espessura de gosma” e sua palavra perdeu a propensão para a denúncia, deixou de estar a serviço de outra coisa e passou a estar a serviço de si mesma, pois o que importava eram as palavras em si, “a parte selvagem delas, os seus refolhos, as suas entraduras”, aquilo que no início do livro o autor denomina como o “de- lírio verbal”. A palavra poética assim constituída já não é signo, pois assim seria elemento preso culturalmente, a palavra é coisa, com suas formas, sons, luzes, escuros, gostos e odores. Entretanto não consegue ser plenamente coisa, já que ainda é palavra. Assim a palavra é como uma vestimenta das coisas, que oculta e impede a intimidade, a aproximação, o contato definitivo. Mas a criação poética é um descortinar que permite à coisa e ao homem adquirir feitio na linguagem e se personalizar.

Barros (2008) preferiu, neste livro, como é de praxe em sua poesia, mer- gulhar no mundo pantaneiro donde sobressaem suas duas principais verdades (ou seriam invenções?): “Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz”, “Descobri que todos os caminhos levam à ignorância”. E no percurso pelas reali- dades comuns desse espaço está uma autobiografia do seu fazer poético: O livro das ignorãças.

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REFERÊNCIAS

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