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O POEMA E SUA INSERÇÃO NO TEMPO

Quais vínculos se estabelecem entre a palavra poética e a realidade só- cio-histórica que permeou o mundo do trabalho na sociedade ocidental? As re- lações que se revelam mais pertinentes são as que se podem fazer a propósito das circunstâncias do capitalismo e da filosofia marxista (MARX, 1968). Convém recordar acerca das aproximações que se fazem da poesia com a sociedade o que, parafraseando Candido, este denominou de função social e de função ideoló- gica da literatura. A primeira voltada para o papel que a obra desempenha na satisfação de necessidades espirituais e materiais da sociedade, contemplando expectativas humanas de seu tempo; a segunda, ligada a princípios filosóficos, religiosos ou políticos, revela um caráter empenhado em questões coletivas que nunca, entretanto, devem tomar o centro da análise, pois uma verdadeira obra de arte não vive apenas em função de o que diz, mas também e concomitantemente com como o diz (CANDIDO, 2000)

O conceito de trabalho relacionado ao instrumento de tortura tripalium revela ligações com o poema Modinha do empregado de banco, afinal, para o ban- cário do poema, sua atividade de contar o dinheiro dos outros, sem dele poder usufruir, era um sofrimento, principalmente para alguém dotado de imaginação sem poder realizá-la. Não se percebe também no trabalho do bancário o sentido positivo que o dicionário lhe dá, de obrar ou realizar um labor, cujo fim visa à

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manutenção da vida, mas o que se nota é um indivíduo preso a uma tarefa insa- tisfatória, que lhe dá um salário, num espaço tolhido por paredes que refletem sua limitação na participação das escolhas naquele sistema de trabalho. Então, o empregado se compara a um prático de farmácia que, a exemplo dele, vive preso a um espaço físico e a uma ação medíocre. Decorre daí o não-compromisso com o trabalho que executa, já que é apenas instrumento para interesses de outros, como denuncia Marx (1968), ao entender que o homem é o que faz, logo, se faz sem consciência, torna-se alienado. Mas o que aliena o homem é sua inserção no sistema capitalista que não lhe permite participar das escolhas relativas à sua tarefa, pois apenas a executa. E se não há liberdade, não existe satisfação. Além do que, na divisão do trabalho em que uns pensam e outros fazem – como propu- sera Taylor –, a capacidade do trabalhador, sua competência real para contribuir com o que faz não é ocupada, então sobra mais tempo para ele se ressentir e se frustrar. Esse quadro resultante da criação artística aponta para uma sociedade orientada pelo capitalismo e indica a submissão do homem ao regime, pois ne- cessita mais que tudo da sobrevivência física, o que não lhe permite a realização de possíveis desejos de liberdade, embora esteja livre para fantasiar, desde que cumpra sua obrigação de trabalho.

A tese de Lukács, signatária de Hegel e Marx – de que o trabalho tem uma dimensão interior e não apenas exterior, isto é, que não somente realiza uma tarefa para construir um objeto, mas também, no trabalho, o homem se constrói a si mes- mo como ser social, reconhece-se no que produz e é reconhecido pelo que produz (ANTUNES, 2003) –, fica nesse poema também prejudicada, visto que o empregado de banco faz sua função não porque ela lhe dê prazer pessoal, o que poderia fazer com que o sentido de tripalium (tortura) desaparecesse, mas porque, se o não fizer, suas necessidades básicas ficam desprovidas, logo não há autodeterminação do homem, por isso o empregado se diz sou triste. Esse empregado não consegue o contato ou a comunicação com o mundo exterior que imagina, portanto não há a construção do ser social pelo trabalho, pois seu trabalho é seu isolamento do mundo, sua escravidão, porque nem é reconhecido pelo que faz, nem se reconhece no que faz, já que gostaria de estar fazendo as coisas de outro modo. O trabalho – pertencente ao sistema, conforme Habermas (ANTUNES, 2003) – no mundo capi- talista não mais socializa o homem, pois não é mais atividade autodirigida. Então a conquista da sociabilidade faz parte do mundo da vida, isto é, das operações de intersubjetividade, onde ocorre a comunicação. O espaço do trabalho não é o mun-

do da comunicação, mas o da obediência às regras da razão instrumental, onde está também o poder e a economia. Por isso a atividade do bancário no poema não lhe permite comunicar-se com o que está fora da sua realidade de trabalho e sua imaginação se frustra ante o pragmatismo.

Sim, o empregado sonha com outras possibilidades de uso do dinheiro do banco, mas esse sonho é também alienação, já que o coloca fora da realidade pos- sível, pois está preso às circunstâncias de seu trabalho, ao tectec das máquinas de escrever, em que a vontade de poucos se sobrepõe às necessidades de mui- tos, e os desejos pessoais de quem executa as tarefas se submetem aos desejos dos que comandam as tarefas, que por sua vez têm seus desejos submissos aos que sustentam a tarefa: o sistema capitalista com os donos do dinheiro, que têm seus próprios desejos atrelados às necessidades do capital, o que os faz donos do dinheiro, mas ao mesmo tempo dele escravos, conforme o funcionamento do mundo do capitalismo.

Do lugar histórico de onde fala o poeta, entre 1925 e 1930, no Brasil, ain- da em Alagoas, tendo já aderido ao Modernismo em voga em São Paulo, não há dúvidas de que está mergulhado numa realidade capitalista questionada pelos valores anarquistas, socialistas e comunistas emergentes. Não se pode, porém, atribuir a crítica ao apego ao dinheiro ou o acúmulo pelo acúmulo que revela a ganância, à influência católica, pois esse viés em sua produção literária só toma corpo na década de 1930. Observador e vivendo numa situação de valores capita- listas, o poeta vê como funciona o sistema e percebe que a fantasia do bancário de pôr a andar a roda da imaginação se submete ao pragmatismo do diretor do banco e aos interesses dos clientes. É a sensibilidade do poeta ante um mundo de necessidades materiais. Qual então a forma de o poeta fazer seu protesto e com ele denunciar o sistema? Criar seu poema, objeto avesso a todo pragmatismo capitalista, objeto destituído de valor monetário. É ele que funciona como con- traponto ao banco, pois permite olhar o sistema criticamente, já que quem está inserido nele está preso a ele, como ocorre com o bancário e o diretor. O poeta é, pois, aquele que mostra o mundo ao mundo e não lhe permite mais a inocência, ainda que a poesia não objetive a interferência direta na realidade, entretanto, nasce dela e a ela se dirige, realizando a função social da arte.

As relações entre arte e sociedade não são inerentes apenas à prosa, como pensou Sartre (1999), a poesia é também arte que se relaciona com a vida social,

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quer no conteúdo quer na forma. Há toda uma tradição histórica para confirmar isso, desde os antigos gregos. No conteúdo, pois pode tratar de qualquer assunto da vida pessoal ou social. Na forma, porque a linguagem, por mais criativa ou pessoal que possa ser, vem da vida social e está vinculada ao momento histórico. Castro Alves usou a palavra grandiloquente para questionar a escravatura, Olavo Bilac selecionou seus termos e usou epanástrofes e inversões, Mário de Andrade fragmentou seu discurso poético, cada qual estava usando a linguagem conve- niente para o contexto em que se inseriam. Castro Alves envolvido emocional- mente na luta abolicionista, Olavo Bilac ligado ao gosto da elite burguesa, Mário de Andrade representando valores sociais em esfacelamento, assim como Murilo Mendes em Modinha do empregado de banco.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 6. ed. São Paulo: Boitempo, 2003.

AQUINO, R. et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

GIANNOTTI, J. A. Trabalho e reflexão: ensaios para uma dialética da sociabilidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. MENDES, M. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.