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O título Jeremias sem chorar estabelece uma relação (inter)textual bíblica com o profeta Jeremias e suas lamentações, atinentes à ocupação de Jerusalém pelo rei babilônico Nabucodonosor. Nas lamentações, o profeta descreve o sofri- mento da população, que passa por necessidades e é espoliada pelos inimigos, pois havia pecado contra o Senhor. Mas Jeremias ora e clama, pois ainda crê. Assim como o povo judeu não perdeu a fé – ao contrário, o sofrimento a manteve viva – o eu-lírico (Jeremias) mantém acesa uma chama de sensibilidade perante a invasão da tecnologia, da despersonalização do homem, ou, como diz Heidegger (2010), do esquecimento do ser.

Já de início, Ricardo (1976) esclarece que quem sente e expressa os poemas é Jeremias, portanto, uma voz dentro de outra voz. Seria uma voz profética? Um vate? Ou um sofredor que desabafa perante as desgraças do seu povo? O profeta bíblico fora escolhido para representar a vontade de seu deus e alertar o povo, seus sacerdotes e líderes dos desvios do caminho do Senhor. Este Jeremias lírico, a exemplo de uma das epígrafes da obra (de Jean-Paul Sartre), parece que quer lem- brar os homens que esqueceram sua infância, sua inocência, sua origem. Seria essa infância uma metáfora da origem natural do homem sendo usurpada pela artificialidade de um mau uso da tecnologia?

O poema de abertura da obra, 7 razões para não chorar, é dividido em sete partes, uma para cada motivação que o eu-lírico encontra para não chorar. Não teria ele motivos para chorar, perante o mundo que retratará, já que as imagens não são nada alentadoras? A primeira razão (“O mundo do terror / e do encanto / me obsta o pranto”) remete ao mundo tecnológico que, ao mesmo tempo que nos traz encantos e benefícios, a exemplo do encurtamento das distâncias por meio da aviação e das comunicações, também aterroriza o homem com bombas e armas de destruição em massa, igualmente frutos da mesma tecnologia. Isso tudo gera mais perplexidade que lágrimas. Jeremias é impedido de chorar, as lá-

grimas lhe são tolhidas, pois do contraste entre os extremos anulam-se os sustos e aplainam-se os choques.

O segundo motivo para não chorar (“Subtraído à lei / da gravidade / perdi a noção / do que é grave”) propõe sutilmente as viagens espaciais que ocorreram a partir da década de 1950. Com isso, o homem transpôs as barreiras físicas, dis- tanciando-se da Terra, mas deixou de agir e de se preocupar com os problemas so- ciais e humanos em benefício do desenvolvimento tecnológico. Eis uma boa razão para chorar: o homem se esquecendo do homem, mas Jeremias não chora, pois as conquistas tecnológicas da modernidade fascinam, mas também banalizam.

A terceira parte do poema (“Um coice de cavalo / no comício / e eu – Jeremias seco – / olho de vidro”) sugere o olho de vidro como alusão a fazer vistas grossas ao que acontece em momentos de opressão em que as manifestações públicas são controladas pelo policiamento. Do contrário, ao tentar demonstrar o descontenta- mento, o indivíduo sofre a repressão (“coice de cavalo”). Jeremias está seco de lágri- mas, portanto impossibilitado de chorar, mas com suficientes razões para fazê-lo, no entanto seu olho já é um produto estéril, imune às lágrimas, artificial.

O quarto momento do poema (“A cidade mecânica / timpânica / me fez um objeto / concreto”) aponta para o enrijecimento do homem na mecânica citadina barulhenta, onde se torna objeto endurecido nas emoções, de modo que não mais chora. A reificação do ser, conforme Heidegger (2010) sugere, representa o esque- cimento do que no humano é humano, em favor do que o constitui como coisa (apenas corpo) presa aos sentidos, não à reflexão e à sensibilidade, daí apenas um

objeto concreto, uma coisa.

A quinta estrofe (“Uns mataram a sede / no suor dos outros. / E eu fiquei sem água / nem sal”) traz a exploração do homem pelo homem, ou seja, o uso do homem como objeto, como instrumento para o bem de outro, outra vez apontando o afastamento daquilo que humaniza: o reconhecimento da sensibilidade perante o outro. O homem que explora não chora, assim como o que é explorado, pois este gasta toda sua água (“símbolo de vida”) na eliminação do suor que o desgasta e oprime. Eis mais uma razão para chorar, mas Jeremias novamente não chora.

“A seca, / lacrimossedenta, / bebeu meu poço. / E agora?”. Esta sexta refle- xão remete à seca interior dos homens, assim como à seca física, aquela típica das regiões desérticas, como parte do nordeste brasileiro, onde até uma lágrima é alimento para a terra, assim como a lágrima para o homem nutre o sofrimento

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até chegar ao limite. A ausência das lágrimas representa o vazio da sensibilidade, das emoções, a perda da compreensão de si mesmo, a apatia. Ante isso, o que fazer? Chorar como?

O dístico (“A lágrima é ridícula. / Um homem não chora”), encerrando o poema, sugere que esse homem, vazio de sensibilidade, árido como um deserto, mecânico, alienado, indiferente e meio cego, perdeu a competência para as lágri- mas, ou o que elas representam. Neste contexto, a lágrima é ridícula.

Não se pode esquecer que o Jeremias bíblico chorou. Este Jeremias não chora, pois já não é mais o que profetiza, mas o que constata, embora aquele houvera chorado perante as desgraças de seu povo. As desgraças, porém, deste novo tempo, são de maior catástrofe, já que lá, no passado bíblico e mítico, a per- da que gerou a escravização hebraica era em relação a um povo e uma cultura, aqui a perda é mais essencial, pois, além de alcançar a todos, ainda tira aquilo que faz do homem o que ele é: sua humanidade, conforme entende Heidegger (2010).

LADAINHA

O termo ladainha, neste poema, remete à oração cristã em que se pede aos santos que intercedam pelos fiéis. O formato da ladainha, que se repete no poema, sempre apresenta uma invocação seguida de um refrão, o que se torna evidente na terceira estrofe. Logo, o título alude à forma (“invocação/repetição”) e a oração: um dirigir-se a um ser superior a quem se pede – conforme tradição religiosa – auxílio ou proteção, como fizera o profeta Jeremias na quinta de suas lamentações.

No poema podemos encontrar alusões a uma supremacia da máquina, vis- to que o eu-lírico se questiona se os artefatos tecnológicos não seriam melhores que os humanos, inclusive, minimizando a condição humana numa crítica à im- portância que é dada à máquina. No início do poema, por exemplo, questiona-se o porquê de se ter ossos, músculos e raciocínio, se “o cérebro eletrônico, o músculo mecânico são mais fáceis que um sorriso”.

A segunda estrofe segue esse raciocínio: para que ter um coração huma- no, se o coração de metal poderá tornar o homem mais cordial e dar a ele um

ritmo extra-/corporal? A expressão extra-/corporal pode ser entendida de três maneiras. Como há a separação de extra em um verso e de corporal em outro,

pode-se entender que o coração de metal daria um ritmo extra, isto é, um ritmo especial, raro, único. No entanto, esse ritmo extra pode ser também um ritmo fora do corpo (“coração de metal, que não está no corpo humano”). Por último, como extracorporal, podemos entender métodos da medicina que acrescentam ao corpo elementos extracorporais que promovam funções artificiais àqueles que delas necessitam.

Na terceira estrofe se concretiza o formato de ladainha, pois nela encontra- mos um verso com um questionamento e o verso seguinte, que seria a resposta, é repetido sempre depois de cada pergunta. Desse modo, as perguntas se voltam para as ações características do humano, como movimentar, trabalhar, pensar, imaginar, fazer, subir. A cada uma dessas ações (“invocações?”) se contrapõe um verso-resposta: “A máquina o fará por nós”. É uma estrofe bastante irônica, visto que não parece ser o objetivo do poema concordar com esse endeusamento da máquina. Parece-nos que aqui há um alerta da parte do eu-lírico a fim de que atentemos para a questão de colocar a máquina no lugar do humano e, mais, co- locá-la no lugar de Deus. O artificial está substituindo o natural, assim o homem se desnaturaliza, deixa de ser o que é, se coisifica e até reifica seu deus.

Podemos aproximar essa terceira estrofe da teoria heideggeriana que afir- ma que a tecnologia afasta o homem da sua condição humana. Se entendermos o trabalho como um diferencial do ser humano em relação aos demais animais, a máquina pode, então, substituir o trabalho. Se o homem é um animal racional, a máquina poderá substituir o pensar. A imaginação, que é própria do ser huma- no, pode ser feita pela máquina. O poema – as palavras, a arte, próprias do ser humano –, a máquina também poderá realizá-las. A escada de Jacó, citada no penúltimo verso dessa estrofe, refere-se ao mito bíblico de que o personagem Jacó haveria sonhado com uma escada que unia a Terra ao Céu e seria por onde os anjos subiam e desciam. Para o poeta, esta, também, poderia ser utilizada pela máquina ou por ela feita. A máquina com poder de unir Céu e Terra. O poema termina com o pedido à máquina, aquela que tudo pode fazer pelo homem, que ore por nós. Um pedido de oração à máquina, ou ainda, visto que a máquina tudo pode fazer por nós, ela poderia, então, fazer a oração – o ato – no lugar do homem, algo como “Por que orar? / A máquina o fará por nós”. No verso final, o vocativo Ó máquina, coloca o referido produto tecnológico na condição do ser que invocamos quando em desgraça, a quem pedimos ajuda, conselhos, perdão... Desse modo, a máquina torna-se o nosso salvador. O nosso deus?

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Certamente, nem Jeremias nem Ricardo (1976) pensam e sentem a máqui- na como salvadora. O olhar do poeta e seu eu-lírico têm, logicamente, voz irôni- ca. Este poema, portanto, repleto de interrogações, questiona e se questiona. E como questionamento, suscita a reflexão. Eis a função da arte: permitir e motivar o que Heidegger (2010) tanto prega – a reflexão através do desenvolvimento da sensibilidade e assim resgatar a essência humana, fazendo o homem recordar-se do que de fato é.