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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

4.1 Ética em pesquisa qualitativa

Discussões acerca de ética em pesquisa qualitativa têm favorecido métodos colaborativos de pesquisa, em que o objetivo do/a pesquisador/a não é apenas pesquisar

sobre ou para sujeitos, mas pesquisar sobre, para e com sujeitos participantes do processo de

pesquisa (Cameron et al., 1992). Isso implica um reconhecimento dos/as participantes da pesquisa como participantes de fato, não como ‘sujeitos pesquisados’ ou, muito menos, como ‘informantes’. Tomar os atores sociais implicados no processo de pesquisa como participantes implica inserir sua agenda de interesses na prática investigativa, o que exige um planejamento de pesquisa suficientemente flexível, apto a ser modificado para tornar- se relevante para a comunidade que compartilha seus conhecimentos com o/a pesquisador/a (Demo, 2004; veja discussão no Capítulo 1).

A pesquisa participativa inclui, então, riscos específicos, visto que sua condução torna-se válida não pela generalização dos resultados, mas por sua adequação também à agenda de interesses dos/as participantes – é preciso estar sensível a isso para se abrir mão de etapas previstas no planejamento inicial e que, embora nos pareçam academicamente pertinentes, mostrem-se inadequadas ao grupo. Isso aconteceu nesta pesquisa no que se refere ao planejamento inicial de uma etapa colaborativa de condução de oficinas de texto para a construção participativa de um jornal comunitário, etapa suprimida do processo por ter-se mostrado inadequada.

Além das motivações acadêmicas desta pesquisa, sua realização responde a uma motivação de cunho social, relacionada ao engajamento com uma organização – a Comissão Local do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Distrito Federal (MNMMR/DF) –, com base na reflexão acerca das causas sócio-discursivas da crise dessa

organização. Pesquisas socialmente engajadas têm sido referidas como pesquisas comprometidas com o empoderamento (Cameron et al., 1992). O termo ‘empoderamento’, entretanto, guarda uma contradição, pois sugere uma perspectiva segundo a qual pesquisadores/as seriam detentores de ‘poder’ a ser redistribuído entre sujeitos ‘desempoderados’. Sabemos, contudo, que há diferentes tipos de conhecimento e diferentes tipos de poder distribuídos na sociedade. Nesse sentido, todo sujeito excluído de uma

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prática estará incluído em outras, o que implica que o próprio conceito de exclusão é sempre relativo a algo específico. Assim, o que uma pesquisa como a que conduzi pode ambicionar em termos de resultados práticos está mais ligado à reflexão que pode desencadear no contexto pesquisado, à desnaturalização de representações tomadas como tácitas, ao desvelamento de mecanismos causadores de questões problemáticas ou bloqueadores de soluções (Outhwaite, 1998).

Nesta pesquisa, a motivação social não implica uma perspectiva segundo a qual a Academia, do alto de sua sabedoria, empodera sujeitos carentes dessa mesma sabedoria, em uma intervenção vertical, de cima para baixo. Não me vejo acima. Reconheço que ao mesmo tempo em que busco o fortalecimento do movimento social com o qual trabalho, por meio da promoção da reflexão de sua crise, eu mesma me fortaleço – provavelmente mais que possa imaginar contribuir para essa organização.

Fortaleço-me em minha trajetória acadêmica, evidentemente, mas fortaleço-me sobretudo pelos conhecimentos que as participantes concordam, gentilmente, em compartilhar comigo; fortaleço-me pelas práticas que me permitem vivenciar. Somente uma prática de pesquisa que busque superar assimetrias tomadas como tácitas pode se pretender colaborativa, no sentido que procurei explicitar nos parágrafos anteriores.

Há três princípios que devem ser considerados no desenvolvimento de um projeto de pesquisa colaborativa: (i) o uso de métodos interativos, dialógicos, que são imprescindíveis quando se pretende desenvolver pesquisa dessa natureza; (ii) a abordagem de temas de interesse dos/as participantes, que assegura a incorporação da agenda da comunidade no projeto de pesquisa; (iii) o compartilhamento dos resultados, que garante acesso ao conhecimento especializado e às interpretações geradas pela pesquisa (Cameron et al., 1994).

Embora esses princípios não sejam normativos, isto é, não sejam etapas obrigatórias a todo projeto socialmente engajado, pretendi seguir todos eles. O princípio (i) foi relevante em todas as etapas da pesquisa, pois todos os métodos adotados basearam-se em interações dialógicas abertas. Ainda que os grupos focais (ver Seção 4.2.3) e as entrevistas focalizadas (ver Seção 4.2.4) tenham sido orientados por tópicos-guia, estes não foram tomados como imposições, havendo espaço para a inserção de outros temas.

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O princípio (ii) foi mais evidenciado na etapa das oficinas pedagógicas, embora eu tenha procurado inserir a agenda de interesse do Movimento e das participantes em todo o processo de pesquisa, inclusive tomando como conceito-chave na pesquisa o de protagonismo juvenil – de grande relevância para o Movimento – e alterando o foco da pesquisa para uma compreensão da crise da organização. A tematização da crise em minha pesquisa é uma resposta à inquietação empiricamente observada no contexto do Movimento; trata-se de abordar um tema de relevo na agenda de interesses das participantes

As oficinas pedagógicas referem-se à etapa da pesquisa em que oganizamos juntas – as jovens Maria, Amanda, Karina, Joana, Rita e eu – ‘oficinas de oficinas’, isto é, nos reuníamos para pensar possibilidades de organização de oficinas que demandassem poucos recursos e que pudessem ser realizadas no contexto dos núcleos de base. O foco das discussões foram métodos para oficinas de cidadania, a fim de, ao mesmo tempo, discutir problemas e dificuldades enfrentados na prática da realização de oficinas nos núcleos e refletir sobre a realização dessa atividade, além de buscar promover a integração entre os núcleos e uma coordenação no trabalho das jovens.

Foram organizadas e levadas a cabo seis oficinas, em que, além da discussão de métodos e abordagens para oficinas relacionadas à cidadania, foram elaborados os materiais necessários para a realização de quatro oficinas temáticas a serem testadas nos núcleos de base, pelas próprias jovens, caso seja de seu interesse, quando o Movimento retomar as atividades de nucleação nas cidades satélites ou em outro ambiente. Os temas escolhidos, de modo participativo, foram: (1) a vida como direito, (2) o direito a ter onde morar, (3) o direito a uma escola para todos/as, (4) o direito de participar. As discussões e a confecção de materiais basearam-se no livro Tecendo a cidadania: oficinas pedagógicas de

direitos humanos, de Candau et al. (1995). Embora tenha sido eu a apresentar, em uma

reunião na sede do Movimento, o livro que embasou as discussões, a idéia das oficinas pedagógicas com as jovens foi de Júlia. Sobre isso tomei a seguinte nota:

Conversei com a Júlia, resolvemos acrescentar uma etapa ao projeto – eu e ela, tendo idéias juntas, debatendo minha pesquisa, participativo mesmo! Vou trabalhar oficinas junto com as meninas – Maria, Amanda, Joana, Karina e a Rita, irmã da Maria –, oficinas de oficina! É assim: a gente vai discutir as propostas de oficinas do livro, modificar de acordo com a experiência delas, confeccionar materiais (...). Assim

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minha pesquisa contribui mais porque atua diretamente em uma demanda grave do Movimento que é a falta de planejamento das oficinas. Agora falta saber se as meninas vão se interessar... (Nota de campo registrada em 18 de julho de 2006).

Essa minha reflexão acerca da demanda de planejamento e coordenação dos trabalhos levados a cabo nos diversos núcleos tinha por base minha experiência anterior com a observação nos núcleos e em outros eventos no Movimento, como a reunião de que participei em abril de 2005, logo no início do trabalho de campo. Foi nessa reunião que apresentei à coordenação do Movimento meu projeto inicial – estava ainda começando a conhecer as práticas do Movimento, só depois fui compreender de fato o que a Júlia disse, e que anotei em meu diário:

Júlia disse que os/as meninos/as [dos núcleos] não têm noção do ECA, que estão numa

confusão de conteúdos e que por isso as oficinas dos núcleos precisam ser reelaboradas. Ela estava preocupada em decidir modos de resolver isso. Pensou em fazer uma jornada para recuperar o conteúdo. Ela acha que são necessárias oficinas temáticas bem elaboradas e avaliadas (Nota de campo registrada em 29 de abril de 2005).

Nos encontros de oficinas pedagógicas, as jovens refletiam sobre as propostas trazidas no livro, comparando-as com as realidades dos núcleos e propondo alterações de acordo com suas experiências. Por isso, embora as oficinas não tenham sido utilizadas como dados analíticos, foram úteis também para que eu compreendesse um pouco mais o universo da nucleação e constituíram outro produto desse processo de pesquisa, independente da tese.

O princípio (iii), referente ao compartilhamento dos resultados com os/as participantes, é primordial para a pesquisa colaborativa, pois de outra maneira as reflexões levadas a cabo na pesquisa dificilmente têm efeito no contexto pesquisado. Isso está de acordo com a reflexão de Blommaert (2005: 33) acerca do corte no processo dialógico da pesquisa no que se refere às análises:

Um problema claro [em ADC] é a reflexividade. O processo de análise

é necessariamente dialógico, e então a interpretação é afetada pelo/a analista. Mas quando o/a analista se retira para o nível mais alto do domínio da teoria-como-verdade, o processo dialógico se fecha e o/a analista se torna o único árbitro dos significados. (...). O/A

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participante é empurrado/a para fora da análise, por assim dizer, tão logo a fase explanatória da análise é iniciada. Esse é um problema sério na medida em que a ADC aspira ao empoderamento de sujeitos por meio da análise crítica.

Para uma pesquisa configurar-se como dialógica é necessário, portanto, que as análises e seus resultados sejam compartilhados com os/as participantes, que haja espaço para negociação das interpretações, que as pessoas envolvidas no processo da pesquisa sejam ouvidas também em relação às conclusões do/a pesquisador/a. A democratização do conhecimento gerado pela pesquisa e a negociação das interpretações só podem ser efetivas se os métodos para tanto forem definidos de acordo com o grupo e com seus interesses específicos na pesquisa. Por isso, os modos para fazê-lo foram debatidos em reunião no Movimento em 1º de março de 2008. Na ocasião, ficou decidido que o modo mais efetivo para a discussão dos resultados seria uma oficina com as participantes da pesquisa, na qual eu faria uma exposição oral de minhas reflexões e abriria um debate acerca das interpretações. A decisão por uma reunião congregando todas as participantes deve-se a questões práticas relativas à disponibilidade de tempo; a decisão pela exposição oral, ao invés da simples distribuição do texto final da tese, deve-se ao caráter acadêmico do texto e ao uso de conceitos e categorias especializadas. Mesmo assim, cada participante da pesquisa recebeu cópia da transcrição dos materiais etnográficos resultantes de interação de que tenha participado e cópia das análises referentes a esses documentos.

A reunião aconteceu em 28 de abril de 2008, na sala do Projeto Giração. Estiveram presentes as educadoras Júlia e Vera e as jovens Maria e Joana (Amanda não pôde comparecer). Foram distribuídas cópias de todos os capítulos analíticos e das transcrições de entrevistas, grupos focais e reuniões. Em seguida, apresentei cada capítulo, explicando o que havia investigado em cada documento e o que as análises apontavam. Discutimos ainda o documento “Discussão: uma crítica explanatória”, em que destaco algumas conclusões gerais da pesquisa, em termos das necessidades não satisfeitas para um funcionamento mais efetivo do Movimento e alguns modos de superar os obstáculos identificados na pesquisa (ver Discussão).

O encontro, que durou pouco mais de duas horas, foi muito positivo, pois me permitiu não apenas mostrar minhas conclusões mas também ouvir as opiniões das

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participantes acerca das interpretações e confirmar algumas considerações. Por fim, traçamos algumas diretrizes para projetos futuros.

Se não houve maiores contradições, nessa reunião, entre as interpretações que apresentei e interpretações alternativas, isso não me causa estranhamento: acho que virão depois. Entendo que nesta pesquisa tratei de temas sobre os quais elas não tinham interpretações prontas, desenvolvi reflexões a respeito de certas causas sociodiscursivas da crise do Movimento que ainda não faziam parte do conjunto de reflexões da crise disponível no Movimento. Leva algum tempo até que as contradições e discordâncias se formulem, e me alegra saber que ainda estaremos em contato (já que temos projetos futuros traçados) e que poderei ainda refletir (e, quem sabe, escrever) sobre isso.

É imprescindível, tratando-se de pesquisa crítica, comprometida com a ética, que desde os estágios iniciais da pesquisa os objetivos da investigação e os métodos que se pretende adotar sejam discutidos e negociados com os/as participantes, em uma prática de pesquisa que prima pela clareza e pelo respeito aos sujeitos. As estratégias de pesquisa que passo agora a discutir foram negociadas previamente – em diversas ocasiões, de acordo com as alterações que se delineavam (ver Capítulo 1) –, bem como o foram os objetivos e as questões de minha pesquisa. Meu projeto fez parte da pauta de uma reunião na sede do MNMMR/DF, em 29 de abril de 2005, com a então coordenadora, Paula, e as

duas educadoras do Movimento, Júlia e Vera. Na ocasião expus minhas motivações, explicitei os métodos, apresentei minha pesquisa e recebi e aprovação do Movimento para sua realização. Voltei a explicar sobre meu projeto em outras oportunidades, para pessoas que não haviam estado nessa reunião, por ocasião dos encontros de grupo focal (ver Seção 4.2.3) e das oficinas pedagógicas, sempre solicitando autorização para executar gravações em áudio e deixando claras as utilizações que seriam feitas do material resultante. Garanti às participantes a proteção de sua identidade, motivo pelo qual as pessoas envolvidas na pesquisa são identificadas por meio de pseudônimos e os nomes de suas cidades satélites são substituídos por nomes fictícios.

Sempre busquei debater com as participantes minhas dificuldades e frustrações com as impossibilidades que refreavam meu planejamento, sobretudo com Júlia. O grupo mostrou-se solidário, trazendo propostas e ajudando-me a encontrar caminhos

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alternativos. Por todos esses motivos, posso afirmar que esta pesquisa foi uma construção conjunta, cujo resultado não é mérito apenas meu.

Essa preocupação em tornar claros os objetivos e as estratégias visa a um afastamento em relação à prática de pesquisa exploratória, em que o/a pesquisador/a utiliza os conhecimentos do grupo sem preocupar-se com as (des)vantagens que a pesquisa possa lhes trazer. Na pesquisa engajada, ao contrário, os dados serão válidos apenas se forem, também, éticos. Minha expectativa é que as reflexões que fui capaz de fazer com base nos dados possam alimentar outras reflexões, no âmbito do Movimento, e que essa reflexão acerca da crise da organização possa gerar uma maior compreensão, que por sua vez possibilite a superação de barreiras e a construção de pontes.

A reflexão ética em pesquisa qualitativa relaciona a epistemologia – no sentido de como percebemos os sujeitos participantes e como nos posicionamos em relação a eles para construir conhecimento – e a metodologia – no sentido de como essa reflexão influencia o planejamento da pesquisa e a composição das estratégias para o acesso ao conhecimento contextualizado. Na próxima seção, passo a discutir e descrever os métodos para geração e coleta de dados adotados na pesquisa.