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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

3.3 Realismo Crítico e epistemologia nos estudos críticos do discurso No capítulo anterior, vimos que as perspectivas ontológicas que orientam

3.3.2  Dimensões transitiva e intransitiva do conhecimento 

Bhaskar (1989) propõe a distinção entre as dimensões intransitiva e transitiva da ciência: os objetos da ciência (aquilo que estudamos no mundo social) estão em sua dimensão intransitiva; as teorias e discursos sobre o mundo social formam sua dimensão transitiva. Isso implica que o mundo não deve ser reduzido a nosso conhecimento sobre ele e que a “realidade – dimensão intransitiva e ontológica” é independente da “relatividade de nossos conhecimentos – na dimensão transitiva e epistemológica” (Bhaskar, 1998a: x). A construção de conhecimento é uma atividade transitiva, dependente de conhecimentos anteriores e da atividade do ser humano; mas tem objetos intransitivos, que existem anteriormente à pesquisa e cuja realidade não depende de nossos conhecimentos.

Nesse sentido, teorias rivais possuem diferentes perspectivas transitivas, isto é, diferentes interpretações sobre o mundo, mas o mundo de que tratam – sua dimensão intransitiva – é o mesmo, ou não seriam rivais (Collier, 1994). O exemplo que Sayer (2000a) utiliza para ilustrar isso pode ser esclarecedor: a mudança de uma teoria da Terra plana para uma teoria da Terra redonda (dimensão transitiva) não determinou nenhuma mudança no formato da Terra (dimensão intransitiva), mas uma mudança em nossa compreensão sobre essa realidade (dimensão transitiva).

DIMENSÃO INTRANSITIVA DIMENSÃO TRANSITIVA Os objetos da ciência

(aquilo que estudamos no mundo) (discursos científicos sobre o mundo) Teorias científicas Exemplo: O planeta Terra (Sayer, 2000a: 8)

Teoria da Terra plana Teoria da Terra redonda

Quadro 3.1 – Dimensões transitiva e intransitiva da ciência segundo Bhaskar (1898) e Sayer (2000a)

A dimensão intransitiva do conhecimento é sua dimensão ontológica – das coisas que há no mundo – e a dimensão transitiva é epistemológica no sentido de que se refere

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às teorias que construímos sobre o mundo (natural ou social) e por meio das quais podemos gerar conhecimento sobre sua dimensão intransitiva. Assim, o reconhecimento dessas duas dimensões caminha ao lado da estratificação do mundo social na distinção entre ontologia e epistemologia.

Quando se trata de questões sociais, e não físicas, isso se complexifica, pois o mundo social é também socialmente construído, mas essa característica do mundo social não dilui a realidade intransitiva de seus objetos: “embora aspectos do mundo social (como, por exemplo, instituições sociais) definitivamente sejam construídos socialmente, uma vez construídos eles são realidades que afetam e limitam a construção discursiva do social” (Fairclough, 2003: 8). Evidentemente, de acordo com a relação entre discurso e sociedade em ADC (ver Capítulo 2),

assim como a estruturação da realidade social afeta a construção discursiva também nossos modos de representação podem ter efeitos na organização do mundo social. Isso significa que nosso conhecimento acerca do mundo social não pode ser estritamente separado do mundo social em si, pois nossas construções têm implicação sobre o modo como o mundo social se organiza. Mas essa ‘interdependência causal’ entre as dimensões intransitiva e transitiva do conhecimento das coisas sociais não deve ser confundida com a ‘intransitividade existencial’, como explica Bhaskar (1998d: 227, grifos no original):

Enquanto, em geral, no mundo natural os objetos do conhecimento existem e agem independentemente do processo de produção de conhecimento do qual são objetos, na arena social não é assim. O processo de produção de conhecimento pode ser causal e internamente relacionado ao processo de produção dos objetos em questão. Entretanto, quero distinguir essa

interdependência causal, que é um aspecto contingente dos processos, da intransitividade existencial, que é uma condição prévia para qualquer

investigação e se aplica igualmente nas esferas natural e social.

A interdependência causal, então, diz respeito à possibilidade de os objetos das ciências sociais serem afetados pelos processos de construção do conhecimento, o que é visto com bons olhos, já que, como pontua Collier (1994: 15), “a importância prática da teoria é que teorias podem transformar práticas”. Isso não se confunde com a intransitividade existencial dos objetos sociais, que se refere à existência material desses objetos anteriormente ao processo da pesquisa e da construção do conhecimento. A

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alternativa à perspectiva da intransitividade seria crer que as situações sociais que pesquisamos não existem independentemente dos modos como são interpretadas por seus participantes ou por pesquisadores/as (Outhwaite, 1998).

A abordagem das dimensões transitiva e intransitiva da ciência social – entendendo que nosso conhecimento sobre o mundo social, embora não se iguale ao mundo social em si, não pode ser estritamente separado do que existe na sociedade – justifica a existência da ciência crítica que crê que sua prática teórica possa resultar na superação de questões problemáticas. Essa perspectiva se alinha com a ADC, em sua identidade como prática teórica crítica.

A implicação da reivindicação de intransividade dos objetos sociais, especificamente para os estudos do discurso, é que os elementos discursivos que investigamos – sejam discursos como modos de representação de eventos, sejam construções discursivas de identidades – são objetos concretos no sentido de que são, tal como as atividades materiais, “produtos de múltiplos componentes e forças” (Sayer, 2000b: 19).

Assim como discursos contextualmente localizados podem ser explicados em termos causais, podem também ser identificados como tendo poderes causais em eventos. É isso o que justifica a perspectiva de relação dialética entre linguagem e sociedade, reivindicada pela ADC e nem sempre claramente formulada: aspectos discursivos de

práticas sociais, como representações discursivas de eventos e práticas, podem ter efeitos causais na sociedade; podem, por exemplo, legitimar certos modos de ação ou ser utilizadas como base para construções identitárias. Por outro lado, a colonização de diferentes práticas sociais por certas representações discursivas e sua presença em diferentes tipos de texto, e a configuração de ordens do discurso em práticas particulares são também resultados de poderes causais, no sentido de que a organização dos elementos discursivos em práticas é socialmente estruturada.