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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

3.3 Realismo Crítico e epistemologia nos estudos críticos do discurso No capítulo anterior, vimos que as perspectivas ontológicas que orientam

3.3.1  Estratificação do mundo social 

Um dos aspectos básicos do RC é a distinção entre ontologia e epistemologia, “uma

reivindicação da ontologia, teoria do ser, como distinta da epistemologia, teoria do conhecimento” (Bhaskar & Lawson, 1998: 5). Com base nessa distinção, o RC oferece

uma crítica ao que denomina ‘falácia epistêmica’: a redução da questão do que existe à questão do que somos capazes de conhecer (Bhaskar, 1998a). A falácia epistêmica é associada ao Realismo Empírico, ou Empiricismo, que assume a possibilidade de apreender por observação tudo o que existe. Em outras palavras, iguala o estrato potencial ao empírico, propondo a existência de um ‘mundo empírico’:

Essa expressão [mundo empírico] sugere, por um lado, um mundo definido por suas relações com nossa experiência, e, por outro lado, o único mundo que há (ou no mínimo o único acessível para nós). Na expressão ‘mundo empírico’ está encerrada a permissão para reduzir as questões sobre o que existe (questões ontológicas) às questões sobre o que podemos conhecer (questões epistemológicas) (Collier, 1994: 36).

Essa crítica da redução da realidade ao estrato empírico tem por base a estratificação da realidade social no RC, segundo a qual se distinguem os domínios do

potencial, do realizado e do empírico (ver Capítulo 2). Enquanto o potencial e o realizado são categorias ontológicas, referentes respectivamente às estruturas e poderes causais dos objetos sociais e ao que se realiza quando esses poderes causais são ativados em eventos, o empírico é uma categoria epistemológica que se refere ao que podemos observar (Fairclough, Jessop & Sayer, 2002).

De acordo com essa estratificação da realidade social, o potencial é distinto e maior que o domínio do realizado, no sentido de que nem todos os poderes causais de um objeto são ativados em eventos, dadas as contingências contextuais. Tendo isso em vista, o RC denuncia também o equívoco de se considerar o realizado equivalente ao potencial, o

que nega a existência de estruturas subjacentes e “não deixa espaço para o potencial, para os poderes que podem tanto ser ativados quanto estar dormentes” (Sayer, 2000b: 12).

Distinguir o potencial do realizado significa entender que nem tudo o que poderia acontecer dados os poderes causais acontece de fato, devido às contingências da articulação

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de elementos sociais em um dado momento, que podem bloquear possibilidades que ficam não-realizadas. Em termos epistemológicos, essa estratificação da realidade implica que em análises é possível reivindicar causas não observáveis (no domínio do potencial, dos poderes causais) para efeitos em eventos (no domínio do realizado) observados empiricamente (no domínio do empírico). Em outras palavras, significa que a emergência de eventos realizados pode ser explicada com base na causação. Esse argumento epistemológico é transcendental no sentido de que a explanação de um processo social pode ter por base a “descrição de algo que o produz ou é sua condição” (Bhaskar, 1986: 11).

A explanação de objetos/processos sociais com base na causação, isto é, na ativação de poderes causais, não pressupõe uma lógica de regularidades entre causas e efeitos. A causação “não é entendida como um modelo de sucessões regulares de eventos, e então a explanação não depende de se descobrirem regularidades ou leis sociais” (Sayer, 2000b: 14). No RC, a explanação depende, em vez disso, da identificação de mecanismos

causais e das condições que os ativaram/bloquearam.

Recordemos os exemplos citados no capítulo anterior, sobre a identificação de poderes causais em representações identificadas em documentos etnográficos da pesquisa: Maria atribuiu ao Movimento o poder causal de possibilitar a emergência do protagonismo juvenil; Vera identificou a falta de recursos humanos no Movimento como mecanismo que bloqueia sua capacidade de manter certas atividades em funcionamento (ver Seção 2.2). A identificação desses modos de representação pelos atores sociais implicados em uma prática estudada é parte da análise social, mas o que se deseja em uma crítica explanatória é, além disso, identificar poderes causais que não lhes sejam tão evidentes. Isso porque a experiência direta nos fornece dados empíricos, mas o conhecimento é gerado quando se cotejam esses dados a nossos conhecimentos sobre as práticas e às teorias que sustentam nossas análises (Bhaskar & Lawson, 1998). No caso da pesquisa sobre a crise do Movimento, o objetivo é localizar mecanismos sociodiscursivos que bloqueiam o sucesso das aspirações da instituição – notadamente em relação ao protagonismo juvenil – e modos de superá-los.

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efeito/evento mecanismo

Condições(outros mecanismos) estrutura

Figura 3.1 - Visão realista crítica de causação (Sayer, 2000b: 15)

A focalização das condições contextuais como relevantes para a explanação da realização de um evento assegura a perspectiva da vida social como um sistema aberto: em toda prática social há a atuação simultânea de diversos mecanismos. A conjunção desses mecanismos implica que as explanações sociais não podem conter previsões, assim como os eventos sociais não podem ser previstos (Sayer, 2000b).

As implicações epistemológicas da estratificação da realidade proposta no Realismo Crítico, então, são: (i) o que se realiza em eventos e o que podemos observar do mundo social não esgotam o que existe, uma vez que há poderes causais subjacentes às estruturas; (ii) isso não significa que não seja possível gerar conhecimento sobre aquilo que não podemos, diretamente, observar empiricamente, já que podemos, com base no conhecimento sobre as práticas, fazer abstrações sobre os poderes causais ativados/bloqueados em um dado evento; (iii) como a vida social é um sistema aberto, aquilo que acontece não esgota o que poderia ter acontecido, pois pode haver poderes causais latentes; (iv) toda explanação social é falível e passível de ser superada, pois as estruturas não são transparentes à razão.

Uma vantagem da crítica explanatória baseada na estratificação da realidade é a visão do mundo social como um sistema aberto, dadas as contingências contextuais que tornam imprevisíveis as mudanças sociais. Identificar contingências que bloqueiam possíveis mudanças sociais, que sejam desejáveis em um contexto de injustiça social por exemplo, é um modo de potencialmente contribuir para sua superação. Tal contribuição é qualificada como potencial porque não basta desenvolver pesquisa com o objetivo de gerar conhecimento acerca de obstáculos para a mudança social e possíveis modos de superá-los, é preciso também formular meios de fazer com que esse conhecimento seja útil no contexto pesquisado (sobre isso, veja discussão no Capítulo 4).

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