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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

3.3 Realismo Crítico e epistemologia nos estudos críticos do discurso No capítulo anterior, vimos que as perspectivas ontológicas que orientam

3.3.3  Modelo Transformacional da Atividade Social 

A perspectiva transformacional da relação entre estrutura e ação social é fundamental para uma ciência crítica, que procura estudar questões problemáticas na vida social, como a exclusão social. É preciso reconhecer as estruturas como existindo previamente aos eventos estudados, embora sejam nos eventos historicamente criadas,

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reificadas e transformadas – um/a pesquisador/a crítico/a da exclusão social que não perceba as estruturas causadoras da miséria e da favelização, por exemplo, como prévias às interações e aos eventos apresentará uma inconsistência ontológica grave, com conseqüências epistemológicas para a explanação social.

Uma tal perspectiva do mundo social é também fundamental para se acercar da relação entre estrutura e ação social com base nos conceitos de práticas e posições – as estruturas são tanto a condição (sincrônica) quanto o resultado (diacrônico) da ação social, ou seja, são prévias às práticas mas podem também ser transformadas nas práticas (ver Capítulo 2). Para Bhaskar (1989: 4), “as relações em que as pessoas entram pré-existem aos indivíduos cuja atividade as reproduz ou as transforma. E é a essas estruturas de relações sociais que o realismo dirige sua atenção (...) como chaves explanatórias para entender eventos sociais”.

O foco nas relações sociais como estruturadas, isto é, pré-existentes, garante uma perspectiva transformacional entre tais relações e as atividades em que atores sociais se engajam. As relações pré-estabelecidas são condições necessárias para os eventos estruturados por essas relações, e os eventos são potencialmente transformadores dessas mesmas relações, dependendo das contingências contextuais. Um conceito mediador entre relações sociais e atividades é o de posições:

Uma posição precisa existir previamente a sua ocupação, e mesmo que as mesmas pessoas se tornem ocupantes de posições elaboradas recentemente, o novo conjunto de relações internas nas quais estão implicadas exerce uma influência condicional sobre elas – que é causalmente detectável precisamente através de suas práticas transformadas e da elaboração da agência (Sayer, 1998: 202).

O conceito de posição é mediador entre relações sociais e atividades sociais porque permite um foco simultâneo na ação individual – de atores sociais que ocupam contextualmente posições previamente estabelecidas – e nas práticas sociais estruturadas. Em RC, “influência condicional” não é sinônimo de determinismo: significa que as relações

sociais estabelecidas nas novas posições ocupadas influenciam as práticas inerentes a essas novas posições. Entretanto, como minhas análises indicam, a mudança de posição dentro de uma instituição estruturada não é um processo livre de conflitos – as posições anteriores continuam exercendo pressões para a continuidade de práticas internas às relações prévias.

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Assim, a mudança de posição de ‘menina’ para ‘menina-educadora’ acarreta conflitos entre as posições de ‘menina’ e de ‘educadora’, sobretudo em decorrência de relações hierárquicas difíceis de superar (ver Parte II). Os conceitos de práticas e posições, então, mostram-se epistemologicamente produtivos, no sentido de que possibilitam a explanação desses conflitos decorrentes de hierarquias e sua influência para a ação social.

Assim, os conceitos mediadores de práticas e posições permitem focalizar questões relacionadas à distribuição de condições estruturais para a ação, nesse caso especialmente à alocação diferenciada de pessoas e grupos a funções e papéis dentro da instituição – ser uma ‘menina-educadora’ é mais que articular funções e papéis tanto de ‘menina’ quanto de ‘educadora’, é experimentar as tensões existentes entre uma e outra posição. Uma implicação epistemológica desse modelo transformacional estrutura/ação social, baseado na mediação de práticas e posições, então, é a atenção analítica que devemos ter nas relações sociais como base para as explanações.

Como vimos no capítulo anterior, o Modelo Transformacional da Atividade Social garante que, apesar do constrangimento das atividades pelas estruturas, essa restrição é sempre parcial, no sentido de que há possibilidades para a mudança social. Em termos epistemológicos, isso significa que é possível propor projetos de pesquisa emancipatórios, capazes de revelar: “(a) uma necessidade; (b) algum obstáculo impedindo a realização dessa necessidade; (c) alguns meios para a remoção desse obstáculo” (Collier, 1994: 183).

Tendo em vista a figura que ilustra, em termos ontológicos, o modelo transformacional da relação estrutura/ação (Bhaskar, 1998d: 217; ver Figura 2.1, no Capítulo 2), podemos propor a Figura 3.2 a seguir, como uma ilustração da implicação epistemológica desse modelo transformacional para pesquisas sociais:

(b) bloqueio da satisfação da necessidade

Estrutura

recurso/constrangimento reprodução/transformação

Ação

(c) Alguns meios para a (a) necessidade remoção desse bloqueio

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Assim, pesquisas comprometidas com a mudança social podem basear-se epistemologicamente no Modelo Transformacional da Atividade Social de Bhaskar (1989), visando identificar necessidades não-satisfeitas de atores sociais envolvidos nas práticas estudadas, mecanismos que possivelmente bloqueiem a satisfação dessas necessidades, em termos das estruturações sociais, e modos potenciais para a superação desses mecanismos e, então, de transformação dos aspectos estruturais considerados problemáticos. Nas palavras de Collier (1994: 182), “a ciência social não leva em conta apenas as crenças e suas relações causais com as estruturas, ela também revela necessidades humanas, suas frustrações e as relações entre essas necessidades e frustrações e a estrutura social”.

Esse modelo serve de inspiração ao enquadre para ADC proposto por Chouliaraki

& Fairclough (1999), notadamente nas etapas em que a autora e o autor sugerem que se identifiquem, em relação ao problema social parcialmente discursivo estudado, obstáculos para serem superados, a função do problema na prática e possíveis modos de se ultrapassarem os obstáculos (sobre a relação entre o enquadre para ADC de Chouliaraki &

Fairclough e o RC, veja também Ramalho, 2007).