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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

4.2 Geração e coleta de dados: as estratégias de pesquisa

4.2.1    Observação participante

A observação participante origina-se, como boa parte dos métodos etnográficos, da antropologia social e cultural. Opõe-se à observação (pretensamente) objetiva, em que o contexto social pesquisado é abordado ‘de fora para dentro’. A observação participante, ao contrário, define-se pela perspectiva interna, situada na ação cotidiana, em que o/a pesquisador/a envolve-se diretamente nas atividades dos/as participantes da pesquisa (Bogdewic, 1992). Uma vantagem da observação participante é o acesso a certas assunções que em uma dada comunidade são tomadas como tácitas e que, de outra forma, apenas seriam disponibilizadas por meio das representações da própria comunidade (Gans, 1999).

Geertz (1989: 27) demonstra preocupação com a observação do comportamento dos/as participantes em pesquisa etnográfica. Para ele, é “através do fluxo do comportamento – ou, mais precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram articulação”. Mas a observação participante ultrapassa esse primeiro objetivo de anotação da ação social, de sua transformação em relato passível de análise: a observação participante consiste não apenas em estar presente no contexto a ser pesquisado, mas em participar das atividades observadas, tornar-se um ‘membro do grupo’. Assim, sendo eu um membro externo ao Movimento, um dos objetivos da observação participante foi, na medida do possível, tornar-me um membro interno. Isso é relevante inclusive para uma melhor percepção das práticas, atividades e interações em curso no campo (Holliday, 1998).

A observação participante foi o método inicial da pesquisa, porque uma aproximação paulatina com relação ao contexto de pesquisa e aos/às participantes assegura maior validade dos dados, uma vez que aos poucos se conquista mais confiança dos sujeitos envolvidos e menos interferência da presença da pesquisadora no contexto de pesquisa – isso não significa que eu tenha alimententado a ilusão de me manter neutra em campo ou, mais que isso, que a neutralidade tenha sido meu objetivo. Significa apenas que

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me tornar, ainda que perifericamente, membro do grupo com o qual realizei minha pesquisa, e assim estabelecer relação prévia com as participantes, foi um modo de assegurar a geração de dados – no sentido do acesso a campo – e a validade dos dados – no sentido da obtenção de informações no momento das entrevistas.

A primeira preocupação de quem pretende ser um/a observador/a participante é como conseguir ingressar na comunidade. É útil nessa abordagem inicial contar com ‘participantes-chave’ (embora o termo ‘informante-chave’ já esteja cristalizado na literatura especializada, prefiro evitar o termo ‘informante’ por questões éticas referentes à relação entre pesquisadores/as e participantes de pesquisas, por isso optei por ‘participantes-chave’). Segundo Gilchrist (1992), ‘participantes-chave’ diferem de outros/as participantes pela natureza de sua posição na comunidade e pela relação que estabelecem com o/a pesquisador/a. Como o objetivo aqui é ser introduzido/a no contexto da pesquisa, é importante que essa pessoa seja membro ativo da comunidade, que conheça muitas pessoas no grupo, que tenha um status elevado e, sobretudo, que deseje partilhar seu conhecimento com o/a pesquisador/a. A vantagem de se trabalhar com uma ‘participante-chave’, nesta pesquisa especificamente, foi a facilidade de acesso a outras participantes: é mais fácil ter acesso a um grupo de atores sociais quando se é introduzida por um membro da comunidade.

Meu primeiro contato no Movimento foi com a educadora Júlia, que integrava as atividades entre a sede e os núcleos de base do Movimento. Por isso ela foi uma ‘participante-chave’ para meu acesso a outros atores sociais. Foi ela que me apresentou às jovens líderes de núcleo e garantiu meu acesso a atividades nos núcleos de base e na sede. Foi ela também que demostrou maior preocupação com minhas frustrações na realização da pesquisa e me ajudou a montar planejamentos mais adequados ao contexto de crise do Movimento. Mais que isso, manteve o entusiasmo com meu trabalho e tantas vezes me encorajou com seu “não desiste não, Vivi”.

Acompanhei, como observadora participante, as atividades de dois dos núcleos de base do Movimento em cidades satélites de Brasília, enquanto esses núcleos estiveram ativos. Isso se deu durante oito meses, entre abril e dezembro de 2005. Inicialmente, pretendia acompanhar as atividades de todos os quatro núcleos, mas questões materiais

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levaram-me a limitar esse trabalho a dois deles, aqui identificados como Campina e Brasiliana. A distância das cidades satélites e, sobretudo, o fato de eu custear meu deslocamento com recursos provenientes de minha própria bolsa de estudos não demoraram a me mostrar a inviabilidade da observação em todos os núcleos.

As atividades em questão nessa etapa de observação nos núcleos eram oficinas de organização de meninos e meninas, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

As estruturas organizacionais de cada um desses núcleos eram bem diferentes. Enquanto Brasiliana dispunha de um galpão com quadro-negro e carteiras, ao estilo sala de aula (o núcleo coordenado por Joana; veja a seguir), as oficinas do núcleo de Campina (coordenado por Maria; veja a seguir) eram realizadas na área externa da casa da mãe de uma das meninas do núcleo, sem instalações adequadas ao trabalho desenvolvido. As oficinas de ambos os núcleos, contudo, funcionavam de maneira semelhante: centravam-se no ECA – sobretudo em

seu Artigo 4º, que trata dos direitos de crianças e adolescentes “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” como deveres do Estado, da sociedade, da comunidade e da família – e nos mecanismos de defesa em casos de violação desses direitos (Estatuto da Criança e do Adolescente, Conanda, 2002: 22).

Desde o início da pesquisa, entretanto, encontrei o Movimento já bastante enfraquecido devido ao encerramento do projeto financiado pelo Sécours Catholique e à ausência de novos projetos voltados para a organização de meninos e meninas (ver Capítulos 1 e 5). Uma conseqüência direta disso é que esse trabalho de observação nos núcleos deu-se de maneira bastante irregular: algumas vezes percorri largas distâncias sem resultado, pois ao chegar constatava o cancelamento de uma atividade previamente agendada; outras vezes os encontros de que pretendia participar eram cancelados por diversos motivos, por exemplo a estação de chuvas. A desestruturação dos núcleos de base, como conseqüência da crise financeira e pedagógica, limitou sobremaneira a etapa de observação nesses núcleos, e acabou por impossibilitar a continuidade desse trabalho quando do encerramento completo das atividades de nucleação, em dezembro de 2005.

Quanto às atividades da sede do MNMMR/DF na Asa Norte de Brasília, acompanhei

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reuniões foram gravadas em áudio, com a permissão de todos/as os/as presentes, e transcritas para análise (ver Seção 4.2.5); as mobilizações para as manifestações de 18 maio (dia nacional de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes) de 2005 e de 2006; algumas oficinas do Projeto Chic.com (projeto de redução de danos, levado à cabo pelo MNMMR/DF em 2006, voltado para o problema da exploração sexual de

crianças e adolescentes e que visava formar multiplicadores/as de conhecimento acerca dos direitos e das instâncias de garantia de direitos); a Assembléia Nacional do Movimento, na sede nacional, na Asa Sul, em abril de 2006; a mobilização contra o rebaixamento da maioridade penal no Brasil em fevereiro de 2007; além da observação participante em atividades cotidianas da sede, como o atendimento a adolescentes em situação de rua que buscavam o Movimento, a articulação para aprovação de projetos de captação de recursos, a produção desses projetos – de que muitas vezes participei auxiliando na redação e fazendo a revisão lingüística –, a recepção de estudantes universitários/as interessados/as em gravar entrevistas com membros do Movimento etc.

Considero que a etapa de observação participante obteve sucesso tanto no estabelecimento de relações de confiança quanto na tentativa de me tornar membro do grupo, o que se nota no fato de eu ter sido convidada a participar de diversas atividades do Movimento – como reuniões, assembléias, manifestações – e ter sido solicitada a colaborar com a produção e a revisão de projetos e na ‘tradução’ de textos jurídicos.

Envolvi-me, por exemplo, na produção do projeto para formação de um núcleo de organização de adolescentes e jovens trabalhadores/as da Rodoviária do Plano Piloto, tanto em sua versão inicial, cujo financiamento foi negado pelo Instituto HSBC

Solidariedade, quanto em sua versão final, que foi selecionada em edital da Petrobrás, vivenciando, ao lado das participantes da pesquisa, a correria do último dia para entrega do projeto, a ansiedade da espera, a frustração da resposta negativa e a esperança trazida pelo desfecho positivo.

Sobre o trabalho de produção da primeira versão desse projeto, participei de uma reunião na sede do MNMMR/DF em novembro de 2005, com a Júlia e a Paula, então

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Hoje fui no Movimento, na Asa Norte, pr’uma reunião com a Júlia e a Paula a respeito de captação de recurso. Vamos escrever dois projetos: um para o Brazil

Foundation, para Brasiliana, e outro para o HSBC, para o projeto dos/as adolescentes

trabalhadores/as da rodoviária. Eu que vou escrever a primeira versão. A Júlia me passou um projeto antigo, para eu ler. É o projeto do tempo em que a Marília, a Joana, a Amanda e a Maria eram meninas (1997). Segundo a Júlia, do tempo em que os núcleos funcionavam... O projeto inicial para a rodoviária foi escrito por uma jovem e um jovem desse tempo do Movimento – a Karina e o Rogério (Nota de campo registrada em 18 de novembro de 2005).

Ambos os projetos citados na nota foram recusados. Cerca de seis meses depois, entretanto, o projeto para a rodoviária foi ampliado para ser submetido ao edital da Petrobrás. Novamente me vi envolvida na produção dessa versão do projeto, conforme registrei no diário de campo:

Ontem a aula da Izabel acabou mais cedo e eu aproveitei para passar no Movimento. Cheguei lá e estava todo mundo envolvido com o projeto de captação que vão mandar para a Petrobrás – é uma ampliação do projeto de organização para a rodoviária. O prazo é amanhã e estava todo mundo doido! Me pediram para fazer a revisão e eu disse que sim (embora eu esteja meio atolada em trabalho!). (...)

De noite, quando eu fui ver meu e-mail, o projeto da Petrobrás estava lá, a Maria tinha mandado. 23 páginas! “Vou ter de fazer isso amanhã depois da aula”, eu pensei – porque hoje é terça e eu dou aula o dia todo. Pois bem, hoje de manhã quando eu olhei de novo meu correio, tinha um e-mail da Maria pedindo pra eu fazer a Apresentação do projeto! Eu não tinha tempo e o prazo já é amanhã. Desesperei e liguei pra ela pra dizer que não dava, que era impossível, que eu ia dar aula o dia todo, que não dava tempo. Ela tava no Nacional e eu consegui falar com ela. Caramba! Pelo menos eu sei que elas contam comigo mesmo! Bem, eu fiz o que podia: são duas horas da manhã e só agora eu consegui terminar a revisão do projeto. Não tinha mesmo condição de fazer a apresentação!!! (Nota de campo registrada em 18 de julho de 2006).

Outro exemplo de meu engajamento com o MNMMR/DF, que extrapolou o contexto

do Movimento e teve uma conseqüência mais direta na minha experiência estritamente acadêmica, foi a militância contra o rebaixamento da maioridade penal no Brasil, em 2007. Esse envolvimento levou-me não só ao Congresso Nacional – para participar da reunião do Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) – mas também me levou à produção do texto

“Dessemelhança e expurgo: a mídia e o debate sobre a violência e o rebaixamento da maioridade penal”, publicado no Mídia & Política e depois, para minha surpresa, capturado pelo Observatório da Imprensa como “O debate sobre violência e rebaixamento da idade

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penal”.26 Meu objetivo era colocar o conhecimento acadêmico – nesse caso, as ferramentas da Análise de Discurso Crítica – em prática no debate que me parecia urgente. Não vejo esse envolvimento com a militância do Movimento e as relações próximas que estabeleci com as participantes como problemáticos para a pesquisa, ao contrário: não só me fortalecem – no sentido a que me referi na seção anterior – como aumentam a possibilidade de meu trabalho ser útil ao Movimento, que é, no fim, a minha meta (sobre o engajamento em pesquisa etnográfica, veja Denzin, 1999; sobre observação participante e engajamento do/a pequisador/a, veja Atkinson & Pugsley, 2005).

A experiência inicial com a observação participante foi, também, fundamental para me acercar de conceitos-chave da organização, como o de protagonismo juvenil, que se tornou um conceito central também para o projeto de pesquisa e para as etapas posteriores de geração de dados. Além disso, por meio da observação participante pude ter acesso a diversas atividades do Movimento e conhecer outras organizações com as quais o MNMMR/DF se relaciona. Isso foi relevante para a compreensão das práticas sociais

das quais o Movimento participa. A etapa de observação participante permitiu, ainda, proceder ajustes no planejamento inicial da pesquisa, de modo a torná-lo adequado ao contexto pesquisado. Nesse sentido, pude perceber, desde o início, a crise em que o Movimento se encontrava – tanto em termos financeiros quanto administrativos, pedagógicos e organizacionais –, o que foi confirmado em diversas interações pelas representações de membros do grupo. Essa conjuntura de crise obrigou-me a reavaliar etapas previstas para o trabalho de campo. Talvez esse seja o principal mérito da observação como primeira etapa de pesquisas colaborativas. No caso específico desta pesquisa, a observação foi também fundamental para o conhecimento da ação social e das (redes de) práticas sociais como componentes ontológicos do mundo social.

26 Os sítios do Mídia & Política e do Observatório da Imprensa são <http://www.midiaepolitica.unb.br/index.php> e

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