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P RÁTICA SOCIAL E DISCURSO : PERSPECTIVA ONTOLÓGICA EM ADC

2.4 Análise discursiva textualmente orientada

Ainda que as relações com disciplinas das ciências sociais sejam fundamentais para a constituição da ADC como interdisciplina, sua origem identifica-se nos estudos

lingüísticos, mais especificamente na Lingüística Crítica (LC), desenvolvida na década de

1970 na Universidade de East Anglia (Wodak, 2003a). Para Blommaert (2005: 22), a relevância da LC para o desenvolvimento da ADC decorre de que a LC “voltou-se para

questões tais como o uso da linguagem em instituições sociais e as relações entre linguagem, poder e ideologia, e proclamou uma agenda crítica para a análise lingüística”, abrindo campo para o posterior estabelecimento das relações interdisciplinares que se tornariam fundamentais para a constituição da ADC (ver Seção 2.1). Embora Wodak

(2003a) chegue a igualar a LC à ADC, utilizando os dois rótulos como permutáveis em seu

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LC é uma redução de questões fundamentais que foram explicitadas pela ADC”. Pode-se

dizer, então, que a ADC ampliou em termos de teoria e de aplicação a tradição de estudos

lingüísticos a que se filia (Resende e Ramalho, 2006).

Em termos teóricos, a ADC explicita uma diferença notável, em relação à LC, no

modo de entender a relação entre linguagem e sociedade, avanço resultante da articulação estabelecida com a teoria social recente no que se refere especificamente às teorizações que buscam “a superação da divisão improdutiva entre teorias da estrutura e teorias da ação” (Fairclough, 2000: 170). Para Fowler (2004: 209, grifos meus), um dos fundadores da LC, as representações lingüísticas são “moldadas por sistemas de valores

que estão impregnados na linguagem”, ou seja, na perspectiva da LC que deu origem à ADC

as representações lingüísticas refletem as estruturas sociais. Já para a ADC, a relação entre

linguagem e sociedade é interna (Fairclough, 1989), isto é, textos como parte de práticas sociais não apenas recebem informação oriunda das estruturas sociais como também têm efeitos na reprodução/transformação dessas mesmas estruturas. Por isso relações sociais e identidades apresentam uma “faceta discursiva” (Magalhães, 2004) e são reformuladas em instâncias discursivas concretas.

Em termos de escopo e aplicação, a ADC acrescentou aos estudos lingüísticos um

interesse na investigação do aspecto discursivo de práticas problemáticas na vida social contemporânea (Chouliaraki e Fairclough, 1999). Nesse sentido, a “dimensão crítica relaciona a ADC com uma preocupação explícita com o exercício do poder nas relações

sociais” (Magalhães, 2005: 6), e uma conseqüência disso é a incorporação de questões que antes pareciam alheias ao campo da Lingüística (Martins, 2005; Silva, 2008). Uma dessas questões é a pobreza, a precariedade a que estão expostas tantas pessoas ao redor do mundo, problema que tem inspirado meu próprio trabalho.22 Outras questões que se têm

22 Quero destacar a pertinência de pesquisas sobre esse tema em ADC fazendo referência à Red Latinoamericana de

Estudios del Discurso sobre la Pobreza (REDLAD), coordenada por Laura Pardo, da Universidade de Buenos Aires. O

volume 2 (2) da revista Discurso & Sociedad, de 2008, foi dedicado a trabalhos desse grupo, que congrega pesquisadores/as de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Venezuela. No Brasil, o grupo de pesquisa intitulado O

conceito de família e a pobreza nas ruas: um enlace analítico crítico voltado para o contexto brasileiro, coordenado por Denize Elena

Garcia da Silva, da Universidade de Brasília, é um desdobramento da REDLAD. Como resultados desse projeto, já

foram defendidas na Universidade de Brasília duas dissertações de mestrado, ambas em 2007: “Ruptura familiar e pobreza: a gramática da experiência no discurso de adolescentes”, de Miguel Ângelo Moreira, e “Discurso de adolescentes em situação de rua: da ruptura familiar à exclusão”, de Kelly C. A. Moreira.

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mostrado pertinentes são os preconceitos de raça e gênero e os modos como são veiculados na mídia e em ambientes institucionais, a exclusão de portadores de deficiências ou necessidades especiais, as políticas de imigração no contexto do novo capitalismo, o status hegemônico do discurso neoliberal e sua naturalização em diversos tipos de texto etc.

No que se refere aos métodos para análise de textos, as diversas versões de ADC se

apropriam de conceitos e categorias desenvolvidos por vertentes da Lingüística Funcional – a Lingüística Textual, a Sociolingüística, a Pragmática, a Lingüística Sistêmica Funcional etc. – e os põem em funcionamento para seus objetivos de crítica social. Nos termos da LSF, a função

textual da linguagem é instrumental de suas demais funções – representação discursiva do mundo, estabelecimento de relações sociais, alter- e auto-identificação, ação social mediada pela linguagem. Nesse sentido, a linguagem oferece recursos lingüísticos – textuais – para que essas funções possam ser organizadas em textos pertinentes a interações específicas (Ghio & Fernández, 2005). Os recursos disponíveis são selecionados por atores sociais para sua interação por meio da linguagem, e essa seleção pode ser analisada com vistas à relação entre os recursos textuais utilizados e a natureza contextual/histórica das interações – em análises discursivas críticas que visam ao mapeamento da natureza social de textos.

Assim, a articulação de categorias lingüísticas de análise se justifica pela relação que possibilitam estabelecer entre os recursos lingüísticos mobilizados em textos e categorias sociológicas como poder, hegemonia, ideologia, identidade. Isso pode fazer crer que a análise lingüística é um elemento menor da crítica sociodiscursiva, o que não é verdade: analistas de discurso críticos/as prezam, ao contrário, análises textualmente orientadas capazes de mapear escolhas lingüísticas em contextos sociais amplos, a fim de desenvolver uma compreensão acurada do funcionamento social da linguagem. Ao invés de meramente descrever estruturas lingüísticas e sua utilização em textos, esses/as analistas interessam-se por explicá-las em termos da natureza das práticas sociais, focalizando as relações entre estruturas lingüísticas selecionadas e relações de poder que atravessam a sociedade (van Dijk, 2001).

A vantagem de uma análise de discurso textualmente orientada é oferecer subsídios para uma análise social fundamentada em dados lingüísticos que sustentem a crítica

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explanatória. Por meio de análises discursivas críticas, é possível identificar conexões entre escolhas lingüísticas de atores sociais ou grupos e os contextos sociais mais amplos nos quais os textos analisados são formulados. Assim, é gerado conhecimento acerca da interiorização de discursos na construção de identidades e na constituição de relações sociais, acerca da utilização de estruturas lingüísticas com propósitos políticos, acerca da distribuição desigual do acesso a elementos discursivos, acerca da relação entre os momentos discursivos e não discursivos de práticas sociais específicas.

A ADC, então, provê meios para investigar os modos como a linguagem figura na

vida social, possibilitando o desvelamento da universalização de discursos particulares e da vinculação de textos particulares a ideologias, entendidas como construções simbólicas a serviço da manutenção de estruturas de dominação (Thompson, 1995). Por isso a ADC é considerada uma ferramenta para pesquisas compromissadas com

objetivos éticos e políticos, uma vez que um objetivo de pesquisas dessa natureza é apontar como certos discursos naturalizam injustiças sociais e dissimulam problemas sociais, e mostrar como isso se realiza em instanciações discursivas concretas, a partir de uma análise minuciosa de elementos lingüísticos nos textos.

Considerando que significados ideológicos são tanto mais eficazes quanto menos transparentes (Bakhtin, 2002 [1929]; Fairclough, 1989), a análise textualmente orientada de instanciações discursivas assume relevância na crítica social contemporânea. Por meio desse tipo de análise é possível demonstrar empiricamente os papéis da linguagem na sociedade, conferindo uma resposta de base lingüística às inquietações de cientistas sociais acerca do discurso e consolidando o papel de lingüistas críticos/as em redes interdisciplinares engajadas no trabalho científico como forma de crítica social e luta emancipatória.

A eficácia de pesquisas dessa natureza para a transformação de relações de poder no seio de sociedades contemporâneas, entretanto, depende ainda de um salto que a

ADC não foi capaz de lograr satisfatoriamente: a superação dos círculos acadêmicos e

intelectuais. Para tanto, será imprescindível um esforço no sentido de alcançar outros públicos para nossos textos além de nossos próprios pares e divulgar muito mais amplamente os avanços que nossas pesquisas nos permitem em relação ao conhecimento acerca do funcionamento social da linguagem.

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Não se trata de tarefa fácil, mas creio que um caminho passa pela consolidação de redes de pesquisadores/as engajados/as com temas particulares a fim de buscar modos de influenciar políticas públicas e ações sociais protagonistas, considerando que “a condição principal para que um programa interdisciplinar possa se desenvolver é um interesse compartilhado por problemas no mundo e o desejo de contribuir para sua solução” (Blommaert, 2005: 19). Temos muito ainda a fazer para conquistar a desejável articulação entre instituições, departamentos e grupos de pesquisa, tanto em nosso campo de estudos quanto com pesquisadores/as de outras áreas. O desafio é ainda maior se pensarmos na necessária articulação com atores sociais atuantes em outras esferas para além da Academia. Tudo isso, entretanto, poderá nos permitir somar esforços para multiplicar a abrangência de nosso alcance.

Algumas considerações

A ADC não é um campo fechado em dois sentidos. Primeiro, não se trata de uma

perspectiva teórico-metodológica homogênea, ao contrário, configura-se um conjunto de propostas teóricas sobre o discurso e seu funcionamento social e de enquadres metodológicos para análise de textos escritos, falados, visuais, multimodais. Assim, a ADC

não possui uma superfície claramente definida, sendo necessário delimitar vínculos e perspectivas quando se pretende tornar claro de que tipo de ADC se fala.

Em segundo lugar, a ADC não é um campo fechado porque um de seus pressupostos

básicos é a interdisciplinaridade. Isso se deve à percepção de que para a análise de textos enquanto instâncias discursivas a Lingüística não é suficiente. Assim, as diversas abordagens de ADC recorrem a diferentes relações entre disciplinas para recontextualizar

conceitos oriundos das Ciências Sociais.

A heterogeneidade de abordagens deve ser celebrada como uma diversidade capaz de garantir diálogos profícuos que possibilitam um constante aperfeiçoamento das ferramentas de que dispomos para analisar instanciações discursivas contextualmente situadas. Não se trata de um vale-tudo epistemológico, pois há marcantes continuidades que garantem a coerência necessária ao campo. Em primeiro lugar, as diversas abordagens críticas ao discurso

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mantêm um foco na relação entre linguagem e sociedade, entendendo que o discurso, como parte das práticas sociais, é tanto influenciado pelas estruturas/práticas sociais como influencia sua manutenção ou transformação. Uma vez que textos são tanto socialmente estruturados quanto estruturantes, precisamos examinar não só os modos como se produzem significados em textos, que então ajudam a reproduzir/transformar as estruturas sociais, mas também os modos como a produção de significados é também constrangida/possibilitada por aspectos não-semióticos emergentes da estrutura social.

Além disso, o foco na análise lingüística de textos, recorrendo-se a ferramentas desenvolvidas por diversos ramos da Lingüística Funcional como categorias de análise, é uma constante observável nas diferentes abordagens de ADC. A Lingüística é utilizada por analistas

de discurso críticos/as como instrumento para a análise e a crítica de problemas sociais discursivamente manifestos, a fim de mapear os modos pelos quais escolhas lingüísticas de falantes ou grupos de atores sociais relacionam-se a questões sociais mais amplas.

Esse interesse por problemas sociais parcialmente discursivos é outra continuidade notável nas diversas abordagens de ADC. Como prática teórica crítica, a ADC assume uma

agenda de pesquisa engajada com problemas relativos à distribuição de recursos materiais e simbólicos nas sociedades contemporâneas. Por isso o conceito de prática social é caro à

ADC, pois se entende que assim como a linguagem pode ser utilizada como um recurso

para a manutenção de relações exploratórias baseadas em poder, é também um recurso potencial para a mudança social.

A opção pela ADC como campo de investigação é, portanto, uma decisão acima de

tudo política. Muitos desafios são impostos àqueles/as que enveredam por esse caminho. Dadas as relações interdisciplinares de que dependemos para garantir a pertinência de nossas análises lingüísticas, dada a necessidade de apresentar análises lingüisticamente orientadas e contextualmente localizadas e politicamente posicionadas, enfim, dada essa conjunção de fatores que torna o trabalho de analistas de discurso complexo e instigante, como conquistar o necessário equilíbrio entre a contextualização do problema, a profundidade da análise e da reflexão teórica e a defesa de interesses ligados à justiça e à igualdade? Sem dúvida, pesquisas em Análise de Discurso Crítica estão longe de ser empreendimentos fáceis.

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A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO EM ADC: