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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

NATUREZA DA RELAÇÃO CAUSAL EFEITO RETÓRICO ELEMENTOS RELACIONADOS

6.1 O Grupo Focal

O recorte selecionado da transcrição do Grupo Focal 1, centrado nas falas de Maria e Amanda, é analisado primeiramente em termos dos discursos que as duas jovens articulam em suas representações do Movimento e do protagonismo juvenil. Como sabemos, um mesmo aspecto do mundo pode ser representado segundo diferentes discursos, e textos representando o mesmo aspecto do mundo podem, portanto, articular diferentes discursos, em relações dialógicas harmônicas ou polêmicas. A análise interdiscursiva de um texto relaciona-se, portanto, à identificação dos discursos articulados e da maneira como são articulados.

A identificação de um discurso em um texto cumpre duas etapas: a identificação de que partes do mundo são representadas, e a identificação da perspectiva particular pela qual são representadas. As maneiras particulares de representação de aspectos do mundo podem ser especificadas por meio de elementos lingüísticos que podem ser vistos como ‘realizando’ um discurso. O mais evidente desses elementos é o vocabulário, pois diferentes discursos ‘lexicalizam’ o mundo de maneiras diferentes (Fairclough, 2003).

A análise interdiscursiva no recorte do Grupo Focal 1 indica a articulação de três principais discursos: o discurso da pobreza, o discurso do protagonismo juvenil e o discurso neoliberal. O discurso da pobreza representa o espaço das comunidades e a carência de recursos materiais que caracteriza esse espaço.

Todos os trechos do recorte que se referem às cidades satélites do DF recorrem a

esse discurso na representação. Alguns exemplos são destacados em (16):

(16) Amanda: (...) um dia desses eu cheguei pra Júlia aqui, a penúltima vez que eu vim aqui, antepenúltima, eu sentei aqui nessa mesma mesa e chorei tanto, porque eu tava… eu falei pra Júlia “Júlia, eu vou pro HPAP” [Hospital Pronto Atendimento Psiquiátrico, no DF] porque um tanto de situação assim inacreditável que você vê... você vê as pessoas passar fome (...).

[...]

Maria: sabe... você que tá lá na pobréia, que vê sua família passando fome, sua mãe doente (...).

Na fala de Amanda, a situação de privação das comunidades é avaliada como sendo “inacreditável”. Embora seja uma situação real, vivenciada repetidas vezes (“um

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tanto”, “você vê”), é representada no plano do incrível, do extraordinário. Esse estranhamento resulta no conflito interno experienciado pelas jovens (veja a seguir).

Na intervenção de Maria no exemplo (16) nota-se uma relexicalização da pobreza: “pobréia”. Em minhas observações de campo, várias vezes ouvi essa expressão, nas falas de pessoas relacionadas ao Movimento. Essa relexicalização parece fazer parte de um discurso crítico sobre a pobreza, um discurso que se opõe à visão romântica de pobreza. É diferente dizer-se que uma pessoa ‘é pobre’ ou se dizer que ‘está na pobréia’: quando se diz que uma pessoa é pobre, utiliza-se um processo relacional atributivo intensivo, ou seja, a pobreza é representada como uma característica inerente da pessoa, algo que a define, é um atributo; ao contrário, quando se afirma que uma pessoa ‘está na pobréia’, o processo relacional atributivo é circunstancial, o que se atribui à pessoa nesse caso é uma circunstância na qual ela se encontra (Halliday, 2004; Ghio & Fernández, 2005). 35

Estar ‘na pobréia’ implica estar sujeito/a às privações que a caracterizam. O espaço da pobreza é representado como um espaço distante: “lá na pobréia” – trata-se de um espaço apartado da realidade do Plano Piloto de Brasília, onde aconteceu a interação.36 Essa oposição entre o ‘lá’ e o ‘aqui’ será retomada na discussão da tensão entre as perspectivas de mobilização (no Movimento) e de imobilidade da estrutura (nas cidades satélites do DF).

Amanda e Maria identificam-se com esse espaço de privação em suas falas. Nos dois trechos, a identificação pode ser percebida por meio do uso de ‘você’ funcionando como pronome indefinido – ‘você’ aqui não significa a segunda pessoa do discurso, o/a interlocutor/a, e sim um ator indefinido que “vê as pessoas passar fome” e que se situa na situação de privação. O uso dessa estrutura lingüística indefinida é, entretanto, um modo

35 O termo relacional implica que o processo estabelece uma relação entre duas partes ou duas entidades diferentes.

Essa relação pode ser de diferentes naturezas: no caso dos processos relacionais atributivos intensivos, trata-se de uma relação do tipo X é Y; no caso dos processos relacionais atributivos circunstanciais, trata-se de relação do tipo X está em Y. No primeiro caso, o atributo é uma qualidade de X, no segundo caso é uma circunstância em que X se encontra (Ghio & Fernández, 2005). Halliday (2004) também distingue outras categorias de processos relacionais, que no entanto não serão tratadas aqui.

36 Buarque (2001: 34) esclarece que “o centro do conceito de apartação está em que o desenvolvimento brasileiro não

provoca apenas desigualdade social, mas uma separação entre grupos sociais”. Ele acrescenta: “as pessoas que vivem numa sociedade apartada conhecem a fronteira que delimita o mundo dos incluídos e dos excluídos, composta por uma complexa linha de separação que envolve fatores como grau de educação, tipo físico, roupa, endereço etc. Assim como numa sociedade de castas, quase sempre cada pessoa reconhece as castas das outras pessoas” (Buarque, 2001: 169).

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de se referirem a suas próprias experiências nesse espaço e a sua frustração diante do peso da estrutura que cria esse tipo de “situação inacreditável” e que lhes parece impedir, apesar do discurso do protagonismo juvenil, a ação efetiva. Essa ‘outrificação’ da própria experiência pode ser interpretada como uma forma inconsciente de distanciamento dessa experiência representada como dolorosa (“chorei tanto”).

Há, na instância discursiva analisada, uma preocupação em generalizar a carência, em deixar claro que essa situação não atinge poucas pessoas, mas o conjunto das pessoas que vivem naquelas cidades (Campina, no caso de Maria; Oliveiras, no caso de Amanda), sendo, portanto, a regra e não a exceção. Observe-se o exemplo (17), na interação em seqüência ao trecho destacado em (16).

(17) Maria: (...) Você abre a geladeira da minha casa hoje não é diferente de todas as casas, não. Na geladeira da minha casa hoje não tem nada!

Amanda: fica triste não…

Maria: sabe, não é diferente da minha vida, da do Rafael. A tia Jú falou do Rafael ontem [a casa do Rafael, ‘ex-menino’ do Movimento que participou deste grupo focal, estava há quatro meses sem água], e eu: “pô, não fala não, tia Jú, que dá vontade de chorar!”. Sabe? Não pelo fato de ser o Rafael, mas pelo fato de saber que é muita gente assim...

Amanda: é regra! A realidade dele é a de outras famílias... Maria: é muita gente assim (...).

A pobreza é representada como um lugar (“lá na pobréia”) que reúne um grande grupo de pessoas, um lugar de privação, de angústia e de sofrimento (“dá vontade de chorar”). Na segunda intervenção de Maria no exemplo (17), sua identificação com o lugar da pobreza é explicitada no uso do pronome de primeira pessoa ‘minha’ como pré- modificador do nome ‘vida’ – é a sua própria vida e a sua própria experiência que Maria se refere quando trata desse espaço de pobreza, compartilhado por muitas outras pessoas: “é muita gente assim”. A frustração pelo sentimento de impossibilidade de ação nessa estrutura que pesa sobre sua comunidade é confirmada em “dá vontade de chorar”.

De acordo com os depoimentos de Maria e Amanda, é a pobreza que faz surgir o interesse pelo Movimento, é a situação de privação característica do espaço das cidades satélites que resulta no primeiro interesse pelas atividades desenvolvidas no espaço do Movimento. Alguns exemplos disso estão no excerto (18), a seguir.

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(18) Maria: (...) Por exemplo, pode ser que nas primeiras vezes a gente vai porque o Movimento convidou…

Amanda: tem lanche, aquele monte de menininho buchudo... Maria: então a gente vai através do lanche...

(...)

Maria: aí o que que acontece? No começo pode ser que você vá através do lanche, você tá ganhando a passagem, ah, não vou pagar nada mesmo, não vou gastar nada, então, né? Mas com o processo, né, que o Movimento desenvolve, aí você vai se interessando; da próxima vez você vai não por causa do lanche, mas sim pela causa mesmo.

Como os excertos sugerem, o primeiro atrativo que o MNMMR/DF exerce sobre

crianças e adolescentes de cidades satélites do DF está diretamente relacionado à pobreza.

Note-se que no primeiro excerto Amanda recorre ao senso comum sobre a pobreza para caracterizar o público alvo do Movimento – “aquele monte de menininho buchudo” –, enfatizando a precariedade de satisfação das necessidades básicas no espaço das cidades satélites. Além do atrativo do lanche, em outras conversas durante o período em que fiz observação no campo destacaram-se os passeios – ao Parque Nacional da Água Mineral, ao teatro, ao cinema –, as atividades de arte e esporte – montagem de peças de teatro e torneios de futebol – e o acesso a espaços políticos – por ocasião de manifestações públicas, por exemplo no Congresso Nacional – como atrativos essenciais para a adesão ao Movimento. Também em outras interações etnográficas da pesquisa as atividades e as oficinas oferecidas pelo Movimento aparecem com destaque, como os trechos a seguir indicam:

E a gente participava porque na nossa comunidade não tinha nenhum tipo de atividade, nenhum tipo de diversão, e todo mundo foi participar do Movimento espontaneamente. Eles vieram aqui na rua convidar, fazer um convite para a gente para participar do Movimento, falando de encontros, de brincadeiras. E foi isso que motivou a gente a estar participando do Movimento. (…) E sempre para motivar os meninos, eles falavam que ia ter um lanche, que ia vir alguém visitar a gente. (Entrevista com Joana)

Viviane: Antes disso [da crise financeira], como é que eram os núcleos?

Vera: Então, nos núcleos, cada núcleo – também essa é a mesma metodologia – ele decidia o quê que ele queria fazer. Então, tinha núcleo que tinha teatro em Pequizeiro, tinha hip-hop, tinha futebol. Então, dentro dessas atividades lúdico-

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pedagógicas (…) todo esse trabalho, era feito com os meninos. “O quê que vocês querem fazer de atividade lúdica?” (Entrevista com Vera)

Fernanda: Mas a gente ficou mais interessado nisso por causa dos passeios, por causa da galera que tinha.

Amanda: A amizade.

Maria: Por causa do passeio, dos lanches [risos]. Fernanda: É, porque...

Maria: Dos toddyinhos.

Amanda:[O lanche] já teve fases melhores. Antigamente era toddyinho! [risos]

Maria: Porque também era uma coisa difente que a gente fazia, não era sempre a mesma coisa.

Fernanda: Também não era a mesma coisa não, chegava lá, reunia e conversava não. Tinha as oficinas...

Amanda: É, oficinas… (Grupo Focal 2)

Viviane: e qual foi seu interesse inicial no Movimento? O que te levou a buscar? Alexandre: mais as, como é que era o nome? Porque antigamente quando o Ricardo [educador do Movimento] tava aqui, nós todo dia da semana a gente fazia um esporte no Movimento. Cada dia da semana a gente fazia um trabalho educativo aqui dentro do Movimento. Quando era pra jogar bola nós ia pr’uma quadra, jogava. (…)

Viviane: e você, Maria, qual foi seu interesse inicial no Movimento?

Maria: ai, eu acho que... que ele proporcionava na época, né... uma criança que não conhecia nada, nunca tinha vindo ao Plano Piloto, de repente você tá dentro do Palácio do Planalto, aquele tanto de gente importante, aquele bando de repórter tirando foto de você. Então, né, você fica assim: carácolis! Fica fascinado mesmo. Dentro do Movimento, carácolis velho, conheci muita coisa. Senado, teatro, cinema... quando a primeira vez que eu fui ao cinema, bicho, eu coloquei as mãos nos ouvidos assim. Caramba, fiquei fascinada com aquilo tudo que eu tava vendo, né, “não acredito!” Então eu acho que o espaço que ele proporcionava pra gente, né? (Grupo Focal 1)

A respeito da atração de organizações comunitárias e movimentos sociais como espaços de inclusão em situações de pobreza, Castells (1999: 82) sugere que “as pessoas que se organizam em torno de comunidades locais de baixa renda têm a oportunidade de se sentirem revitalizadas e reconhecidas como seres humanos”. Assim, os/as meninos/as que participavam do Movimento viam-se em condição de ter experiências e oportunidades que reconheciam como alheias às possibilidades ligadas à situação em que se encontravam como agentes primários, nos termos de Archer (2000; ver Seção 2.3).

Se o interesse inicial pelo Movimento é representado como sendo o acesso a espaços e a atividades de que carecem crianças e adolescentes das cidades satélites, sua

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permanência na organização é representada como tendo outra motivação: “pela causa mesmo”. A segunda intervenção de Maria em destaque no exemplo (18) sugere a representação de uma delimitação temporal: Maria identifica dois ‘tempos’ em sua trajetória pessoal: antes de seu engajamento com o MNMMR/DF(“no começo” – tempo da

‘inconsciência’) e depois (“com o processo” – tempo da ‘consciência’). Essa delimitação ilustra sua ação como agente primário, antes da adesão ao Movimento e do acesso ao discurso do protagonismo juvenil, e como agente incorporado, a partir de sua conscientização de direitos desrespeitados e de sua participação em uma coletividade que compartilha o desejo de mudança. Note-se aqui uma estrutura lingüística de causação: a adesão ao Movimento é representada como propulsora dessa incorporação dos sujeitos, meninos e meninas do MNMMR/DF: “o Movimento desenvolve”.37

Estruturas lingüísticas de causação também podem ser observadas no exemplo (19), a seguir. Nesse mesmo exemplo, a divisão ‘antes/depois’ alinha-se com o segundo discurso identificado na amostra: o discurso do protagonismo juvenil. Observem-se os excertos:

(19) Maria: E o bom do Movimento é que ele possibilita, através do trabalho que ele tem, que entra a questão do protagonismo juvenil, é de através desses espaços do Movimento, é que ele desperta, ele faz que a gente seja agentes da nossa própria promoção, né? (...)

[...]

Amanda: é impressionante, aonde que eu iria imaginar que eu seria representante da minha cidade, que eu ia ter uma autonomia tão grande sobre os meninos que eu tenho hoje. Porque os meninos chegam em mim, vão lá... (...)

[...]

Maria: (...) mas você acaba sendo referência dentro da sua comunidade (...)

O discurso do protagonismo juvenil é articulado na representação do MNMMR/DF,

como na primeira intervenção destacada em (19), em que a ação das jovens como protagonistas aparece atrelada ao trabalho desenvolvido pelo Movimento (“ele desperta”, “ele possibilita”, “ele faz que a gente seja agentes da nossa própria promoção”). O

37 Essa percepção da participação no Movimento como experiência causadora de uma nova maneira de ver o mundo

também é identificada em outros documentos etnográficos desta pesquisa, como por exemplo a entrevista com Joana: “Todo mundo queria participar. Às vezes, ia no oba-oba e depois, quando passava aquele ano, já estava incluído em tudo. E participando, participando... Muita gente mudou a forma de ver o mundo, de ver as coisas, de lidar com as coisas”.

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Movimento é representado como responsável pela construção de identidades de resistência /projeto para seus membros, nos termos de Castells (1999), ou pela incorporação dos sujeitos, nos termos de Archer (2000; ver Capítulo 2).

Na representação de Maria, a causação é marcante: o Movimento é a entidade que

desperta a consciência da necessidade de mudança, possibilita essa resistência/incorporação

e ‘faz fazer’, faz agir. Talvez justamente por essa emergência da consciência da necessidade de mobilização social estar atrelada ao Movimento, as jovens não pareçam capazes de desvencilhar sua ação protagonista do espaço do Movimento, o que por fim caracteriza um empecilho para sua realização concreta (veja a seguir; ver também Capítulo 7).

Nos outros dois trechos do exemplo (19), o discurso do protagonismo juvenil representa a ação das jovens nos núcleos de base de suas cidades. Esse discurso resulta em sua identificação como protagonistas: Amanda identifica-se como “representante” e Maria como “referência”. Isso sugere a dialética entre os três tipos de significado, pois o discurso do protagonismo, no plano da representação, orienta a ação (aqui discursivamente representada) e a identificação das jovens.

O vínculo forte do discurso do protagonismo ao espaço do Movimento, no entanto, parece causar uma relação de dependência. Embora as jovens se identifiquem como protagonistas, sua autonomia para a ação protagonista parece ser limitada. Elas não se sentem capacitadas, por exemplo, para escreverem pequenos projetos de captação de recurso, paralelos ao Movimento, para executarem ações específicas em suas cidades. Assim, as jovens sofrem com a falta de recurso – tanto material como simbólico, discursivo – para a execução de suas ações no âmbito do Movimento, como indica o exemplo (20), na seqüência do trecho (19) na interação:

(20) Amanda: E vamos fazer? Vamos fazer isso? Vamos chegar e vamos fazer aquilo? Maria: E você sabe que na verdade não é aquilo, não é desse jeito.

Amanda: E você tem uma moeda no bolso pra correr atrás.

Maria: É uma utopia, né velho? (...) Sabe, pô, é tudo uma mentira, eu sei que não vai e esse povo não vai parar de ser corrupto e esse sistema não vai parar porque esse Brasil foi feito pra isso, né, um país de exploração mesmo (...).

Nesse trecho, Amanda e Maria discutem a contradição entre as atividades que julgam necessárias em suas cidades e os recursos materiais de que dispõem para executá-

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las. Ao refletir sobre o resultado de sua ação, sugerindo a contradição entre o discurso do protagonismo e a possibilidade de ação concreta, Maria recorre um discurso muito forte sobre a política brasileira, sobre a corrupção do sistema político. Maria interioriza o senso comum acerca da corrupção política no Brasil como um problema generalizado e sem solução, e busca no discurso da história a justificativa para o sistema: “um país de

exploração”. O discurso da história é articulado ao discurso da corrupção em uma oração

encaixada de valor causal, com alta afinidade expressa em “mesmo”. A corrupção é reificada pela eternalização da história colonial do Brasil (Thompson, 1995).

Isso aponta a contradição entre o protagonismo, o desejo de mudança social (e a construção de identidades de projeto), como discurso, e a crença na possibilidade de um protagonismo concreto (a realização desse projeto). Embora acreditem no protagonismo juvenil como discurso, as jovens não vislumbram possibilidades de concretização da mudança social. O discurso que eternaliza a corrupção, imobilizando as estruturas sociais, choca-se com o discurso de mobilização para a transformação social, e a contradição entre ambos é incontornável.

A mesma contradição entre mobilização social e percepção de imobilidade na estrutura social é identificada em outros dados da pesquisa, como na Reunião 2, dedicada à discussão do Projeto Giração, à época recém-aprovado para a organização de adolescentes e jovens trabalhadores/as das imediações da Rodoviária do Plano Piloto. No excerto destacado a seguir, Júlia, Mônica (ex-coordenadora nacional do Movimento) e Henrique (coordenador do Cecria – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes) discutem a condição de engraxates e a (im)possibilidade de transformação dessa condição:

Júlia: Eles dizem que não sabem [fazer outra coisa além de engraxar sapatos], Henrique. Eles dizem que o futuro deles é morrer na Rodoviária. Que eles não têm saída.

Henrique: É isso. Eles estão presos nisso daí.

Júlia: E uma coisa que a gente faz também, é que a gente diz que tem outra saída. Qual é a outra saída? Tem?

Mônica: Qual?

Júlia: Nessa conjuntura globalizada de mercado? De que antes a classe dos trabalhadores era mão de obra barata e, hoje em dia, eles são descartáveis? Eles podem morrer na Rodoviária.

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Esse trecho da transcrição da reunião sugere o conflito de pessoas que trabalham pela mobilização para a mudança social mas não vêem margem de manobra para a transformação (“Eles estão presos nisso daí”). O choque aqui é o mesmo observado no Grupo Focal 1: entre o discurso do protagonismo social e o discurso da imobilidade, do inexorável – nesse caso, da ‘globalização neoliberal’ como fato consumado e incontornável (“nessa conjuntura globalizada de mercado”).

A questão levantada por Júlia (“a gente diz que tem outra saída. Qual é a outra saída?

Tem?”) indica não só o conflito interno de alguém que se dedica à mudança mas não está

certa se há alternativa futura para o presente, mas também a contradição institucional de um movimento social que prega o protagonismo e a luta política mas já não percebe espaços de manobra. Quando Júlia afirma “a gente diz que”, põe em dúvida a validade do discurso da mobilização social; em seguida, a sua primeira pergunta (“Qual é a outra saída?) carrega o pressuposto de que essa “saída”, embora não esteja identificada, existe. Contudo, sua segunda pergunta contradiz esse pressuposto, pois põe em dúvida a própria existência dessa possibilidade na estrutura social (“Tem?”). Em termos da relação entre discursos, nesse trecho o discurso do protagonismo (da mobilidade) compete com o discurso da imobilidade, e essa relação de competição entre os discursos é textualmente evidenciada por essas contradições, que poderiam ser resumidas como ‘a gente diz que X

mas na verdade Y’. Nessa relação de oposição, o discurso da imobilidade é mais forte,

assume o valor de verdade negado à crença no discurso da mobilização.

O mesmo tipo de conflito interno é observado na fala de Maria, nesse Grupo Focal 1, quando ela destaca que tem dúvidas se o que faz não é “uma mentira”, no exemplo (22). Antes, porém, o protagonismo juvenil e os espaços políticos de ação social entram em conflito de outro modo, no trecho em que Maria narra sua experiência em