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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

4.2 Geração e coleta de dados: as estratégias de pesquisa

4.2.2    Notas de campo 

A observação foi registrada em notas de campo. As notas de campo constituem um momento fundamental no trabalho de campo porque articulam, no discurso, os diversos métodos adotados em uma pesquisa particular, integrando percepções e interpretações associadas aos vários momentos da pesquisa. Clifford (1993: 51-2) delimita três tipos de notas de campo, a que ele classifica como inscrição, transcrição e descrição. Inscrição é o tipo de nota de campo que o/a pesquisador/a toma durante uma interação com participantes da pesquisa, uma interrupção na interação para tomada de notas mnemônicas, de auxílio à memória. Trata-se da anotação de palavras-chave que auxiliam o/a pesquisador/a no desenvolvimento posterior de notas mais acuradas. Transcrição é o tipo de nota de campo utilizado quando o/a pesquisador/a, ao mesmo tempo em que faz perguntas, anota as respostas dos/as participantes da pesquisa. Descrição, por fim, refere- se à produção coerente de representações de uma realidade cultural observada; constitui um momento de isolamento do/a pesquisador/a, um momento de reflexão, análise e interpretação.

Entre esses tipos de notas, privilegiei nesta pesquisa as descrições interpretativas da observação participante, feitas logo após a interação para que a observação não ‘esfrie’ (Mead, 1977 apud Sanjek, 1993).27 O método de tomada de notas de campo definido como transcrição apenas foi utilizado em circunstâncias nas quais não pude gravar interações, mas precisava de anotações precisas. Nesses casos, eu observava mais que participava e, por isso, podia tomar notas de transcrição sem que tal procedimento constituísse quebra na interação. As notas de transcrição foram utilizadas na Assembléia Nacional do MNMMR, de que participei em abril de 2006, na sede nacional do Movimento,

e na reunião do Fórum DCA, sobre os Projetos de Emenda Constitucional de

rebaixamento da maioridade penal, de que participei em fevereiro de 2007, na Biblioteca do Senado. Minha participação nessas atividades do Movimento não estava, obviamente, no desenho inicial da pesquisa. Fui convidada a participar desses eventos e, percebendo

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seu potencial para gerar conhecimento acerca de atividade material e ação social do Movimento, tomei as referidas notas de transcrição.

Excluídas essas duas situações em que atuei como observadora, não tomei notas sistemáticas durante as interações, para evitar um distanciamento com o grupo e para favorecer uma desmistificação do trabalho de pesquisa como atividade exclusiva de pesquisadores/as. Entendo que em observação participante é mais adequado tomar notas posteriores porque a tomada simultânea de notas pode prejudicar a participação efetiva nas atividades do grupo, quando se pretende atuar como participante. Quanto às notas definidas como inscrição, também foram evitadas – privilegiei as notas mentais –, porém, houve momentos específicos em que foram necessárias, como para anotação do nome de uma organização citada, por exemplo.

Optei por tomar notas sob a forma de diário de pesquisa, com a finalidade de registrar minhas impressões acerca das interações de que participei. Os diários de pesquisa são produtos escritos do trabalho de campo que têm um propósito catártico para etnógrafos/as porque registram reações pessoais, frustrações e conquistas do trabalho no campo. Além disso, o diário de pesquisa é um ambiente intertextual no sentido de que entre as impressões anotadas também se registram as relações percebidas entre a prática da pesquisa particular e a ‘teoria de método’ adotada – entre a previsão abstrata do desenho da pesquisa e a realização concreta do trabalho de campo – e entre os métodos e as teorias adotadas na pesquisa. Daí sua utilidade no favorecimento da auto-reflexão sobre a prática de pesquisa: o diário não é só um mecanismo de reflexão sobre o objeto da investigação, é também uma oportunidade de reflexão sobre a própria prática.

Selecionei, entre minhas notas de campo, um exemplo em que a experiência prática da pesquisa e as teorias de método se cruzam. Essa nota diz respeito ao episódio que narrei na seção anterior, sobre a correria que envolveu a produção do projeto para captação de recurso junto à Petrobrás e a solicitação que Maria me fez em relação à redação da Apresentação do projeto. O trecho copiado a seguir é, em continuação à nota de campo de 18 de julho de 2006 que discuti na seção anterior, um registro das mensagens eletrônicas que Maria e eu trocamos a esse respeito:

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Os emails que trocamos [Maria e eu] sobre esse projeto, de ontem para hoje: 1. E-mail da Maria para mim encaminhando o projeto

Oi Viviane estou te enviando o projeto depois faça as alterações que preciso Beijos

Maria

2. E-mail da Maria para mim pedindo que fizesse a apresentação

Oi Viviane quero te pedir um favor vc pode escrever pra mim a apresentação do projeto meus neuronius estão falidos rsrs esta indo em anexo o que esta pedindo na apresentação

Beijos Maria

3. Meu e-mail dizendo que não seria possível fazer a apresentação

Maria, eu tô bem atolada aqui, cheia de trabalho atrasado, vou dar aula até tarde... acho meio difícil eu fazer a apresentação nessas condições, ainda por cima porque eu vou fazer a revisão do projeto todo essa madrugada e a entrega do projeto é amanhã! Acho arriscado você contar com isso. Acho melhor você pedir à Jú ou à Paula para fazer a apresentação, ou então faça você e me mande em seguida para eu corrigir - entenda, Maria, não é falta de vontade. Tente fazer e eu farei o possível para te ajudar, ok?

Abraço, Viviane.

P.S. Me escreva confirmando o recebimento deste email (caso contrário ficarei preocupada...)

4. Meu e-mail de agora há pouco com a revisão do projeto em anexo

Oi, Maria.

Fiz a revisão do texto todo, estou encaminhando em anexo. Estou trabalhando desde que cheguei da aula e já são quase 2 horas da manhã! Eu tinha razão: não dava mesmo para fazer a

apresentação... espero que você tenha conseguido escrever. Se quiser, me mande para eu corrigir, ok? Algumas observações:

1. Falta: histórico da instituição – CECRIA (e será que não seria bom um breve histórico do MNMMR também?);

2. A parte de Estratégias pode ser desenvolvida (há apenas uma frase!);

3. Não sei se a parte de Replicabilidade foi bem respondida... acho que o que eles querem é saber se há perspectiva do projeto ser replicado, isto é, de surgirem novos projetos a partir deste ou dele ser ampliado posteriormente e com sustentabilidade;

4. As tabelas de Avaliação do Processo e de Avaliação de Resultados estão idênticas! Isso não é bom para o projeto, é necessário distinguir entre os dois modos de avaliação. Além disso, há partes da tabela Avaliação de Impactos também idênticas às duas anteriores;

5. Falta preencher as partes finais: Composição da Equipe; Identificação de Parcerias; Comunicação do Projeto (acho que isso é bem importante, afinal é aí que a empresa ganha com a publicidade) e Orçamento;

6. Na coluna 'No de atividades' do Cronograma não há nada.

É isso, Maria. Espero ter ajudado. Se precisar falar comigo amanhã, me ligue. Se vc me mandar mais alguma coisa para revisar, ligue avisando.

Abraço, Viviane.

Parece que as relações de poder nessa pesquisa estão bem diferentes da discussão teórica a respeito de assimetrias entre pesquisadores/as e participantes de pesquisas!

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Nota só o emprego de imperativos pela Ana e as minhas modalizações!!! (Nota de campo registrada em 18 de julho de 2006).

Nessa nota, a experiência prática da pesquisa leva-me à reflexão do que havia lido em textos sobre pesquisa etnográfica acerca das assimetrias na relação interpessoal entre pesquisadores/as e participantes de pesquisa, comparando a teoria ao que de fato vivenciei em minha pesquisa. Por outro lado, utilizo o conhecimento oriundo da ADC sobre

modalidade e estratégias de polidez/relações de poder para avaliar os modos como Maria e eu nos dirigimos uma à outra e o que se pode depreender das relações de poder na pesquisa.

Além de sua utilidade para a reflexão da prática de pesquisa, as notas de campo são úteis como auxílio à memória, e ainda que não tenham sido diretamente utilizadas como dados analíticos nesta pesquisa, foram muitas vezes utilizadas no momento da análise dos dados. Ademais, a prática de se fazer notas de campo já é parte da interpretação e é útil para a seleção de que tópicos serão então investigados (Stubbs, 1987), por isso as notas carregam de antemão um tipo de análise. Além de terem sido consultadas como validação das análises interpretativas, as notas de campo foram retomadas diversas vezes durante o processo de pesquisa, revistas, repensadas. Isso está de acordo com o que propõe Geertz (1989), para quem as notas de campo são uma inscrição da atividade social, uma anotação que a transforma em relato, que a conserva para ser consultada novamente.

Nesta pesquisa, as notas são vistas, enquanto registros do trabalho de campo, como estratégia capaz de prover acesso às práticas, à ação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua no Distrito Federal. Evidentemente, o acesso às práticas e à ação não é direto, mas mediado por minha própria compreensão, por meus modos de observar e compreender. Isso não invalida a observação como fonte de dados, já que também os textos são analisados, sempre, com base na subjetividade do/a analista (Chouliaraki & Fairclough, 1999).

Não anexei meu diário de campo à tese; trata-se de um diário, um documento pessoal de notas e impressões, com a finalidade de me permitir (auto)reflexões sobre o trabalho de campo, sobre as relações entre teorias, métodos e práticas de pesquisa, sobre as experiências pessoais que vivi e aquelas alheias que presenciei. Preferi selecionar alguns recortes que ilustram questões discutidas ao longo da tese ou que

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sustentam análises de dados de outras naturezas. Assim fazendo também pretendi preservar a intimidade das pessoas citadas no diário. Com esse mesmo propósito, decidi não explorar certos trechos de entrevistas, grupos focais e reuniões, mesmo que me parecessem academicamente relevantes. Foi uma tentativa de fazer com que minha pesquisa causasse o mínimo inconveniente às minhas colaboradoras. Digo ‘o mínimo inconveniente’ porque tenho consciência que algum desconforto sempre há quando se traz à tona questões mal resolvidas ou problemáticas, às vezes ligadas inclusive à identidade. Esse desconforto, entretanto, é indispensável à reflexão crítica: não podemos, ao mesmo tempo, permanecer acomodados/as sobre as racionalizações que nos sossegam o espírito e compreender a necessidade de mudanças.