• Nenhum resultado encontrado

REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

3.2 Pesquisa qualitativa

A pesquisa de natureza qualitativa (PQ) lida com descrições e interpretações da

realidade social tendo como base dados interpretativos; é uma forma de pesquisa potencialmente crítica: por meio da PQ as ciências sociais críticas identificam estruturas de

poder naturalizadas em um contexto sócio-histórico definido. Por isso, a PQ é indicada

quando se pretende focar representações de mundo, relações sociais, identidades, opiniões, atitudes, crenças ligadas a um meio social. Isso justifica a escolha do paradigma interpretativo para o desenvolvimento desta pesquisa, de acordo com a concepção de discurso adotada, explicitada no Capítulo 2.

Mesmo que em certas áreas ainda haja preconceitos em relação à PQ, pode-se dizer

que ela agora está estabelecida como paradigma para pesquisa social (Flick, Kardorff & Steinke, 2004). A dinâmica da PQ tem dois elementos distintivos em relação à pesquisa

quantitativa. Primeiro, não há planejamentos de pesquisa pré-moldados; ao contrário, há múltiplas opções de métodos para geração e coleta de dados, construção de corpora, manejo e análise de dados – o/a pesquisador/a precisa engajar-se na construção de uma metodologia adequada a sua pesquisa.

Proponho uma distinção epistemológica entre a ‘coleta de dados’ e a ‘geração de dados’. Entendo que em pesquisa de campo de natureza etnográfica a maior parte dos dados não é simplesmente coletada – como se já estivesse disponível independente do trabalho do/a pesquisador/a –, e sim gerada para fins específicos da pesquisa. Ir a campo e realizar interações especificamente organizadas para a pesquisa não é coletar algo que já esteja disponível na vida social, pois o que fazemos é criar situações, gerar espaços de interlocução e, muitas vezes, criar métodos para isso. Investigamos problemas sociais sem

[83]

dúvida pré-existentes à pesquisa, mas criamos situações sociais úteis para sua investigação. Por outro lado, algumas vezes coletamos textos e interações já disponíveis, que existem independentemente de nossa intervenção – é o caso da coleta de materiais impressos, no contexto da pesquisa, ou da gravação de interações típicas desse contexto.

Essa distinção é epistemológica porque os dados gerados e os dados coletados nos permitem acesso a diferentes componentes ontológicos (veja a seguir). Reconhecer a diferença entre os dois tipos de dados, entretanto, não implica uma objetivação dos dados coletados, pois mesmo esses são selecionados pelo/a pesquisador/a. Tampouco implica desconsiderar que mesmo as interações típicas do contexto pesquisado se construam no momento mesmo do evento discursivo em que ocorrem – a questão é que esse tipo de dado (coletado) nos possibilita estudar a estruturação dos eventos no contexto pesquisado, o desenrolar de uma atividade que ocorreria independentemente da pesquisa que se realiza.

Nesta pesquisa, foram gerados dados por meio de grupos focais e de entrevistas, e foram coletados dados por meio da gravação de reuniões (ver Capítulo 4). A diferença entre um e outro tipo de dados é que o primeiro decorre de interações que não ocorreriam fora da pesquisa, são interações geradas para fins da pesquisa; já o segundo decorre do registro, ou coleta, de interações existentes fora do universo da pesquisa e que são aproveitadas também para esse fim. Uma implicação epistemológica dessa distinção é que os dados gerados em campo serão úteis para a análise de representações da ação, da atividade material, das relações sociais, mas não para a análise da ação social em si – a menos que a atividade social investigada seja a própria prática da pesquisa. Por isso é imprescindível, em pesquisas discursivas, que esteja clara a distinção entre ação social e sua representação.

O segundo elemento distintivo da PQ em relação à pesquisa quantitativa é que o

processo de PQ é cíclico, recursivo: a geração/coleta e a análise de dados são relacionadas,

ou seja, as análises iniciais podem apontar necessidade de revisão dos métodos para geração e coleta de dados e, por isso, o manejo dos métodos deve ser suficientemente flexível para dar conta desses ajustes (Crabtree & Miller, 1992; Mason, 2006; veja discussão da necessidade de flexibilidade no planejamento desta pesquisa no Capítulo 1).

A escolha entre diferentes tipos de pesquisa deve depender daquilo que se pretende pesquisar e do modo como o/a pesquisador/a posiciona-se em relação à

[84]

construção de conhecimento. A questão, entretanto, não é estabelecer uma hierarquia entre modelos quantitativos e qualitativos; não é assumir a priori que um tipo de pesquisa seja superior ou inferior a outro. A questão seminal que nos devemos fazer quando desenhamos uma pesquisa é: “os métodos de pesquisa adotados são apropriados à natureza da questão que está sendo investigada na pesquisa?” (Silverman, 2000: 12). Uma vez que se trata de uma questão de caráter epistemológico, essa reflexão deve ser anterior à seleção/criação de métodos para a pesquisa.

Outros autores posicionam-se da mesma maneira ao estabelecerem um elo imprescindível entre o problema investigado e a tradição de pesquisa selecionada na construção da pesquisa (veja, por exemplo, o trabalho de Mason, 2002; 2006). Para Miller & Crabtree (1992: 6), “a escolha de um estilo de pesquisa para um projeto particular depende do objeto da pesquisa, do objetivo da análise e das questões de pesquisa relacionadas.” Kuzel (1992: 37) também corrobora essa perspectiva ao afirmar que “a natureza da questão/problema de interesse permite fazer um julgamento acerca da forma de pesquisa – quantitativa ou qualitativa – desejável para a investigação”.

A filiação à tradição qualitativa, entretanto, pode não ser suficiente para esclarecer a natureza de uma pesquisa. Embora o rótulo ‘pesquisa qualitativa’ possa sugerir homogeneidade e consenso, tal não faz jus à multiplicidade de abordagens que se identificam com o rótulo: trata-se de um nome genérico para uma variedade de abordagens interpretativas. Há, entretanto, um princípio epistemológico comum às abordagens qualitativas: o interesse na compreensão de relações complexas de redes de práticas, o que justifica a adoção de métodos múltiplos e a recusa a métodos padronizados, como os questionários, a menos que sejam articulados a outros métodos complementares. Por isso, por meio da PQ – e notadamente por meio de métodos

observacionais – é possível o acesso a informações específicas, não encontradas em dados quantitativos e/ou documentais isolados.

Flick, Kardorff & Steinke (2004) definem dois tipos de tradição em PQ: (i) com

foco na ação social e (ii) com foco na estrutura. Essa cisão, entretanto, parece-me pouco produtiva em um momento em que as ciências sociais buscam abandonar a centralidade de estrutura ou de ação (exemplos disso são as perspectivas de Bhaskar, 1989; de

[85]

Bourdieu & Wacquant, 2005; de Sousa Santos, 2007; ver também Fairclough 2000). Assim como as ciências sociais notam ser improdutiva a divisão entre teorias da estrutura e teorias da ação, a PQ pode superar a centralidade no sistema ou no indivíduo. Esse é um

dos objetivos centrais do Realismo Crítico, tanto em termos ontológicos quanto epistemológicos. Na próxima seção, discuto algumas implicações epistemológicas do RC

para as ciências sociais e, especialmente, para a ADC.

3.3 Realismo Crítico e epistemologia nos estudos críticos do discurso