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REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA E OS ESTUDOS 

4.2 Geração e coleta de dados: as estratégias de pesquisa

4.2.5    Gravação de reuniões 

Durante o trabalho de campo, em diversas ocasiões fui convidada a participar de eventos e atividades do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, como a Assembléia Nacional, reuniões na sede da Comissão Local, produção de projetos, mobilizações, manifestações, oficinas. Sempre que me foi possível, respondi positivamente aos convites, comparecendo aos eventos para os quais gentilmente me convidavam, sabendo de meu interesse nas práticas da organização.

Em algumas ocasiões, não julgava adequado efetuar gravações em áudio das interações de que participava, por exemplo na Assembléia Nacional e na reunião do Fórum DCA, por estarem presentes pessoas que não sabiam/não participavam de minha

pesquisa ou por a situação não ser favorável a gravações. Nesses casos, tomei notas de transcrição (ver Seção 4.2.2).

Duas reuniões, entretanto, puderam ser gravadas. A primeira foi uma reunião interna da Comissão Local do MNMMR/DF, em 28 de março de 2006, de que participaram

a então coordenadora do MNMMR/DF, Paula; as duas educadoras, Júlia e Vera; a jovem

Maria, e um voluntário, Marcelo, além de mim. Na pauta dessa reunião estavam a crise financeira do Movimento; a Assembléia Nacional, que ocorreria dias depois; o encerramento das atividades dos núcleos de base. Foi uma reunião tensa, pois a pauta girava em torno da situação de desestruturação da organização, em nível local e nacional.

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A segunda reunião que pude registrar foi quase um ano depois, em 16 de março de 2007. Tratava-se de uma reunião do Grupo de Trabalho Gira-Ação para a qual fui convidada na véspera. O projeto Giração é um grande projeto de parceria entre o Cecria e o MNMMR/DF, aprovado pela Petrobrás para organização de adolescentes e jovens

trabalhadores/as informais das imediações da rodoviária do Plano Piloto de Brasília. O projeto foi aprovado para realização em um ano, a partir de abril de 2007, com um bom financiamento, que se esperava viesse marcar o fim da crise do MNMMR/DF (o Projeto

Giração foi renovado por mais um ano). O clima da reunião era outro: os/as participantes estavam animados/as com a perspectiva aberta pela aprovação desse projeto e faziam planos para sua implantação. Participaram da reunião Glauco, então coordenador do

MNMMR/DF; Paula, ex-coordenadora do MNMMR/DF, agora conselheira da coordenação;

Júlia; Henrique, coordenador do Cecria e professor universitário; Mônica, ex- coordenadora nacional e militante do MNMMR, além de mim. Nessa reunião, a gravação

em áudio me foi solicitada para fins de registro no MNMMR/DF, além de me ter sido

permitido seu uso para a pesquisa.

A gravação dessas reuniões não estava, evidentemente, no desenho inicial da pesquisa. Aproveitei, entretanto, essas ocasiões para coletar dados, de acordo com o que Retamozo (2006: 11) sugere ao afirmar que “ao estudar movimentos sociais, é preciso pôr em prática uma vigilância etnográfica para identificar situações que possam brindar material para uma melhor compreensão”. Uma vantagem da utilização desses dados é seu potencial para a análise da atividade do Movimento, uma vez que não se trata de dados gerados em situação específica de pesquisa – como são os dados gerados por meio de entrevistas, por exemplo –, mas dados relativos à atividade concreta da própria organização. Em um primeiro momento, pensei mesmo em utilizar esses dados para a análise do significado acional – nos termos da ADC –, mas depois decidi manter o foco da

pesquisa nos significados representacional e identificacional. Entretanto, como se pode notar pelas análises apresentadas no Capítulo 8, em muitos momentos acabo ‘deslizando’ para questões relativas à ação discursiva, como as relações hierárquicas na Reunião 1 e o uso de estratégias discursivas para determinados efeitos na Reunião 2. Isso de certa forma vem confirmar a adequação da distinção entre dados gerados e dados coletados em

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termos de seu potencial epistemológico e, por outro lado, enfatiza a relação dialética entre os três tipos de significado. Seja como for, a participação nessa e em outras reuniões, assim como a observação, possibilitou meu acesso a atividades práticas da organização.

O fato de serem duas reuniões muito diversas – em termos de suas pautas, mas também em termos das expectativas dos/as participantes e dos contextos específicos das reuniões – é visto como positivo para a pesquisa, pois me permitiu ter acesso a dois momentos extremamente diferentes. A primeira reunião ocorreu no contexto de profunda crise, de início das atividades de 2006 tendo sido 2005 um ano particularmente difícil para o MNMMR/DF, pelo encerramento das atividades de nucleação, considerada

uma das principais atividades da organização. Sobre esse agravamento da crise, registrei em minhas notas de campo minha impressão de uma conversa que tive com Vera:

Fui ao Movimento à tarde. A Jú não estava; passou mal e foi pra casa. Falei com a Vera. Ela disse que os últimos três anos foram os piores do Movimento, que o Movimento está passando por uma crise severa, só tem um projeto atualmente. Ela disse que o problema não é só questão de recurso, há também um problema grave de metodologia. Outro problema sério do Movimento para a Vera é a falta de militantes. O Movimento é uma organização de militância, de luta pela crença na possibilidade de mudança, mas hoje quase não há militantes de verdade. Ela usou uma metáfora interessante para definir o agravamento da crise: “se ano passado o Movimento tava capenga, esse ano tá sem perna” (Nota de campo registrada em 9 de fevereiro de 2006).

A segunda reunião, um ano depois, marca o início das atividades de 2007 com a aprovação de um grande projeto e com a expectativa de criação de um novo núcleo de base. Sobre minha participação nessa segunda reunião – e sobre o fato de eu ter sido convidada a participar dela – anotei em meu diário:

Ontem fui convidada a participar de uma reunião na sede. Era uma reunião do Grupo de Trabalho Gira-Ação, que vai discutir as atividades do projeto Giração (...) Me incluiram no GT! Eu realmente me tornei um membro interno! Uau!

Na reunião, todo mundo animado. Discutimos o projeto, pensamos suas etapas, as dificuldades a serem enfrentadas. (...) A etapa inicial de observação na rodoviária já começou. Maria, Amanda e Rogério estão indo lá em diversos horários e observando as atividades (Nota de Campo registrada em 16 de março de 2007).

Dois aspectos dessa nota merecem destaque. O primeiro diz respeito a meu entusiasmo com o convite, que ao final do período de trabalho de campo veio me felicitar

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com a confirmação de que realmente me consideravam um membro do grupo, me julgavam merecedora de compartilhar esse momento de euforia e esperança. O segundo refere-se à atuação das jovens protagonistas no projeto – mas deixo que a relevância desse aspecto seja desvendada nos capítulos analíticos.

A utilização da gravação de cada uma das reuniões teve seu mérito na pesquisa. A Reunião 1 me permitiu conhecer a negociação de significados em conflito no interior do Movimento e alguns pontos de instabilidade em termos de seus focos de atuação. A Reunião 2, por outro lado, foi útil para perceber a negociação entre o Movimento e sua organização parceira, em termos de hierarquias em procesos decisórios, e a representação de jovens membros do Movimento por adultos/as envolvidos/as com a organização.