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Ênfase à Transignificação e presença real pneumatológica

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 100-105)

2.2 A evolução histórica da eucaristia como dogma

2.2.3 Ênfase à Transignificação e presença real pneumatológica

196 Grupo ecumênico de Dombes, 1972 apud ALDAZÁBAL, José. Op.cit., p.325.

197 JUNG, Carl Gustav. O símbolo de transformação na missa. Trad. Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, revisão técnica de Dora Ferreira da Silva. Petrópolis/RJ: Vozes, 1985, p.48.

Do século IX ao século XI houve grandes controvérsias a respeito da compreensão da presença real de Cristo na Eucaristia. No século IX, Pascásio Radberto e Ratrammo foram os dois principais nomes que travaram uma discussão: o primeiro sublinhava a presença mais fisicista e o segundo a presença mais espiritualista.

Radberto (abade de Corbie) acentuava exageradamente a presença real fisicista de Cristo: “[...] acentuava a identidade real de Cristo e seu corpo histórico, sem dar importância à finalidade dinâmica ou simbólico-eclesial do sacramento, mas sim ao fato da presença do Cristo histórico em nossa eucaristia”.199 Ratrammo, por sua vez, levava a discussão para o lado inverso, a figura não pode conter a realidade: “o corpo eucarístico de Cristo não pode ser idêntico ao histórico e sua presença deve ser antes entendida num sentido simbólico e espiritual”.200

Estas duas compreensões vão se condensar nos escritos sucessivos De Corpore et Sanguine Domini e podem ser considerados os primeiros escritos teológicos sobre a eucaristia.201 E fica então a discussão entre figura e realidade como um impasse para a igreja, ainda que a liturgia galicana e hispânica deste momento advoguem o realismo de Radberto levando a compreensão do metabolismo de Ambrósio ao extremo. A liturgia romana ainda mantém certo tempero entre as duas concepções de Agostinho: realidade e sacramento.202 No século seguinte esta discussão entre figura e veritas da presença de Cristo no pão e no vinho se prolongou.

No século XI Berengário (o simbolista), pegando o gancho da discussão anterior, expôs sua compreensão a respeito. Seguindo a linha de Ratrammo e Agostinho, negava a presença de Cristo de maneira fisicista enfatizando a presença espiritual:

O simbolismo de Berengário, explicando a presença de Cristo em chave de ‘figura espiritual ou virtual’, principalmente em sua obra De sacra coena, interpretou-se como negação da presença real eucarística: o pão e o vinho não se convertem realmente no corpo e sangue de Cristo, mas só em figura e semelhança. Todas as passagens dos Padres que falam da figura ou símbolo, em relação com a Eucaristia, ele as lia em seu sentido literal, mas já não de acordo com o conteúdo que os termos tinham na era patrística. No século XI, dizer ‘símbolo’ era dizer precisamente o contrário de ‘realidade’.203

199 ALDAZÁBAL, José. A Eucaristia. Op.cit., p.183. 200 Idem, p.idem.

201 Cf. ALDAZÁBAL, José. Op.cit., p.ibid. 202 Idem, p.ibid.

Por este fato, Berengário foi fortemente repreendido pelos Papas e obrigado a se retratar e, no tempo do Papa Gregório VII (1079), assinando uma confissão firmando a presença real fisicista na eucaristia. Embora no seu interior não aceitasse nada daquilo, teve que assinar um juramento donde retratava-se da sua proposta simbolista. Mas, anteriormente a esta confissão Berengário já tinha sido obrigado a assinar outra confissão pelo Papa Nicolau II (1059), onde fora humilhado, ameaçado com torturas e teriam queimado seus livros.

Paralelo a Berengário, os defensores do realismo como Guitmundo e Lanfranco advogavam uma linguagem mais física e material. Assim, o termo transubstanciação foi se consolidando evitando os dois extremos, seja uma visão do realismo quase físico, sejam de um simbolismo espiritualizante.

São Tomás de Aquino, na Alta Escolástica, protestou contra a ideia sensualista e por demais realista do corpo de Cristo no pão e vinho. Propôs uma síntese do conceito de transubstanciação:

A visão ‘sacramental’ de Santo Tomás abarca ao mesmo tempo a linguagem simbólica, cheia de significado, e a da eficácia presença real. A presença de Cristo é real, ainda que sacramental. É sacramental, porém real. A linha principal de Santo Tomás é ‘a chave antropológico-sacramental, cheia de simbologia, realismo e dinamicidade’.204

Sobre a presença do Cristo na eucaristia de forma coisificada Aldazábal fez uma observação:

Não se pode entender a Eucaristia se esta presença de Cristo é enfocada de maneira muito ‘coisificada’. Ele está presente, identifica-se, assume o pão e o vinho, mas essa não é a finalidade última do sacramento. A finalidade é a comunidade, somos nós. A presença de Cristo é real, corporal, mas a partir de sua vida de glorificado, que é o que pode chegar à comunhão total.205

Na dinâmica da presença atuante de Jesus Cristo não pode ser desconsiderado o seu lado pneumatológico. A presença espiritual de Cristo que age por sobre os fiéis lhes promovendo a ser cristos como ele.

A eucaristia é, conforme verificamos, o sacrifício atual-presente de Jesus Cristo, com o qual se identifica não fenomenal mas essencialmente. Tem por sentido e finalidade a integração dos cristãos no feito sacrifical de Cristo,

204 ALDAZÁBAL, José. Op.cit., p.188. 205 Idem, p.322.

para que os leve consigo ao Pai e lhes faculte no mais alto grau a tornar-se como homens “outros Cristos”.206

A transformação do pão em corpo de Cristo olhando sob o prisma da transigificação é considerada como um efeito espiritual. A presença do Espírito Santo é quem opera o milagre da graça. A transignificação dá um salto qualitativo na compreensão da eucaristia. Não importa ficar preso ao aspecto substancial da matéria ou forma, o que importa é que, de alguma maneira, o espírito de Deus age por sobre os fiéis distribuindo sua graça. Há uma eficácia simbólica.

O que segundo Jung é enunciado da fé a qual a psicologia para explicar cai no terreno fronteiriço do limite incognoscível do metafísico. No qual as explicações psicológicas não encontram um ponto de Arquimedes sobre o que significa o termo “psique”. Na missa estão presentes dois pólos: 1) o humano que se coloca ativamente disponível pela sua fé; 2) o divino que age após a consagração das substâncias do pão e do vinho (o próprio Deus que se oferece à comunidade e ao sacerdote).207 Portanto, a profusão provocada no culto permanece sempre no âmbito do mistério. Durkheim argumentou que a força dinamogênica da religião desconcerta a lógica científica, diferente da demonstrabilidade científica, nem por isso deixa de ser constatada sua existência como experiência religiosa de forma real, experienciada e vivenciada, que não é um sentimento simplesmente ilusório.208 E, Durkheim sublinhou que:

De fato, quem quer que tenha praticado realmente uma religião sabe bem que o culto é que suscita essas impressões de alegria, de paz interior, de serenidade, de entusiasmo, que são para o fiel, como a prova experimental de suas crenças. O culto não é simplesmente um sistema de signos pelos quais a fé se traduz exteriormente, é o conjunto dos meios pelos quais ela se cria e recria periodicamente. Quer consista em manobras materiais ou em operações mentais, é sempre ele que é eficaz.209

Essa transformação do estado de espírito humano verificada no culto é a veri-ficação teológica de Deus e do espírito que emana deste. Sem que o ser humano consiga apontar uma causa, ou explicar em palavras essa efusão de sentimentos que brotam do fundo d’alma. A presença real de Deus é sentida, não há necessidade de uma comprovação substancial metabólica. A comprovação se dá no próprio estado de ânimo do ser que se transforma. Daí, o

206 FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus. Op.cit., p.95. 207 Cf. JUNG, Carl Gustav. Op.cit., p.46-47.

208 DURKHEIM, Émile. Formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.459, 460-481.

que era pão e vinho em seu significado no campo físico, já nada significa, após a consagração estão ali o corpo e o sangue de Cristo, transignificado pela psique humana.

No capítulo VII da Myterium Salutis – A eucaristia como mistério central os autores Feiner e Lorhrer trazem uma abordagem da concepção sobre presença real:

Se na linguagem tradicional chamamos genericamente essa presença de presença real, não pretendemos negar com isso que todas as citadas maneiras de presença sejam também reais e pneumáticas, mas dizer apenas que a presença somática real de Jesus é a autenticação do evento. Mas ela não é afinal o fim último, como já mostra o caráter de alimento, mas serve antes para a mais íntima união pessoal de Cristo conosco mediante sua entrega sacrifical. Neste contexto reluz uma vez mais a transignificação sofrida pelos alimentos alimentares, pois de meios naturais de alimentação se tornam os meios de auto-entrega de Cristo.210

Advinda da ideia da divisão dicotômica herdada da filosofia platônica da supremacia do espírito sobre o corpo. Sendo o corpo algo a ser desconsiderado face à sua mortalidade e o espírito ser imortal, essa ideia contribuia para a tentativa em vários momentos históricos, por ora se enfatizar um aspecto, ora se enfatizar outro aspecto da eucaristia. Para além dessa visão, em Mysterium Salutis – A eucaristia como mistério central faz uma análise da eucaristia na sua conjuntura não excluindo os dois aspectos, mas os entrelaçando: “A transignificação e a transubstanciação não se excluem, pois, mas se entrelaçam mutuamente. A mudança de significação se processa numa profundidade expressa na transubstanciação e presença real”.211

Segundo Aldazábal, ultimamente há uma insatisfação na explicação do mistério eucarístico baseado na concepção da transubstanciação clássica. A física evoluiu de lá pra cá, de Newton a Eistein, passando de uma ideia corpuscular-mássica para uma ideia de permutabilidade entre matéria-energia.212

O caminho da transignificação e transfinalização no momento atual encontra respaldo na filosofia existencialista e fenomenológica, donde há uma volta ao conceito de substância com chave filosófico-teológica, mas desvinculada de compreensões excessivamente fisicistas.213

A “substância” não deve ser necessariamente entendida como quântica, físico-química, e sim mais decididamente no campo ontológico e metafísico.

210 FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus. Op.cit., p.102. 211 Idem, p.102.

212 Cf. ALDAZÁBAL, José. Op.cit., p.329. 213 Idem, p.334.

Santo Tomás dizia claramente que Cristo não está na Eucaristia “localiter”, de uma maneira localizada, como estão nossos corpos num lugar (S Th III, q. 76, a. 5). A realidade mais profunda do ser, a realidade meta-física, é a que muda no pão e no vinho: o que se pode entender numa chave mais próxima às filosofias personalistas. Substância é “o que é”, e é um conceito que já se manejava na escolástica antes que se “redescobrisse” a filosofia de Aristóteles. Se entendermos bem a “transubstanciação”, evitando os inconvenientes que pode ter uma interpretação por demais fisicista, ela inclui também os valores do encontro e da significação profunda.214

Aqui abrimos um parêntese na linha do tempo histórico avançando a discussão até pós-Vaticano II, Mysterium Salutis, para retomar adiante com a linha histórica com a Reforma e a Reforma católica.

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 100-105)