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1.2 Mircea Eliade e a religiosidade do homem arcaico

1.2.2 O mito, o rito e o símbolo na concepção eliadiana

1.2.2.3 O símbolo

Dentro da perspectiva eliadiana, o símbolo tem a capacidade de tornar presente aquilo que se encontra ausente. O ser originário opera com categorias simbólicas tornando possível através desta linguagem simbólica a perenidade dos mitos, posto que o símbolo não é fechado em si mesmo, no tempo, mas trans-histórico. Sempre possível de se reinterpretar e atemporal, o símbolo dá condições ao ser contemporâneo de participar do evento primordial sem perder o seu caráter próprio e específico, ao mesmo tempo possibilitando a abertura a uma ressignificação no contexto em que se encontra atualmente no espaço/tempo.

O simbolismo acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma ação, sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos. Aplicado a um objeto ou a uma ação, o simbolismo os torna “abertos”. O pensamento simbólico faz “explodir” a realidade imediata, mas sem diminuí-la ou desvalorizá-la; na sua perspectiva o universo não é fechado, nenhum objeto é isolado em sua própria existencialidade: tudo permanece junto, através de um sistema preciso de correspondências e assimilações. O homem das sociedades arcaicas tomou consciência de si mesmo em um “mundo aberto” e rico de significados. Resta saber se essas “aberturas” são meios de fuga ou se, ao contrário, constituem a única possibilidade de alcançar a verdadeira realidade do mundo.97

A linguagem simbólica é anterior à razão discursiva, não como um devaneio do psiquismo que os cria, mas como um apriori dado e revelado. As imagens, os símbolos e os mitos que revelam ao ser o que lhe é de mais essencial para o espírito e o desenvolvimento das potencialidades do ser, por isso anterior ao ser.

Os símbolos são tão necessários à expressão do espírito como o corpo o é à sua existência. A dualidade “conteúdo-aparência” é inerente ao dinamismo de realização do espírito: este só se realiza a si próprio em e pelo outro. Por conseguinte, a função essencial do símbolo é colocar o espírito em condições

de se exprimir. A pluralidade das estruturas simbólicas liga-se à natureza multiforme do espírito que exige uma expressão múltipla. Tal expressão refere-se à tensão entre a aparência finita e o conteúdo infinito que dá ao símbolo o seu poder sugestivo. A constituição essencial do homem é, portanto, simbólica: não há um ato seu sequer que seja só espiritual, do mesmo modo que não há nenhum ato seu que seja vazio de significação.98

O homo religiosus é um ser que busca decifrar as mensagens divinas ou hierofanias, vislumbrando um sentido além do meramente humano em todas as coisas criadas. Tudo no mundo é doado e criado pelos deuses para lhe dar orientação, então este ser encontra na natureza, no corpo humano, no universo, os símbolos que os deuses lhe conferiram uma manifestação divina a orientarem a sua existência. Pois bem, este homo religosus ritualístico precisa dos símbolos para rememorar e conservar a sua memória mítica. Os símbolos têm o poder de tornar significativas as propriedades do mito, reiterando a força do mito cosmogônico. Assim, os símbolos prolongam a dialética da hierofania: “tudo o que não é diretamente consagrado por uma hierofania torna-se sagrado graças à sua participação num símbolo”.99

Toda a estrutura dos simbolismos é fundamentalmente baseada na consciência do interpretante de forma a dar significado próprio a cada ser em si de maneira universal, mas ao mesmo tempo individual, pois que cada um apreende conforme sua subjetividade, seu contexto histórico e sua história pessoal de vida. O caráter plurivalente do símbolo, no entanto, não lhe retira sua propriedade. Observamos que este aspecto multivalente do símbolo como universal e particular acontece a partir da noção de subjetividade ou historicidade para o homem moderno. No entanto, para o homo religiosus primevo, o símbolo operava unicamente como universal e tinha um carater exclusivamente unívoco universalmente. Ao que denota uma falta de liberdade de consciência nas escolhas existenciais, ao que o ser humano moderno concebeu como totalmente natural poder escolher entre habitar um mundo profano, dessacralizado, e um mundo sagrado. Ao homo religiosus primitivo isto é inconcebível: não se tinha duas opções de escolhas existenciais, o mundo era todo sacro.

Eliade nos falou de uma “lógica do símbolo”, ressalvando que “esta lógica do símbolo sai do domínio da história das religiões para enfileirar nos problemas da filosofia”100, isto porque desemboca em dois problemas: 1º) pode-se falar exclusivamente de um subconsciente sem pressupor um transconsciente e, 2º) a qualificação superior dada às criações do

98 GUIMARAES, André Eduardo. Op.cit., p.458.

99 Grifo nosso. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Op.cit., p.363. 100 ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Op.cit., p.370.

consciente em detrimento das criações do subconsciente. O autor creu que esta discussão seria mais propicia numa perspectiva filosófica.101

O signo dá origem ao significado que, por sua vez precisa de um significante para dar sentido à mensagem do signo. O símbolo se remete a algo existente, mas que se encontra submerso nas profundezas do inconsciente ou no transconsciente e, quando em relação com a imagem, reflete a presença como efetivamente real.

Aquilo a que se poderia chamar o pensamento simbólico torna possível ao homem a livre circulação através de todos os níveis do real. Livre circulação é, aliás, dizer pouco: o símbolo, como se viu, identifica, assimila, unifica planos heterogêneos e realidades aparentemente irredutíveis. Mais ainda: a experiência mágico-religiosa permite a transformação do próprio homem em símbolo. Todos os sistemas e todas as experiências antropocósmicas são possíveis enquanto o homem se torna, ele próprio, um símbolo. É preciso acrescentar, todavia, que neste caso, a sua vida é consideravelmente enriquecida e adquire maior amplitude.102

Os simbolismos que compunham o pensamento do homo religiosus primevo eram basicamente relacionados com elementos da natureza e do universo: a terra, a água, a lua, o sol, a montanha, o céu, o mar, o corpo, a pedra, etc.

Eliade, durante os seus estudos, em que buscou o processo hermenêutico em várias culturas compreender o homo religiosus. E, quanto à questão destes elementos naturais como símbolos que, em sua maioria, evidenciam uma universalidade simbólica atemporal. Desde o homem dos primórdios, o mesopotâmico, o grego, o hindu, o africano e o australiano encontra-se uma analogia da compreensão destes elementos como significativos e detentores de poder e força sobre a vida humana. Os elementos cósmicos e celestes inferem uma relação de profícua interação humana com as hierofanias ou epifanias que lhe se são doadas no universo. Então, a todo momento, o ser precisa utilizar-se destes símbolos para dar sentido a sua existência. A estrutura destes diversos simbolismos o aquático, da terra-mãe, os lunares- solares, da vegetação (a árvore cósmica), o corpo humano, doam sentido e significado possibilitando ao ser uma unicidade cósmica numa relação de comparticipação, como se o ser humano e o seu corpo-casa fossem co-extensão de todos os elementais cósmicos, vindo daí, por exemplo, a concepção de que a imersão na água possibilita o regresso ao estado pré- formal humano.

101 Cf. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Op.cit., p.370-371. 102 Idem, p.372.

As variedades do simbolismo universal do centro são enormes e há uma continuidade e que são resignificações no decurso da história (a montanha, a escada, a coluna, a Árvore Cósmica, etc.), embora dependendo do seu contexto histórico e cultural possam contar com variantes destes contextos, são a-temporais e a-históricas, prolongando o seu sentido no tempo, ainda que não da forma originária, mas resignificada. A cruz, como variante da Árvore Cósmica, dá continuidade à estrutura simbólica desta não modificando essencialmente o seu simbolismo arquetípico.

O cristianismo acrescentou uma nova valorização a esse simbolismo ao substituir a Árvore Cósmica, o que prova que a Imagem do Centro se impôs naturalmente ao espírito cristão. [...] Endenda-se bem uma variante que vem coroar, diz Eliade, todas as outras valências e significações, precisamente porque sua originalidade está em que a salvação pela Cruz é um novo valor ligado a um fato histórico preciso – a agonia e a morte de Cristo. Mas esta ideia nova prolonga e perfaz a ideia de renovatio cósmica simbolizada pela Árvore do Mundo. Pois, “se é pela Cruz (= Centro) que se realiza a comunicação com o céu” e todo o Universo é “salvo”, uma tal assimilação só foi possível porque a ‘noção se salvação’ não faz mais que retomar e completar (não sublinhado no texto) as noções de renovação perpétua e de regeneração cósmica, de fecundidade universal e de sacralidade, de realidade absoluta e, enfim de contas, de imortalidade. Todas elas são noções que coexistem no simbolismo da Árvore do Mundo”.103

Na concepção de Guimarães sobre a interpretação da dimensão simbólica de um fenômeno religioso deve-se ter em vista uma dupla exigência: a gnoseológica e a ontológica, pois, a estrutura do fenômeno religioso imbuído em um sistema simbólico, não vem dissociada de seu valor existencial. Para ele, a reflexão de D. Allen neste sentido, é muito pertinente. Na análise do projeto eliadiano, Allen disse que Eliade não se restringia a história das religiões, “[...] mas, a partir da hermenêutica do material histórico-religioso analisado, tem em vista abrir-se à constituição de uma antropologia filosófica”.104 E, assim, deve-se evitar avaliar o seu projeto restrito à luz de uma perspectiva empírica, historicista ou de uma fenomenologia descritiva. E Allen se interrogava como pode se estar seguro de uma verificação da legitimidade da afirmação ontológica, de que a estrutura simbólica nos permite desvelar “sobre a verdadeira natureza humana” ou o que “lhe é consubstancial”? Allen tinha uma visão da perspectiva eliadiana próxima de alguns fenomenólogos existencialistas, como P. Ricouer, superando a fenomenologia puramente descritiva e do círculo hermenêutico,

103 ELIADE, Mircea apud GUIMARAES, André Eduardo. Op.cit., p.460-461. 104 GUIMARAES, André Eduardo. Op.cit., p.464.

voltando-se mais para a hermenêutica dos símbolos.105 Estes simbolismos fazem parte da experiência do homem arcaico como perseidade. Não se tem uma consciência, no sentido como entendemos consciência hoje, como estar ciente do propósito de tal fato ou atitude derivar uma consequência. Dir-se-ia que a religiosidade do ser humano arcaico era uma religiosidade natural como co-extensão do seu ser.

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 59-63)