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A vida como liturgia e ação de graças: a participação no sacramento

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 172-177)

3.3 A experiência religiosa como acontecimento “entre” as experiências

3.3.3 A vida como liturgia e ação de graças: a participação no sacramento

Por que o profano está ligado ao corriqueiro e o sagrado está ligado ao extraordinário? Por que considerar apenas o espaço do templo e o momento da celebração eucarística como sagrado? Onde está dito por Jesus que o banquete festivo para o qual conclama aos seus convidados é restrito ao momento da celebração do rito? E o mundo da vida é um espaço de pecado que não pode ser fonte de alegria e prazer?

O cotidiano, para os crentes católicos, pode ser entendido como louvor e ação de graças, liturgia a toda a existência como um prolongamento da celebração eucarística. Não se restringe ao momento cultual a celebração em ação de graças. Como diz Raquel: “Eu rezo o dia inteiro”. Pergunto-a então como é esta oração: É uma conversa intimista ou alguma oração estabelecida pela igreja? Daí ela respondeu-me: “Obrigado! Obrigado! Obrigado! Agradeço a Deus pela vida, e por todas as bênçãos concedidas por ele em minha vida” (ANEXO 1, Questionário 3).

A vida, na cosmovisão destes fiéis católicos, é dádiva e dom doado por Deus. Como está expresso acima, no resultado do questionário fechado, há um sentimento de ser criatura de Deus. Portanto, Deus é o condutor das suas vidas cotidianas. Este enunciado foi também expresso na fala da entrevistada Raquel:

Outro dia saí de casa atrasada para ir ao trabalho. No ônibus comecei a ficar preocupada em chegar atrasada. Mas daí pensei: porque estou preocupada? Se Deus é o dono da vida e é ele que tá me levando. O senhor está me levando não é meu Deus? Não cheguei nem um minuto atrasada no trabalho. (ANEXO 1, Questionário 3)

Como expõe a fiel Raquel, tudo é conduzido e efeito ou reflexo da vontade de Deus. Então, é necessário abandonar-se e se entregar por inteiro para a vontade de Deus. Tudo é obra divina. Jorge, outro fiel entrevistado, entende que é uma obrigação agradecer a Deus pelos dons gratuitos recebidos de Deus:

Eu tenho uma obrigação com Deus. Eu, como cristão, tenho essa obrigação com Deus porque são tantos dons, tantas coisas boas, tantas glórias que a gente tem todos os dias só de acordar e encher o pulmão de ar e ir trabalhar. Eu acho que isso é uma obrigação que a gente tem, que ta aqui para agradecer a vida que a gente tem. Pelo dia de trabalho, eu estou trabalhando desde as 7:00 h da manhã e estou aqui, 19:45h da noite, e vou fazer minhas orações até as 21:00h da noite. Eu tenho muito que agradecer. O cristão tem isso muito arraigado em si, de além de pedir e solicitar a Deus que nos abençoe cada dia mais, de agradecer, não somente pedir em oração, mas a gente agradece muito a Deus pelos dons e bênçãos. (ANEXO 1, Questionário 6)

Para os grandes místicos que fizeram uma experiência fundante, a vida é o lugar e expressão máxima de Deus. Apresentamos no terceiro capítulo como exemplo dessa experiência de comunhão mística em sinergia com o todo que transborda numa existência estético-ética a vida de Francisco de Assis, para o qual o cotidiano era o reflexo de todo amor de Deus. Tudo foi criado por Deus. Assim, também entende Teilhard Chardin.

Outro depoimento que retrata bem esta cosmovisão ou sentimento também foi relatado por Jorge. Estava entrevistando-o quando o indaguei pelo fato de ter dito que, no culto, ele recebe as energias positivas para o trabalho: Por que você acha o espaço do seu trabalho profano e no templo um espaço sagrado? Respondeu-me assim: “Não! O espaço do meu trabalho é sagrado também. É o espaço que Deus me deu para colocar em prática o Evangelho” (ANEXO 1, Questionário 6). Então, ele explicou-me que trabalha num ambiente desfavorável a religiosidade, uma instituição tutelar de menores infratores. Em suas palavras, vem a ser um ambiente que suga as suas energias positivas, um ambiente com uma carga negativa forte. Portanto, no culto, ele capta a energia positiva. E, ainda disse que, quando reza no templo, no rito eucarístico e medita pensando no seu ambiente de trabalho pedindo pelas pessoas que lá estão, é como se imantasse todo o ambiente lá com a energia do templo.

Teilhard de Chardin tem uma descrição sobre a energia propagadora da hóstia no momento da consagração, quando ele estava contemplando a hóstia. Parecia que ela ia tomando a luz branca e se espraiando por todo o recinto. Em seguida, ele diz que essa luz se

expande por todo o cosmos para, em seguida, se retrair novamente na hóstia que o sacerdote tem nas mãos.302

Este movimento de expansão e recolhimento faz parte do cosmos e do Universo. É um movimento que, primeiro agrega e assimila e, em segundo, expande e difunde a energia. Assim acontece com as relações de inter-comunhão. É através do encontro com Deus e consigo mesmo que o fiel se recolhe no mais profundo de sua alma e, em seguida, expande esta energia condensada para os seus semelhantes e todo o seu em torno. Estes momentos de encontro com Deus, pela eucaristia, são essenciais para recarregar essa energia benéfica e renovadora.

3.3.4 “Aqui eu me encontro. Aqui eu me encontro...”

Raquel fez uma revelação da sua vivencia religiosa e da sua espiritualidade pela participação na celebração eucarística de maneira profunda. Revelou que frequenta a Igreja de São Sebastião porque ali é o ponto de encontro: “Aqui eu me encontro. Aqui eu me encontro.” Raquel continuou a descrição da sua experiência religiosa, dizendo que não é muito de frequentar igreja, mas na igreja de São Sebastião ela se encontra. Diz não saber se é porque ali a missa é muito cantada ou se é pela figura do Padre Geraldo, com seu especial carisma, que faz homilias profundas e que tocam muito profundamente a sua alma. Continua em seu relato fazendo menção aos santos que estão ali, dentre eles a Santa Filomena da qual é devota. Conclui que é a missa, como um todo, que faz sentir ali uma energia de muita paz, harmonia e amor que não sente em lugar nenhum fora dali. E, que especificamente ali, naquele lugar, na Igreja de São Sebastião ela se encontra e sente a presença de Deus mais forte. Eis uma parte do nosso diálogo: Nessa igreja aqui especifica de São Sebastião. Por quê? “Aqui eu me encontrei... Não sei se é pelas músicas. Não sei se pelo padre Geraldo, que eu gosto muito dele. Não sei se pela música, aqui a missa é muito cantada. Aqui eu me encontro...” (ANEXO 1, Questionário 3). Você teve uma empatia ou sintonia aqui?

302 DE LUBAC, Henry. Op.cit., p.87.

Foi. Eu moro perto da Igreja da Glória, e não vou na igreja lá, não gosto de ir. Não é que eu não me sinto bem. Eu não me encontro ali dentro. Aqui eu me encontro. Não sei se pelas imagens também, que aqui tem a Santa Filomena e o Santo Expedito que eu sou muito devota dele. E, assim aqui eu me encontro. Aqui é tudo! Tem horas assim que a estou meio que pra baixo, na mesma hora eu me fortaleço. (ANEXO 1, Questionário 3)

Em nossa hermenêutica, no contexto mesmo do fenômeno eucarístico, se mostrou muito enfaticamente a questão do sentimento de empatia como o primordial da experiência religiosa. Por isto, muitos fiéis falam da figura do sacerdote como importante para o sentimento profundo da sintonia com o numinoso ou sagrado. Diz da importância do sacerdote para tocá-los com o sermão ou homilia. Otto, atentou para este aspecto da religião que não é algo ensinável no sentido estrito ao sentimento de fundo, mas pode ser despertado de alma para alma, como os sentimentos de empatia, desenvolvendo uma tonalidade afetiva. Esta empatia com o sacerdote e com o todo da missa foi sendo importante e foi apontada pela grande maioria, ou pelo menos parte considerável dos fiéis pesquisados. Sobretudo, a importância do conjunto da missa. Isto que faz ser o espaço do templo o lugar do encontro com a orgé diferente do cotidiano ou espaço da rua.

Segundo Eliade, o espaço do templo é diferente do espaço da rua, é o “centro do mundo”, uma imago mundi, a porta ou limiar onde o fiel sente a força de um poder diferenciado:

A fim de pôr em evidência a não-homogeneidade do espaço, tal qual ela é vivida pelo homem religioso, pode-se fazer apelo a qualquer religião. Escolhamos um exemplo ao alcance de todos: uma igreja, numa sociedade moderna. Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço diferente da rua. A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano ao mundo sagrado.303

Na concepção de Eliade, no espaço do templus a porta é o limiar entre céus e terra. O lugar que possibilita a passagem e a transcendência do mundo profano ao mundo sagrado: “O limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem”.304

303 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Op.cit., p.28-29. 304 Idem, p.29.

Ainda que o relato do fiel Jorge no subitem anterior relativize, em certa medida, esta consideração do Eliade, para ele, o espaço do trabalho é uma continuidade do espaço sagrado do templo. O que acontece é que o templo é um ponto de concentração de forças onde recarrega o seu espírito para a prática no trabalho e nas relações, como dado por Deus para que ele exercite os ensinamentos do evangelho recebidos no templo. Compreende que, no templo, há uma energia diferente do espaço da rua que restabelece suas energias positivas e conduz o seu caminho.

Raquel também relatou o fato de sentir ali naquele ponto de encontro uma energia que não sente em nenhum lugar fora dali. Expôs ser sensitiva e ter facilidade para captar energias, tanto positivas, quanto negativas. Diz que, às vezes, entra em algumas casas e sente um ambiente tão pesado e carregado que até se sente mal.

De acordo com Raquel, poderia traduzir-se num “profundo amor: este amor que move”. O sentimento que tem dentro do templo é uma presença mais perto de Deus. Como se naquela igreja Deus estivesse em presença real com ela. É um encontro com Deus e ele está presente com o seu fogo de amor.

Dirce enfatiza que é no momento da consagração que sente esta presença mais forte: “Ele vem com força total, em corpo, alma e divindade”.

A última ceia foi feita com um pedaço de pão e o cálice de vinho. Isto vem de longa data. Isto é um ritual que me lembra a ceia de Jesus. É um ritual e ele faz parte porque me lembra a ceia de Jesus. Ele lá com os apóstolos na última ceia. É uma volta no tempo. Meu sentimento é assim: quando eu olho para o cálice, quando levanta, entrego meus filhos, minhas netinhas. Ali para mim é Jesus realmente. Jesus de corpo, alma e divindade. A pessoa de Jesus está ali. (ANEXO 1, Questionário 5)

A senhora acha que é uma presença real? A senhora acha que é uma presença espiritual ou substancial? “Para mim é uma presença real. Real mesmo! É substancial mesmo. Não é que chego ali e enxergo não. Na minha cabeça, eu memorizo a última ceia, os apóstolos, Ele lá. E nós aqui como os apóstolos dEle. A eucaristia e a consagração é o momento mais importante da missa”. A senhora sente a presença de um amor mais intenso durante missa?

O meu sentimento é assim de participar, de sentir alegre e de sentir assim... Fortalecida! Para aquela semana. Eu me sinto assim, como se eu tivesse tomado alguma coisa que me fortalecesse durante toda a semana. Qualquer igreja que eu vá eu tenho o mesmo sentimento de alegrar e de participar com a comunidade. (ANEXO 1, Questionário 5)

A face do outro, o Tu, é uma revelação e um espelho exemplar que se unem em laços fraternais que dão ao fiel o seguimento de um caminho que é comum-unidade. Tal sentimento se fortalece na relação Eu/Tu, no face-a-face do outro irmão que é uma unidade de sentido em prol de um bem comum. Unidos pela fé trilham uma mesma estrada em busca do eterno e da felicidade plena.

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 172-177)