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Natureza simbólica/anamnética e liminar do rito eucarístico

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 129-136)

2.3 A eucaristia: sacramento da vida plena experienciada

2.3.4 Natureza simbólica/anamnética e liminar do rito eucarístico

Hodierno na missa que se constituiu no decorrer dos séculos há uma retomada da ceia como um rito liminar que possibilita ao sujeito o contato com o objeto através da eficácia simbólica operada pela fé. Jesus, o símbolo de Deus, precisa ser aceito pelo sujeito como proposta de vida. Nas palavras de Taborda:

Pelo símbolo, portanto, o homem transcende o mundo do imediato, do dado empiricamente, e atinge o mundo do sentido global. Símbolo é uma forma de mediação entre a realidade empírica fragmentária e a totalidade, o sentido global não dado empiricamente e que nem pode ser dado empiricamente. A realidade empírica é por definição fragmentária; a plenitude de sentido é global, não se dá empiricamente, é futura, utópico-real.271

Há uma angústia existencial no ser humano que não se contenta com uma explicação fragmentária da realidade, busca a unidade do todo. O homem busca um sentido além do

270 Idem, p.33-34.

mundo dado, segundo Van der Leeuw em Fenomenologia della Religione272

, o mundo surpreende o homem, colocado no mundo o homem não se sente em casa própria. Há na interioridade humana algo que lhe escapa, que o angustia, a qual Heidegger chamou preocupação.273 E é justamente esta negação que funda sua humanidade, quando o homem percebe ou intui que nele habita um espírito: “O espírito é a vida que afeta na própria vida”.274 Diante de tal sentimento o homem é impelido a agir:

O homem vê na vida mais que um dado, vê nela uma possibilidade. Mas, tal possibilidade exige que o homem aja. A sua surpresa deve tornar-se um comportamento e seu comportamento uma celebração. E seu comportamento deve ser conforme a potência que a ele se revela.275

No símbolo e no rito o ser humano encontra o alento de algo superior, uma força que lhe dá o conforto e a energia para sua caminhada existencial. Van der Leeuw cita uma alegoria do rito, onde o descrevem como um carrinho que o ser humano empurra e se tranquiliza por saber que o Menino Jesus está no carrinho:

Uma criança de família pietista divertia-se em empurrar um carrinho de mão. Depois começou a repreender-se severamente e culpando-se da brincadeira de criança; finalmente tranquilizou a sua consciência pensando que o Menino Jesus estava no carrinho, para levá-lo a dar uma volta para ao Senhor.276

Van der Leew então acrescenta que: “O jogo tornou-se rito, o divertimento espontâneo, sem restrição, cedeu lugar ao comportamento”.277 O ser humano, dessa forma, sente-se tranquilo em contar com este poder superior condutor da sua existência para um sentido de vida. Uma finalidade que transcende o meramente dado na imanência da sua condição limitada. Diante do sentimento de impotência das vicissitudes e circunstâncias da existência, sente-se seguro e tranquilo por conduzir sua vida com a orientação dessa potência revelada à sua consciência como um poder trans-humano, dando possibilidade de transcender

272 Para maior aprofundamento desta tem ver o terceiro capítulo La relazione tra oggetto e soggetto. In: VAN DER LEEUW, Gerardus. Op.cit., p.269-418.

273 Cf. VAN DER LEEUW, Gerardus. Op.cit., p.269.

274 NIETZSCHE apud VAN DER LEEUW, Gerardus. Op.cit., p.270. 275 VAN DER LEEUW, Gerardus. Op.cit., p.270.

276 Texto original: “Um bambino di famiglia pietista si divertiva a spingere um carrettino a mano. Poi cominciò

a riproverarsi severamente Il gioco colpevole; finalmente tranquillizzò la sua coscienza pensando che il Bambin Gesú stava nel carrettino, da lui portato in giro per far piacere al Signore”. VAN DER LEEUW, Gerardus. Op.cit., p.270.

277 Texto original: “Il gioco è diventato rito, il divertimento spontaneo, senza costrizione, há ceduto il passo al

as dificuldades existenciais, com as quais o poder humano não consegue transpor. No culto, o ser humano sente a força de uma potência que o leva a agir e a conduzir-se abraçando um referencial de sentido num mundo caótico.

Tudo que sabemos até agora na conduta e na celebração, no tempo e no espaço, na ação e na palavra, faz parte desta grande colheita, desta tomada de posição diante a potência, que chamamos culto. No culto o homem procura dar forma, não apenas à experiência vivida a emoção individual e coletiva, a sua própria conduta e da sua comunidade, mas também a conduta da potência, ao próprio ser da potência, ao ser mesmo da potência. No culto, o ser do homem e o ser de seu Deus são reunidos em um atual ser assim: o ser do homem e o ser do seu Deus é essencialmente combinado e representado como (estado de) como quem é atingido e (ação de) atingir, como ser criado e criação. No culto a figura do homem é determinada, aquela do Deus crida, e a figura das suas recíprocas relações é experimentada, vivida, em ato. Assim acontece em todos os cultos, do mais rico ao mais pobre.278

E, segundo Durkheim, em As Formas Elementares da Vida Religiosa, é no rito ou culto coletivo que o homem sente-se transformado por uma energia em que as suas atividades psíquicas se transformam em um estado de excitação. Estas energias dão sentido e forças para o ser humano agir e enfrentar as dificuldades existenciais e vicissitudes da vida cotidiana.

Vimos, com efeito, que se a vida coletiva, quando atinge um certo grau de intensidade, desperta o pensamento religioso, é porque determina um estado de efervescência que muda as condições da atividade psíquica. As energias vitais são superexcitadas, as paixões ficam mais intensas, as sensações mais fortes; há algumas inclusive que só se produzem nesse momento. O homem não se reconhece; sente-se como que transformado e, em consequência, transforma o meio que o cerca.279

Indo além, Durkheim acreditava que estas forças emanadas do culto coletivo é que impelem o homem à ação e a transformar o meio social. “O culto reúne os sentimentos dispersos e transforma uma religiosidade indistinta em consciência religiosa individual e

278 Texto original: “Tutto quanto abbiamo trovato finora nella condotta e nella celebrazione, nel tempo e nello

spazio, nell’azione e na parola, fa parte di questa grande raccolta di questa presa de posizione di fronte alla potenza, che chiamiamo culto. Nel culto l’uomo cerca di dare una forma, non soltanto all’esperienza fatta, all’emozione individuale e collettiva, alla propria condotta e a quella della sua comunità, ma anche alla condotta della potenza. Nel culto l’essere e l’essere del suo Dio sono reuniti in un attuale essere cosí: l’essere dell’uomo e del suo Dio è essenzialmente inteso e rapresentato come (stato di) chi è colpito e (azione di) colpire, come essere criato e creazione. Nel culto la figura dell’uomo è determinata, quella di Dio è creduta, e la figura della loro recíproca relazione é sperimentata, vissuta, in atto. Cosí avviene in tutti i culti, dal piú ricco al piú povero”. VAN DER LEEUW, Gerardus. Op.cit., p.348.

coletiva”.280 É o momento do encontro do humano com a potência divina de maneira que o ser humano é atingido no seu ser de forma individual e coletiva.

O imperativo das forças religiosas coletivas na consciência do indivíduo são a força motriz ou substrato da religião para a realização da sociedade ideal – a qual, na hermenêutica do crente católico acredita ser o reino de Deus. A culminância, onde a anulação do mal radical será uma verdade real e não ideal.

O que queremos chamar a atenção com a teoria Durkeimiana é a liminaridade simbólica do culto eucarístico que se faz real para o crente na efetiva experienciação religiosa anamnética através do rito de maneira individual. Mas, que também se faz experiência da comunhão comunitária. Durante o culto, a linha de separação entre o homem, o seu semelhante e Deus se torna tênue. Quiçá desapareça e se dissolva na celebração e efervescência do culto. Onde, por um momento, o crente experiencia a felicidade e alegria de um mundo ideal: O Reino de Deus.

Chamamos aqui a reflexão de Eliade em Mito e realidade sobre a eficácia simbólica que é operada na consciência humana durante a narração do mito. Para tanto, o mito para alcançar sua eficácia tem que ser narrado num rito coletivo, onde a narrativa coletiva propicia a reatualização do mito na memória. A operação simbólica anamnética do mito reatualiza a força e o poder do momento da cosmogonia fundante transpondo o espaço/tempo. Há que ressaltar que isto é parte do mistério ao qual o conhecimento científico não consegue explicar. No entanto, ele é verificado sentimentalmente pelo fiel que participa do culto como algo real como verificação teológica. Experienciado e vivenciado como um mysterium – como nos fala Otto – no fundo d’alma.

280 Texto original: “Il culto reunisce i sentimenti dispersi e trasforma una religiosità indistinta in coscienza

3 A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DA EUCARISTIA

A experiência religiosa vivenciada pela participação dos fiéis na eucaristia católica é o escopo desta pesquisa. Tarefa com a qual tentaremos nos aproximar com a maior delicadeza e cuidado quando se trata da entrada no campo do outro. Principalmente o campo religioso do culto e do sagrado.

É impactante quando saímos do confortável campo da teoria e nos defrontamos com o mundo da vida, ou campo empírico. Vamos ao campo encharcados de teorias, acreditando que estas ideias abarcam o todo. O mundo da vida é o campo onde não cabem ideias pré- concebidas, ele é dinâmico e, é sempre uma possibilidade virtual, vai se revelando como uma incógnita. Pulsante, cheio de surpresas, no mundo da vida somos surpreendidos, a cada a momento, por cada experiência ímpar destes fiéis. Ainda que venha da mesma fonte simbólica comunitária, a experiência religiosa de cada fiel dá um tom e um caráter pessoal a sua experiência como individual a priori. Até que ponto a teoria consegue captar e entender todas as nuances da prática? É fato que há uma relação dialética entre teoria e prática, nunca exaurida ou superada completamente como um sempre devir reflexivo. Justamente o que torna necessário o contato direto com o fenômeno da experiência religiosa pela Eucaristia em seu contexto religioso. Fazermos uma reflexão do fenômeno como ele se mostra com sua práxis. Tornando o nosso quê fazer como práxis dialética, pois é evidente que o universo fenomênico da experiência religiosa pela eucaristia é uma práxis reflexiva. Sendo assim, o nosso trabalho no contato com o campo empírico com base na fenomenologia deve levar em conta este aspecto primordial do fenômeno eucarístico. Ou seja, trabalhar com as amostras buscando um diálogo sem uma superação definitiva do todo e sim uma suspensão (aufheben). Compreendendo, como já dissemos, o campo do fenômeno religioso dinâmico como eterno devir.

Em minhas conjecturas iniciais no contacto com o campo ou fenômeno nas observações participativas ou participações observantes busquei isentar-me e desprender-me das minhas ideias internalizadas de nativa. Procedendo com o distanciamento do objeto de pesquisa, buscando o estranhamento do fenômeno olhando com uma lente nova aquela realidade, como se fosse pela primeira vez ao culto. Não é tarefa fácil. Desvencilhar-me do olhar de nativa foi um exercício que requereu constante vigilância. É necessário estar alerta e se indagar o tempo todo: será que você não está sendo influenciada por pressupostos internalizados na sua vivência religiosa, ou por pressupostos teóricos adquiridos na academia?

Quando olhamos o fenômeno com olhar de pesquisadora é algo realmente diferente. Aquilo que me parecia tão familiar e sereno tornou-se alvo de indagações e de um olhar crítico. Parecia-me que estava suspensa. Colocando entre parênteses as minhas verdades, estava exercitando uma supressão para não crer nas minhas ideias de nativa. Ouvindo e captando apenas aquilo que os fiéis iam me dizendo, como suas próprias verdades subjetivas. Esta suspensão ou supressão é algo à qual não há palavras para descrevê-la, assim como a experiência religiosa.

A incursão desta pesquisadora no campo de pesquisa foi, em certa medida, tranquila e fluídica. Contei com a receptividade dos fiéis e a disponibilidade pronta em dizer do sentimento que têm e que os move a participar da liturgia eucarística. Pareceu-me que eles estavam esperando que eu fosse ao campo empírico para dar-lhes voz.

Já no primeiro dia, fiquei impactada com a homilia proferida pelo sacerdote – parecia recém-ordenado – pois falava sem uma sintonia ou empatia com o corpo de fiéis, parecia-me que estavam apáticos, como se as palavras daquele discurso não significassem nada. Chocou- me a ênfase demasiada do discurso sobre a eucaristia como um rito para o perdão dos pecados. A palavra pecado tornava-se mais importante durante o culto do que a communio e o sentimento de participação num culto para o encontro com o Senhor. Após a missa, uma fiel entrevistada sem a minha interpelação sobre a performance do sacerdote disse-me: “Pena que a homilia hoje não conseguiu tocar a gente, o padre falou coisas que não tocam a gente profundamente...”.

O cerne desta pesquisa é principalmente ouvir o fiel que vivencia na práxis o sentimento do sagrado através da eucaristia. Percebemos que o mais comum até agora, é que a voz e o olhar sobre a eucaristia esteve sob a compreensão da eclesiologia. Observamos que são escassas pesquisas sobre a eucaristia e o sentimento do fiel católico sobre tal sacramento. No campo da teologia eucarística, na grande maioria, os autores descrevem o que é a eucaristia de acordo com a compreensão da tradição teológica. Portanto, o ponto fulcral desta pesquisa é ampliar o olhar e aguçar a audição para adentrar no universo simbólico da experiência religiosa destes fiéis na sua vivência e como se mostra o fenômeno.

O nosso campo de pesquisa é constituído de duas comunidades católicas de Juiz de Fora: Paróquia de São Sebastião e Paróquia de Santa Luzia. A Paróquia de São Sebastião situa-se no centro da cidade, com um número expressivo de fiéis. O contexto geográfico em que se localiza esta paróquia é de classe média/média. A paróquia de Santa Luzia, ao contrário da anterior, situa-se num bairro da periferia da cidade, num contexto geográfico

diferente da primeira. Esta paróquia está em um espaço geográfico considerado classe média/baixa.

Estes dois contextos geográficos representam, pois amostras de ambientes ou contextos diferentes. Mas, até que ponto tais diferenças geográficas somadas às diferenças de certa maneira culturais, influem na configuração da experiência religiosa destes sujeitos alvos da nossa pesquisa? Será que o sentimento e a maneira como os fiéis praticam a eucaristia gera diferenças significativas?

Num primeiro momento, o intuito da nossa pesquisa é dialogar com as perspectivas dos dois teóricos primários desta dissertação, no que se refere à experiência religiosa. Num segundo momento, captar as entrelinhas nas falas, qual é o sentido do fiel católico que pratica este sacramento nestas duas comunidades, e sua interface com o sentimento do sagrado. Com o aporte teórico-metodológico de Rudolf Otto e Mircea Eliade e, segundo a compreensão da tradição da teologia eucarística, elaboramos dois questionários para a pesquisa de campo e algumas perguntas para a entrevista aprofundada.

No decorrer da nossa pesquisa traçaremos um paralelo das observações participantes ou participação observante, e das anotações feitas em entrevistas diretivas e entrevistas não diretivas feitas com questionários abertos e questionários fechados com fiéis abordados nas portas das respectivas igrejas, alvo da nossa pesquisa antes e após as missas.

Nas entrevistas aprofundadas os relatos serão utilizados como um rico repertório de vivências experienciadas na celebração eucarística. E, com relação às entrevistas aprofundadas, escolhemos 3 fiéis de cada comunidade, fomos até suas casas e fizemos entrevistas aprofundadas gravadas em torno de aproximadamente uma hora com cada fiel. Para um conhecimento maior, no Anexo desta dissertação encontram-se as referidas entrevistas, com as partes que considerei mais relevantes, de acordo com o foco deste trabalho.

Os questionários aplicados nestas comunidades foram elaborados baseados na teoria dos nossos autores primários, a saber, Mircea Eliade e Rudolf Otto. Assim como também foram baseados nas nossas leituras sobre a compreensão teológica deste sacramento cristão. Sendo o alvo destes questionários o total de 100 fiéis – 50 responderam ao questionário aberto e 50 responderam ao questionário fechado – que se dividiram em 50 fiéis para cada paróquia (São Sebastião e Santa Luzia) respectivamente. Com estes cem fiéis abordados foi utilizada uma metodologia que se pensou para buscar em dados referenciais aspectos em similitude com a teoria aqui buscada como aporte para a descrição da experiência. Mas, também para

pensar em que medida a teoria é uma inversão da prática, seja da abordagem da fenomenologia, seja pela perspectiva da tradição da teologia eucarística.

Em face destas premissas, vamos discorrer uma análise do material coletado ligando a compreensão teórica dos vários autores aqui citados e, particularmente, focados nos autores primários da nossa pesquisa. Buscaremos subsídios nos autores da fenomenologia, por ser este o método escolhido para o nosso objeto de estudo. Mas, por vezes alguns flashes de antropólogos, sociólogos, teólogos, etc., serão indexados a nossa pesquisa. Porque o fenômeno religioso como nos fala Eliade extrapola por todos os campos dos saberes. O fenômeno religioso é amplo e global. Por vezes, resvalaremos pelo campo social, ainda que nossa pesquisa não seja tratada por um viés sociológico. No entanto, a eucaristia, na sua envergadura e completude, abrange a totalidade da realidade. Por isto, a fenomenologia talvez seja o método especialmente adequado para a nossa pesquisa, ou seja, por permitir um trânsito entre os diversos campos dos saberes sem se circunscrever ao viés de um único olhar. Cada olhar é um ponto de vista, cada ponto de vista é uma perspectiva dentro da abordagem específica de cada ciência.

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