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1.2 Mircea Eliade e a religiosidade do homem arcaico

1.2.2 O mito, o rito e o símbolo na concepção eliadiana

1.2.2.1 O mito

Mito na concepção de Eliade, não é uma fábula ou uma narrativa não-verdadeira, mas sim uma narrativa sagrada, que relata como algo foi criado, como algo foi produzido e passou a ser. “Cada mito mostra como uma realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana”.75

71 “Toda a hierofania é uma cratofania, uma manifestação de força”. ELIADE, Mircea. Mitos, sonhos e

mistérios. Trad. Samuel Soares. Lisboa/Portugal: Edições 70, 1989, p.111.

72 De acordo com Eliade, “o mito cosmogônico desempenha um papel importante nas curas, quando se busca a regeneração do ser humano. [...] Mas é na polinésia talvez que Io pronunciou em illo tempore para criar o mundo tornaram-se fórmulas rituais. Os homens repetem-nas em múltiplas ocasiões: para fecundar uma matriz estéril, para curar (tanto as doenças do corpo como as do espírito), a fim de se prepararem para a guerra, e também na ocasião da morte ou para incitar a inspiração poética”. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Op.cit., p.74. 73 Mas, visto que a recitação ritual do mito cosmogônico implica a reatualização do acontecimento primordial, segue-se daí que aquele para quem se recita o mito é projetado magicamente in illo tempore, ao “começo do mundo”, tornando-se contemporâneo da cosmogonia. Trata-se, em suma, de um regresso ao Tempo da Origem, cujo fim terapêutico é começar outra vez a existência, nascer (simbolicamente) de novo. ELIADE, Mircea. O

sagrado e o profano. Op.cit., p.74.

74 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Op.cit., p.74. 75 Idem, p.86.

A oposição entre o mito – como uma história fictícia fantástica – e a verdade – como hierofania – é claramente exposta por Eliade na sua obra O sagrado e o profano:

O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. [...] O mito é, pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito torna- se verdade apodítica: funda a verdade absoluta.76

O mito que funda a realidade dando ao mundo um significado possibilita a organização, a consciência com base numa verdade que dá sentido a existência humana. Não querendo dizer com isso que seja a própria consciência humana que cria os mitos, mas os mitos são revelados pelos deuses ou seres sobrenaturais. Sendo a fundação de um cosmo dentro de um mundo profano, o mito revela os modelos arquetípicos elementais à conduta humana. A importância em se conhecer a estrutura e a função dos mitos está, pois, que estes são referenciais de sentido, as perguntas e questões últimas sobre sua existência. “A principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria”.77 Eliade apontou para a importância do conhecimento da estrutura e função dos mitos nas sociedades tradicionais como fonte de compreensão do homus religiosus primevo, mas não tão somente “o estádio mental e o momento histórico” do homem dos primórdios, é importante para a compreensão do homem contemporâneo e seu processo construtivo em relação com a emanação do sagrado.

Por isso, o mito é vivido e experienciado pelo homo religiosus a todo o momento, ainda que este não tenha consciência efetivamente de sua operacionalidade, o mito é vivo e mesmo na modernidade onde houve a tentativa de desmitificação e dessacralização pela racionalidade científica, o mito continua vivo no pensamento humano contemporâneo, porque somos herdeiros destes modelos arquetípicos, ainda que inconscientemente eles façam parte do inconsciente coletivo.

76 Ibid., p.84.

[...] o mito é – ou foi, até recentemente – “vivo” no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo por isso mesmo, significação e valor à existência. Compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos.78

Seguindo a interpretação de Filoramo e Prandi (1999), Eliade seguiu a hipótese do antropólogo Bronislau Malinowski (1884 – 1942), para quem o mito é a narração de um evento primordial, mas a sua eficácia é atual e operante na consciência coletiva. O mito figura não como um produto cultural dentre outros, mas como uma espécie de elemento de coesão e sustentação das diversas instituições e práticas culturais. Apesar de abster-se de hipóteses transcendentais sobre o problema da verdade é um dos primeiros antropólogos a afastar-se da perspectiva evolucionista da religião: “Malinowski, mais do que colocar-se o problema de ‘explicar’ a religião, adotou o ponto de vista da religião que explica o mundo”.79 O mito, escreve o antropólogo inglês:

É a expressão, a valorização, a codificação de um credo; defende e reforça a moralidade; garante a eficácia do rito e contém práticas que orientam o homem. O mito é por isso, um componente vital da civilização humana; não é uma historia boba, mas uma força ativa e operante; não é uma explicação racional ou uma imagem artística, mas um documento de fé primitiva, de sabedoria moral.80

O debate em torno da função do mito para o homem e a sua formação já era uma preocupação desde antes a antropologia funcionalista, mas com enfoque positivista e evolucionista e, várias são as teorias propostas pelos antropólogos a partir do final do século XIX para o século XX a este respeito. Porém, a antropologia irá tratar o mito pelo viés da antropologia, a perspectiva própria da antropologia emergente. Com o decorrer do tempo, com o processo de desenvolvimento da antropologia, a concepção sobre o mito foi se modificando e com Mircea Eliade retomou uma teoria mais voltada para a ciência da religião e para a fenomenologia antropológica da religião.

De acordo com Leenhardt, Malinowski “protestou violentamente contra a definição clássica de mito, a qual, segundo ele, aplicava-se a mitos mortos. Ora, para o melanésio o

78 Idem, p.8.

79 Sigo aqui a interpretação de Malinowski, feita por FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das

religiões. São Paulo: Paulus, 1999, p.208.

80 MALINOWSKI apud FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo; Paulus, 1999, p.208.

mito é uma realidade ‘vivida’”.81 Malinowski vai mais além: “As emoções experimentadas no momento em que se ouvem certas narrativas surgem igualmente na presença de certos costumes, regras ou rituais”.82 E Eliade encerrou o primeiro capítulo de sua obra Mito e Realidade (1972), com uma citação de Malinowski:

O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz as profundas necessidades religiosas aspirações morais, a pressões e imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação do homem. O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana. Longe de ser uma fabulação vã é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente. Não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática (...).83

Aqui a relevância dada por Malinowski ao mito vivido como imperativo vital a continuidade da civilização humana, denotando que o mito tem a função social e coletiva de perpetuar as regras morais, bem como de regular as relações humanas no que tange as questões morais, evidencia a função meramente funcionalista ou cultural do mito. Para Eliade, o mito transmuda a sua perspectiva funcionalista, faz parte mesmo do existir humano enquanto tal, independentemente da consciência da existência do mito pelo ser humano, ele é vivido pelo inconsciente coletivo, independente da vontade humana. E neste sentido, Junito Souza Brandão ressalta que:

O homem, desde a sua origem não produz os Mitos. As ideias mitológicas ocorrem a ele; ele não as pensa, mas é pensado por elas, poderíamos dizer. [...] De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra “revelada”, o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao nível da linguagem, “ele é antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento”. Maurice Leenhardt precisa ainda mais o conceito: “O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se como narrativa”.84

81 LEENHARDT, Maurice. O mito. In: Religião e sociedade. 14/1. Rio de Janeiro: ISER, 1987, p.91. (Revista eletrônica Religião e Sociedade). Disponível em: <http://www.iser.org.br/religiaoesociedade/instr.html>. Acesso em: 11 mai. 2012.

82 Idem, p.idem.

83 Malinowsk apud ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Op.cit., p.23.

Carl Gustav Jung foi o primeiro a usar o arquétipo compreendendo-o como conteúdo do inconsciente coletivo.85 Com a herança dos arquétipos e que no mito, esses conteúdos vêm com a tradição remota e é impossível determinar a idade de sua origem. Pertence a consciência humana de forma ativa e operante ainda que o ser humano não se dê conta da sua potencialidade. O que denota que a consciência mítica ainda nas sociedades modernas continua viva, apesar de esquecida. Estas imagens arquetípicas se dividem em: imagens de caráter pessoal (experiências pessoais) e imagens de caráter impessoal (elementos coletivos que são hereditários).86

É interessante ressaltar, no entanto, que apesar de Eliade reconhecer paralelismos e influências de Jung, com sua psicologia do profundo, na sua obra considerando um avanço para a descrição e a compreensão do fenômeno religioso, e dessa maneira a apreensão pela psiché dos mitos, quanto ao termo “arquétipo”, disse que, embora utilizem a mesma terminologia, há uma distinção entre o significado dado por Jung e o significado que este quis sobressaltar:

[...] mas, no mesmo sentido... cometi erro em dar ao Mithe de l’Eternel Retour o subtítulo ‘Archpetypes et répétiton’. Era correr o risco da confusão com a terminologia de Jung. Para ele, os arquétipos são as estruturas do inconsciente coletivo. Mas, empreguei este termo me referindo a Platão e a Santo Agostinho, no sentido de ‘modelo exemplar’ – revelado no mito e que se reatualiza pelo rito. Deveria ter dito ‘Paradigmes et répétition’.87

A este respeito, Guimarães, em sua obra O sagrado e a história: fenômeno religioso e valorização da história à luz do anti-historicismo de Mircea Eliade, sublinha que, apesar das considerações de Eliade, no que se refere ao modo como concebe o arquétipo distintamente de Jung, não é inteiramente estranha a ideia de arquétipo em Jung como ideia de paradigma, de modelo ou de ideia primordial ao da ideia platônica ou das ideae principales de Santo Agostinho. Todavia, ressalva que é relevante a distinção feita por Eliade, pelo já dito da autonomia do fenômeno religioso ao não se ater ao aspecto reducionista do inconsciente coletivo, apesar de Eliade encontrar nesta teoria uma possibilidade para a gênese das expressões religiosas, entretanto, a experiência religiosa não pode ser reduzida ao âmbito exclusivo da psicologia como verdade a priori.

85 “Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressa a identidade de todos os homens, seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido”. BRANDÃO, Junito de Souza. Op.cit., p.37.

86 Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Op.cit., p.idem.

Observa Eliade que as descobertas da psicologia do profundo liberaram o historiador das religiões das suas últimas hesitações quanto a a-historicidade e à universalidade de certos símbolos e temas mítico-rituais. Para ele, trata- se da corroboração daquilo que lhe revela a morfologia do sagrado: a unidade fundamental das experiências religiosas da humanidade. Seu argumento contra aqueles que pretendem explicar os fenômenos religiosos apenas a partir dos condicionamentos históricos encontra-se agora mais fortalecido por essas descobertas.88

A psicologia, como a antropologia, a sociologia, a história e tantas outras ciências tentam abarcar a experiência religiosa dentro das suas abordagens específicas, olhando apenas por um enfoque do fenômeno, ao que Eliade concluiu que a experiência religiosa desencadeada pelo mito transborda por todos os setores e vetores sociais, psicológicos, culturais, históricos: é um fenômeno total que abarca todos os âmbitos da existência humana.

Eliade, apesar de concordar sobre o aspecto funcionalista do mito como apontaram alguns antropólogos, percebeu que o mito não se reduzia somente ao aspecto funcional de coesão social e ordenação das condutas práticas humanas. Para Mircea Eliade, “o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”.89 O mito é complexo na sua lógica, é mais abrangente na sua existência, portanto Eliade buscou retomar o mito partindo do significado ex-istencial propulsor ontológico da existência humana. Como um apriori que se revela à consciência humana, ao qual é impossível apoderar-se da sua propriedade. Para este autor, o mito é sim um condutor e orientador da existência. No entanto, transborda a qualquer tentativa de explicação sobre a sua natureza operacional na sua totalidade, o que se conclui é que o mito é uma parte consubstancial do espírito humano que se revela como linguagem das profundezas e que permite a manifestação das hierofanias como compreensíveis ao lado racional humano como o centro condutor da própria vida. O mito é o paradigma vivencial desse ser humano primordial, contribuindo para a organização e a conduta existencial vivida pelo homem total.

Eliade buscou compreender o mito na sua complexidade fenomenológica da experiência humana com o sagrado. Ou seja, o mito é analisado por Eliade a partir da experiência religiosa do homo religiosus: “Viver os mitos implica, pois, uma experiência verdadeiramente religiosa”.90 E Eliade evidenciou que a visão mítica sob o ponto de vista da busca pelo transcendente ou a religiosidade humana é conatural e consubstancial à

88 GUIMARAES, André Eduardo. Op.cit., p.441. 89 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Op.cit., p.11. 90 Idem, p.22.

propriedade do ser. Assim, os mitos, os ritos, símbolos e imagens são elementos essenciais à consciência para compreensão da realidade, sem os quais o ser humano habitaria um vazio de sentido. Diante de tais pressupostos é interessante adentrarmos na compreensão de alguns aspectos elementares do rito como a anmnese que permite reintegrar e reatualizar o evento acontecido no tempo forte ab origine.

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 50-56)