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O dia-a-dia que se volta para a eucaristia

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 186-190)

3.4 A Experiência Religiosa do eixo do amor ancorada na Memória

3.4.3 O dia-a-dia que se volta para a eucaristia

Regina acredita que o culto a Deus é o momento em que sai da sua casa, onde tem uma família com laços de parentescos sanguíneos, e vai a Igreja ao encontro dos irmãos com laços fraternos universais – uma fraternidade universal. É desprender-se de toda carga de apego e egoísmo a condição dada familiar e lançar-se em uma entrega radical no encontro e comunhão com Deus e os irmãos em Cristo:

Eu saio de mim mesma, da minha família, da minha casa e vou para a igreja que lá eu participo com quem? Com outros irmãos, como falei agora mesmo, que não são irmãos sanguíneos, mas somos irmãos em Cristo. O que acontece na igreja? Uma que nós vamos lá primeiro para prestar o culto a Deus. E nós vamos com o mesmo objetivo. (ANEXO 1, Questionário 2)

Na visão de Regina, todos vão ao culto com o mesmo objetivo de prestar culto a Deus. Então, pergunto-lhe o que é prestar culto a Deus?

O culto a Deus (primeiro é a alma, claro, né?) é estar por inteiro. Prestar culto a Deus é agradecer pela sua vida, pelo seu crescimento em busca da pátria celeste que é o céu. A cada dia um pouquinho que você cresce, você agradece. E aceitar os seus irmãos ali, diferentes de raça, de condição social. Eu convivo fora da igreja com quem eu quero. É padrão de vida do meu emprego. Na igreja, nós escolhemos as pessoas que vão na igreja? (ANEXO 1, Questionário 2)

É preciso esvaziar-se do eu egocêntrico para, então, encher-se novamente do amor de Deus. Acontece mais ou menos assim: segundo a narrativa destes fiéis, quando vão ao culto é como se estivessem cansados, carregados de problemas e não dão conta de lidar com os problemas, com um cansaço por falta do amor de Deus. É necessário ir ao templo e recarregar as energias. Quando saem de lá, é como se tivessem esvaziado toda a carga pesada e negativa e adquirido um novo vigor e força para enfrentar a semana que virá. Assim também se esvaziam do seu eu egocêntrico voltando-se para a relação e vivência em comunidade.

Eu, pessoalmente, sinto assim uma entrega minha, das minhas preocupações, dos meus sentimentos, às vezes mágoas. Eu entrego tudo pra Jesus nessa hora. E peço a Ele que seja o sustento da minha vida durante aquela semana. Porque eu frequento a missa todos os domingos. Então peço. Este sentimento que eu sinto é um sentimento bom, de tranquilidade. Quando estou sozinha com ele na capela do santíssimo, eu converso como um bom amigo. Passo pra ele as minhas preocupações, as minhas magoas, agradeço, agradeço bastante! (ANEXO 1, Questionário 5)

O mundo é sempre uma sucessão de acontecimentos aos quais o ser humano foge, foge uma previsão dos fatos. Ademais, este mundo é um mundo incógnito, as suas previsões racionais. Há uma realidade para além deste mundo que o intriga, um sentimento interior de algo para além do físico-corporal: o espírito. Esta realidade que se transforma no espaço sagrado da morada do coração humano é algo transcendente, mas que é efetiva presença a dar significado existencial à casa terrena.

O ser humano sente necessidade de um sentido que dê significado a sua existência a todo o momento. Precisa de um centro referencial de sentido como condutor para uma finalidade que dê respostas as suas questões últimas e escatológicas em seu confronto com os problemas da concretude existencial: doença, falta de dinheiro, infelicidade, filhos com problemas, mortes prematuras na família, dentre tantos outros. O ser humano se indaga sobre o porquê das infelicidades humanas do mal radical e sua condição finita. Precisa de um alento que diga da eternidade e da felicidade como resposta ao motivo do sofrimento humano. Viver a ex-istência como projeto humano, mas com vistas em um transcendente. Um lugar onde

habite a felicidade plena, a alegria, a paz e sensação de estar no “Céu”. Este lugar para o fiel católico é a igreja. A igreja é o centro do mundo – umbigo do mundo – ou imago mundi.

Como nos propõe Eliade, o espaço sagrado é o centro do mundo, umbigo do mundo. Para os fieis católicos a igreja é efetivamente o centro do mundo. O que dá sentido a sua ação e conforta as vicissitudes da existência é a participação no rito eucarístico. Nas palavras de uma fiel em resposta ao questionário QS1: “Eu vim aqui porque a minha família está com problemas. Vim buscar o consolo, a coragem, a força e o ânimo em Jesus”.

A eucaristia é uma experiência de pertença a uma comunidade que comunga os mesmos fins e propósitos: a busca da unidade em um só corpo. Corpo místico de Cristo onde o amor, a felicidade, a justiça social, o bem e a virtude reinem no coração de todos. Então: “Deus será tudo em todos” (passagem tomada da Primeira Carta aos Coríntios 15, 28), não havendo mais necessidade da anamnese do dito de Allah: “Recordai-vos de Mim, que Eu Me recordarei de vós” (Corão 2, 152). Deus preencheu o coração de todos com o sentimento do todo. Habita-se de novo o paraíso com o coração.

A experiência religiosa anunciada por Jesus como um caminho a uma religiosidade de inter-comunhão em uma teia cósmica de relação e unidade numa irmandade fraternal é um sentimento vivido por estes fiéis católicos. Sendo a eucaristia a condensação de uma forma simbólica proposta por Jesus para o não esquecimento desta comum-unidade.

O sentimento de pertença a uma utopia escatológica em uma fraternura vivida simplesmente no bem comum e na felicidade plena por todos sem exceção.

Esta é a esperança e fé do cristão católico: O reino de Deus.

3.4.4 “É a festa do Senhor”

Para a fiel Regina, “Jesus nos convida para a festa Dele: O banquete do Senhor.” Regina vê o momento da eucaristia como uma grande celebração: “É igual a gente ir numa festa, numa confraternização, todo mundo feliz. É a festa do Senhor” (ANEXO 1, Questionário 2). O banquete festivo eucarístico. Como em nosso diálogo, Regina já havia manifestado alhures a sua compreensão sacrifical da eucaristia indaguei-lhe: Fala mais sobre essa festa? A liturgia seria sacrifício e festa? Como assim? Ela então, respondeu-me:

Eu comparo a nós. Nós temos sacrifícios na nossa vida não tem? Sacrifício para educar e criar os nossos filhos, para mantê-los na escola, no trabalho para relacionar com nossos colegas, para a gente poder eliminar o eu e abaixar nossa cabeça e respeitar os nossos superiores. Na liturgia é a mesma coisa: o sacrifício de Jesus ensina o quê? Se sacrificar e alegrar. Ele fala: “Sejam alegres!” Você já ouviu a palavra de Deus? Sejam alegres porque Deus te convida a isso. Então, o que ele nos convida a gente ali na missa? Para o banquete dele! Às vezes eu falo com os meus filhos assim. Eles sentem... E eu tenho que conversar muito para eles participarem da liturgia, eles perguntam muito, eles são muito inquietos. Eles estão crescendo na fé. Existe a maturidade na fé. Você começa engatinhando, depois você anda, é igual às fases de uma criança. Depois você pega na mão do seu pai ainda. Na fé também é. Por isso que a gente precisa de alguém para chegar lá. Para o banquete dele igual você é convidado para o aniversário do seu amigo. (ANEXO 1, Questionário 2)

Regina, em seu depoimento, expressa estas duas faces do sacramento da eucaristia como sacrifício comparando a vida cotidiana que, no dia-a-dia, tem essa dupla dimensão dicotômica como dois pólos que temos que vivenciar, mas o fim é a felicidade e a vida plena. E Jesus faz este convite a todos para se alegrarem no encontro consigo mesmo, com Deus e com os irmãos.

Na compreensão de Regina, a eucaristia é sacrifício e festa, mas esta concepção oscilou durante a evolução histórica da compreensão teológica sobre o sacramento eucarístico. E no decurso histórico, ora se enfatizou um aspecto, ora se enfatizou outro aspecto em detrimento do outro.

O que a partir do Concílio Vaticano II trouxe uma reforma ou retomada do sentido teológico do sacramento eucarístico no seu todo. O contexto aqui pesquisado revelou que o fiel sente como necessária as duas dimensões. Sendo a missa um todo que não coloca um privilégio na palavra ou na eucaristia, no sacrifício ou na festa. É no decorrer do todo da missa que o fiel sente e experiencia um feito trans-humano da doação do amor gratuito de Deus.

A igreja se faz entre a igreja dos homens e igreja corpo místico de Cristo. Dentro desta perspectiva há a Igreja instituição humana com suas ordens, seus dogmas e seus preceitos. Por outro lado, a Igreja corpo místico que se faz com o sentimento e a participação da comunidade na Ceia do senhor.

A ceia do Senhor é uma festa. Ainda que se faça memória em seu aspecto sacrifical da doação kenótica do amor de Jesus para a humanidade na cruz. Esta cruz remete para algo maior a sua ressurreição. Apontando para a vida além desta existência, uma vida eterna. Deste feito, conclui-se ser uma celebração da vida que é sempre uma possibilidade de renovação. A ceia do Senhor é uma celebração da vida que venceu a morte através da vivencia radical do

ágape fraterno. Jesus Cristo então deixou para a posteridade uma mensagem para todos como proposta de um projeto existencial que se faz pela doação radical do amor fraterno. Mas, este amor tem ser doado na gratuidade sem esperar gratidão ou recompensa. Assim, como Cristo se doa na eucaristia, de acordo com Regina, assim também o fiel tem que se doar por inteiro no seguimento de Jesus. E esta doação está na liberdade da sua própria consciência, não é algo imposto.

Não, não. Eu não vejo Deus como um pai, mas como uma mãe. As mães não dão tudo aos seus filhos que eles querem. Às vezes o que eles pensam ser o melhor não é o melhor. Assim também Deus, ele é como uma mãe e perdoa sempre. E, Deus não dá a graça porque alguém é bom aos olhos humanos, ninguém sabe o que passa com cada um, somente Deus para saber. Então eu não acho que Deus seja para resolver nossos problemas, mas como uma inspiração através de sinais ele nos mostra as possibilidades, conduz a nossa ação. Manifesta-se através dos sinais deixando a nós a decisão na nossa liberdade. Por isso, ele não pode ser um Deus que impõe normas ou dogmas. Pelo contrário, Deus é um Deus libertador. (ANEXO 1, Questionário 4)

Essa visão de um Deus libertador dito por Fernanda é a transposição do campo de um dever para o campo da escolha da consciência. Agora, não se trata mais de um Deus imposto, mas de um Deus proposto. Depende da escolha consciente do sujeito em participar do rito com uma memória sentimental. Esta visão do Deus como mãe e não como pai emerge com o evento Jesus. Onde o Deus como um longínquo (otiosi), distante e transcendente passou a ser uma proximidade, imanente no fundo da vida. O ser humano, em um processo evolutivo para a autonomia do ser, desvela um Deus no mais íntimo do si mesmo. Não se trata de uma regra imposta como dogma, mas uma vivência do vivido da “mais vida, mais-que-vida”308 pela liberdade da consciência.

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 186-190)