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O homo religiosus na concepção eliadiana

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 45-47)

1.2 Mircea Eliade e a religiosidade do homem arcaico

1.2.1 O homo religiosus arcaico primordial

1.2.1.2 O homo religiosus na concepção eliadiana

Eliade partiu do princípio de análise do homo religiosus, buscando um método que não reduzisse a experiência do sagrado de forma a contemplar o fenômeno da religiosidade no seu aspecto imanente da consciência humana. Em suas pesquisas traçou um perfil da religiosidade do ser humano arcaico, e desenvolveu um debate quanto à religiosidade deste ser humano primordial como parte constitutiva do ser humano. A religiosidade ou a busca do transcendente seria uma dimensão ontológica do ser humano ou um mecanismo utilizado por este para dar conta da sua insatisfação diante da sua mortalidade e finitude temporal? O ser humano busca um subterfúgio para preencher um vazio existencial oriundo da pergunta pelas questões últimas e da nostalgia da totalidade e unicidade do tempo perdido no paraíso, por isso, psicologicamente inventa os mitos, os ritos e os símbolos para explicar e dar sentido a sua existência – uma patologia psicológica? Estas são questões emergentes no percurso da reflexão eliadiana. Neste veio, buscaremos elencar alguns conceitos fundamentais elaborados por este autor para compreender o universo mental e a estrutura da consciência deste homo religiosus primevo.

O homem primordial originário tinha o sentido60 da sua existência numa consciência natural como co-extensão da natureza. Este não se sentia fragmentado ou deslocado do todo,

59 Texto original: “Toda la obra de M. Eliade está construída sobre una triple perspectiva histórica,

fenomenológica y hermenêutica. En el centro de su investigación se encuentran dos grandes ejes: lo – sagrado y El – símbolo”. RIES, Julian. Op.cit., p.529.

60 Segundo BERGER e LUCKMANN para o homem moderno: “O sentido nada mais é do que uma forma complexa de consciência: não existe em si, mas sempre possui um objeto de referência. Sentido é a consciência de que existe uma relação entre as experiências. O inverso também é válido: o sentido de experiências – e, como ainda será demonstrado, de ações – será construído em primeiro lugar por especiais realizações “relacionais” da consciência. Geralmente a experiência atual não é relacionada com uma única experiência, mas com um tipo de experiência, um esquema de experiência, uma máxima comportamental, uma legitimação moral, etc., derivados de muitas experiências e armazenados no conhecimento subjetivo ou tomados do acervo social do conhecimento”. BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno. Trad. Edgar Orth. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004, p.15.

sentia-se como parte do todo como também trazia em si uma parte do todo.61 Esta simbiose entre ser humano e natureza fazia parte mesmo do seu pensamento e intelecto como perseidade62, não se tinha ainda uma estrutura da consciência de cultura e história. Considerado pela antropologia e pela etnologia emergente do século XIX como um raciocínio pré-lógico por não se operar com as categorias do homem moderno. O homo religiosus primevo está imbuído numa visão cósmica e mítica.

O homo religiosus tem uma relação de unidade com o todo, sente-se como parte do universo, por isso vive em sinergia com o cosmo, a natureza e o mundo de maneira simbiótica, não há uma laceração e um sentimento de individualidade, mas um sentimento de pertença ao todo, uma comparticipação.63 Tal sentimento de comparticipação próprio do homem arcaico, a partir da sua cosmovisão irá influenciar sobremaneira a sua existência, pois conhecendo a origem dos mitos e praticando-os ritualmente recupera a força e o poder do acontecimento mítico primordial ou cosmogonia originária. Com isso, a alimentação, o trabalho, a sexualidade, tudo é orientado pelos modelos arquetípicos64 míticos do tempo forte ab origine fundados pelos deuses ou seres sobrenaturais.

Para Eliade, o homem não é somente homo sapiens, mas também homo religiosus. Para o homo religiosus, o universo vive e fala, carrega consigo vestígios e cifras divinas, cósmicas. Então, o homem religioso, vive em busca dos significados que o mundo pode dar- lhe, pois o universo não é inerte, nem mudo, está encharcado de mensagens a transmitir-lhe, atribuindo sentido a sua existência. Este é um ser de abertura ao trans-humano, não centra a sua vida, na sua condição meramente humana. O homem religioso, como ser de abertura, quer sempre se comunicar com o mundo dos deuses, pois orienta a sua vida de acordo que o sagrado funda o mundo. A realidade é fundada pelos mitos cosmogônicos.

61 Seguindo a interpretação de Sandrine, esta cosmovisão holística do homem arcaico que na modernidade é sobreposta por uma visão linear da realidade e individualismo monadológico, na pós-modernidade é retomada pela “Teoria da Complexidade” muito difundida por Edgar Morin: “A realidade não é nem o todo, nem a parte. É ambos um no outro. O todo não é uma soma”. SANDRINI, Marco. Religiosidade e educação no contexto da

pós-modernidade. Petrópolis/RJ: Vozes, 2009, p.69.

62 A condição em que uma coisa age por si, ou pela própria natureza interna. [...] Essa noção forma o pano de fundo do argumento cosmológico e do argumento ontológico. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de

Filosofia. Consultoria da edição brasileira: Danilo Marcondes. Trad. Desidério Murcho. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1997, p.296.

63 “Uma tal comparticipação não só torna o mundo “familiar” e inteligível, torna-o também transparente. Através dos objectos deste mundo, o homem apercebe-se dos vestígios dos Seres e dos poderes de um outro mundo. É por isso que dizíamos que, para o homem arcaico, o Mundo é simultaneamente “aberto” e misterioso.” ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Trad. Manuela Torres. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2002, p.121.

64 “Arquétipos (do gr., arkhétypou: primeiros modelos) Os modelos originais cuja natureza determina o modo como as coisas são formadas. Em Platão, as formas são, pelo menos algumas vezes, arquétipos. De acordo com Jung, o inconsciente coletivo contém imagens e símbolos arquetípicos. Um éctipo é a impressão ou a cópia de um arquétipo”. BLACKBURN, Simon. Op.cit., 1997, p.26.

O homo religiosus, na visão de Mircea Eliade, via toda a sua existência baseada num centro referencial de sentido, fundado a partir dos modelos arquetípicos cosmogônicos estabelecidos pelos deuses ou seres sobrenaturais. Este homem arcaico concebia toda a existência norteada a partir dos mitos fundados in illo tempore, ab origene, no começo do tempo e na origem, os deuses ou seres fundaram uma verdade apodítica à qual o homem passa oralmente a seus descendentes como uma verdade universal, modelo a ser seguido e vivenciado – o mito vivido pelo homem total, integral.

A existência na sua totalidade precisa estar alicerçada no mundo dos deuses. O real é significativo, é o sagrado por excelência. O mundo existe porque foi criado pelos deuses: os rios, as montanhas, as árvores e a natureza toda em si é criação divina, arquétipos celestes.65 Desta premissa metafísica é que se desenvolverá toda a ontologia arcaica e a cosmovisão deste homem das sociedades tradicionais, dito primitivo ou primordial.

A natureza é toda sacralizada porque foi criada pelos deuses e o sagrado se manifesta através das hierofanias cósmicas, podendo se manifestar na natureza, numa pedra, numa árvore, numa montanha, num ser humano, em vários objetos, lugares, criando imagens e símbolos representativos do seu poder que difere todo o ordinário ou cotidiano.

No documento celeideagapitovaladaresnogueira (páginas 45-47)