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2. A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL: HISTÓRICO E ATUALIDADE

2.1. O SURGIMENTO DAS EMPRESAS RECUPERADAS SOB A INFLUÊNCIA

2.1.1. O último quarto de século no Brasil: crise econômica e políticas neoliberais

O Brasil da década de 1980 era um país que havia passado por diversas mudanças ao longo do século XX, especialmente, devido à mudança em sua estrutura produtiva e pela consolidação de uma economia industrial. Assim, o Brasil do último quarto do século XX era um país industrializado, que contava com um PIB que havia sido considerado o oitavo maior do mundo, na década de 1970; já havia incorporado os padrões produtivos e de consumo dos países desenvolvidos; produzia, internamente, quase todos os produtos manufaturados de que necessitava, e até já exportava produtos industrializados; havia diversificado e incorporado o avanço técnico a sua produção agrícola; havia tido um intenso crescimento urbano e as famílias adquiriam bens duráveis, como utensílios domésticos e eletrodomésticos. Em suma, o país havia alcançado elevadas taxas de crescimento neste período (HENRIQUE, 1999; CARNEIRO, 1993).

O processo de industrialização marcou o dinamismo da economia brasileira, a partir da década de 1930, constituindo uma estrutura industrial capaz de emancipar o país das “restrições impostas pela base técnica e do bloqueio estabelecido pela divisão internacional do trabalho”. Durante a segunda metade da década de 1950, a economia nacional obteve um excelente dinamismo, marcado pelo “novo eixo de expansão apoiado na contínua diversificação na matriz industrial”, isto é, basicamente com a implantação da indústria pesada (de bens de capital e de bens de consumo duráveis). Os novos investimentos no setor de meios de produção (os bens de capital e de infraestrutura econômica) e no setor de bens de consumo capitalista (os bens duráveis de consumo) formaram uma nova dinâmica da economia (CARNEIRO, 1993: 145).

O Estado assumiu papel de destaque neste processo, implantando os segmentos relevantes da indústria pesada e promovendo um maciço investimento em infraestrutura. Desta forma ele foi estruturando a indústria e promovendo a associação entre capital externo e interno – essencial para o processo de crescimento. Com isso, o tripé formado pelo capital estatal, capital multinacional e capital privado nacional foi responsável por alavancar o crescimento de período.

Esta dinâmica permitiu incorporar “milhares de brasileiros aos setores organizados da sociedade”, possibilitando “uma mobilidade social ascendente, cuja peça fundamental era um mercado de trabalho extremamente dinâmico” (GIMENEZ, 2007: 29).

O crescimento econômico continuou sendo a dinâmica das duas décadas seguintes e, em especial, entre 1967 e 1973 (período mais conhecido como Milagre Econômico), em que foi registrado um intenso crescimento, promovido por um eixo de expansão dado pela indústria pesada e pelo financiamento externo. Ainda na década de 1970, quando o crescimento já dava sinais de arrefecimento, foi lançado o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), a fim de garantir a manutenção do crescimento que vinha ocorrendo, mas visando também, “eliminar o atraso do setor de meios de produção, constituindo uma estrutura industrial integrada, e ampliar a produção doméstica de alimentos e energia, suprimindo assim a propensão da economia ao desequilíbrio externo” (em suma, o plano se propunha a superar o desequilíbrio externo e o subdesenvolvimento) (CARNEIRO, 1993: 147).

No entanto, o crescimento da década de 1970 ocorreu sobre uma base frágil, já que se tratava de um momento de crise internacional, da ordem de Bretton Woods. Além disso, o excesso de liquidez no mercado internacional, a juros baixos, facilitou o acesso ao crédito internacional, de maneira que o crescimento econômico do período foi financiado pelo capital externo, resultando no endividamento do país, o que traria sérias consequências posteriormente, na década de 1980. O endividamento da década de 1970 tornou o país “altamente vulnerável a choques externos”, evidenciando as fragilidades do processo de crescimento brasileiro e a frágil estrutura sobre a qual o crescimento econômico ocorreu. Além disso, os indicadores sociais da época deixam claro, ainda, que embora tenha produzido muita riqueza, o país não logrou melhorias nas condições de vida de toda a população (GIMENEZ, 2007: 32).

Assim, se por um lado, era verdade que ao chegar na década de 1980, o Brasil apresentava um quadro de grandes mudanças, destacando-se pelas altas taxas de crescimento econômico, crescimento urbano, mudanças no padrão de consumo, etc., por outro lado, o país iniciava a década enfrentando enormes problemas, especialmente no que se refere à desarticulação do padrão de crescimento que vinha ocorrendo, tornando menos promissora a proposta de manutenção deste processo. Carneiro (1993: 154; 168) ressalta que, já no início da década, eram visíveis os desequilíbrios na estrutura industrial brasileira, percebida pela “dispersão

significativa tanto dos graus de utilização da capacidade produtiva instalada, quanto na inserção no mercado externo”. A “curta duração dos ciclos econômicos com breves períodos de expansão e retração” confirmam o “elevado grau de instabilidade” econômica da década, que ficaria conhecida como “a década perdida”.

Diferente da década anterior, a década de 1980 apresentou um quadro totalmente distinto, marcado pela reversão do crescimento econômico, após enfrentar a crise da dívida. Assim, a década de 1980 pode ser resumida, segundo o autor, pelas seguintes características: “a drástica redução do crescimento, a estagnação do produto per capita, a regressão do investimento e a transferência de recursos reais ao exterior” (CARNEIRO, 2002: 140). As relações econômicas do país com o exterior também sofreram mudanças: “a absorção de recursos reais ou financeiros, que havia sido a marca da inserção externa desde o pós-guerra, foi abruptamente revertida, transformando-se em transferência de recursos para o exterior pelo pagamento de serviço e amortização parcial da dívida externa”. Para Carneiro, essa transferência de recursos ao exterior “para fazer face ao serviço da dívida externa [introduziu] uma importante restrição ao crescimento econômico” (CARNEIRO, 1993: 160; grifo nosso). Outros indicadores da crise desta década são a redução da propensão média a consumir e dos superávits comerciais, o desequilíbrio da balança comercial e a deterioração dos termos de trocas, conforme pontua Carneiro (1993; 2002).

Porém, o melhor indicador do grave problema econômico da década foi a redução do investimento – tanto público, quanto privado – acarretando um “clima de profunda incerteza e ausência de um padrão de crescimento sustentado”.14

Carneiro (1993: 154) destaca que o crescimento chegou mesmo a ser negativo, sendo realizado apenas como “investimento de modernização”, isto é, aquele que pretende “elevar a produtividade sem alterações substantivas na capacidade produtiva”. Vale ressaltar que o investimento havia encarecido no período, em virtude da desvalorização real do câmbio, do aumento da taxa de juros e dos ciclos recessivos. Sem que houvesse investimento não seria possível haver crescimento econômico, em especial, um crescimento sustentado (CARNEIRO, 1993; 2002: 140).

14 Assim, estas informações atestam, segundo o autor, para “a desarticulação do padrão de desenvolvimento

vigente por décadas na economia brasileira”, sendo que este crescimento era puxado pelo investimento público e pelo setor produtivo estatal que induziam o investimento privado.

Esta realidade marcou a reversão dos indicadores econômicos que, até então, vinham sinalizando um “acelerado crescimento econômico e grande dinamismo do mercado de trabalho”. Assim, o período ficou marcado por uma “grande instabilidade macroeconômica, estagnação da renda per capita, recorrentes dificuldades nas contas externas, crises cambiais, aceleração inflacionária, queda das taxas de investimento e colapso das finanças públicas”. Estes fatores sinalizavam um período de descontrole inflacionário e estagnação econômica. Foram estes elementos que levaram o país a enfrentar uma “crise profunda e de caráter estrutural” (GIMENEZ, 2007: 33).

A reunião do Consenso de Washington elaborou uma proposta, sinalizando um conjunto de regras para os países latinos americanos, sob a justificativa de que assim, estes se ajustariam à economia global – as economias se tornariam, segundo o consenso, mais eficientes, reduzindo e redirecionando gastos, melhorando a competitividade dos países, assim, sua inserção na economia global. No entanto, este conjunto de regras tinha como base os ideais neoliberais, sob os quais, estes países deveriam abrir suas economias e reduzir o protecionismo (GIMENEZ, 2007: 53)15. Dentre as propostas, estão:

 Liberalização do financiamento: a ideia era tirar o poder de decisão “das mãos dos burocratas” e deixar que o mercado tomasse as decisões das taxas de juros.

 Adequação da política cambial: que significa deixar a taxa de câmbio flutuar livremente, também, sem interferência.

 Liberalização do comércio: a recomendação era retirar as “restrições quantitativas”, a fim de liberalizar as importações por meio da redução progressiva das “tarifas até atingirem uniformemente um patamar baixo, em torno de 10%”, sob o pretexto de que assim, melhoraria a competitividade das empresas nacionais, que teriam uma melhora em suas exportações, sem necessitar de proteções “artificiais”.

 Disciplina fiscal: implica em aumentar o rigor com os gastos governamentais, “em todas as esferas do governo, empresas estatais e Banco Central”, e além disso, garantir superávit primários.

15 O autor destaca que os pontos foram citados por John Williamson em “What Washington means by policy

 Prioridades nos gastos públicos: por meio da redução dos gastos e da priorização dos gastos públicos, redirecionando-o para “áreas politicamente sensíveis” – áreas negligenciadas, “capazes de alterar o perfil de distribuição de renda, como saúde, educação e infraestrutura”.

 Reforma fiscal: que consistia na racionalização do sistema tributário, por meio da ampliação da base tributária e “adequação das estruturas tributárias nacionais aos mercados globalizados”.

 Investimento Estrangeiro Direto (IED): a proposta era de retirar as barreiras que impediam a entrada de investidores estrangeiros nos setores que antes eram protegidos, sob a justificativa de que as empresas estrangeiras deveriam competir igualmente com as empresas nacionais.

 Privatização: defendida como um instrumento para promover o melhoramento da eficiência das empresas estatais, além de servir para melhorar as contas públicas e reduzir a corrupção, abrindo espaço ao investimento estrangeiro em setores considerados monopolizados pelo Estado.

 Desregulamentação: propunha a eliminação das regulamentações que restringiam a “competição e a entrada de novas firmas no mercado”, sob a justificativa de que assim, se garantiria a “segurança dos negócios, a proteção ao meio ambiente, além da supervisão das instituições financeiras”.

 Direito de propriedade: a proposta previa que o poder Judiciário deveria garantir este direito, tornando-o “acessível a todos” e “sem custos excessivos”.

As reformas feitas na economia brasileira naquele momento tinham como pano de fundo este pensamento, e acarretariam mudanças para o mercado de trabalho e graves problemas sociais para o país.

De acordo com Filgueiras (2006: 186) o início da adesão ao projeto neoliberal no Brasil ocorreu ainda sob o governo de Fernando Collor de Melo, com a “implantação das primeiras ações concretas” e a ruptura com o modelo de substituição de importações. A ampliação das ações que consolidavam esta implantação se deu no começo do governo de Fernando Henrique Cardoso. E, finalmente, o modelo foi ajustado e aperfeiçoado, a partir da

“ampliação e consolidação da hegemonia do capital financeiro”, no final do governo de FHC e início do governo de Lula da Silva.

Filgueiras (2006) explica as mudanças ocorridas no período, a partir de quatro esferas: na relação intercapitalistas, na inserção do país na economia internacional (econômica e financeira), na estrutura e funcionamento do Estado; na relação capital/trabalho.

1) Mudanças na relação intercapitalistas: marcadas pela abertura e desregulamentação dos mercados comerciais e financeiros, com consequente “aprofundamento da financeirização da economia”, e pelas privatizações, fortalecendo os grandes grupos financeiros (tanto nacionais, como internacionais), que aumentaram seus poderes políticos e suas participações na economia. Estas mudanças ocasionaram um intenso movimento de centralização de capitais, por meio de “aquisições, incorporações e fusões”, resultando num intenso processo de “desnacionalização e internacionalização da economia”.

A abertura comercial e financeira foi justificada como um “instrumento de combate à inflação” e de “modernização e aumento da competitividade da estrutura produtiva do país”, por meio de uma política industrial ativa. Porem, na realidade, ela serviu para fortalecer os grandes capitais internacionais instalados no país, e os grandes grupos nacionais. Um bom exemplo disso foi a mudança na relação de algumas empresas nacionais com as multinacionais, marcadamente pelo aumento do número de empresas nacionais que passaram a atuar dentro das grandes multinacionais, terceirizando parte de suas produções. Comandadas a partir dos países desenvolvidos, as multinacionais redefiniram “suas articulações e encadeamentos com as eventuais cadeias produtivas nas quais participavam como um dos elos constitutivos”. Mais que isso, elas agiam no sentido de dificultar ou mesmo impedir a “execução de políticas industriais por parte dos Estados Nacionais da periferia” (FILGUEIRAS, 2006: 185; 190).

2) Mudança na inserção na economia internacional: o processo de abertura comercial foi implementado por meio da redução da alíquota de importações e da desregulamentação financeira, contribuindo para o aumento da importação de bens e serviços e, aumentando também, o saldo negativo da conta de transações correntes no balanço de pagamentos. As privatizações foram feitas tendo-se como justificativa a necessidade de equilibrar o saldo do balanço, ocasionando a entrada de capitais especulativos, motivados pelos juros altos. Este

processo, no entanto, foi responsável por promover um processo de desindustrialização da economia brasileira, ocasionando:

Redução da participação da indústria na economia nacional, e especialização regressiva – com menor diversidade e desarticulação de cadeias produtivas nos segmentos industriais mais dinâmicos, intensivos em capital e tecnologia, e ampliação do peso relativo de ramos industriais de pouco dinamismo, intensivos no uso de recursos naturais e mão-de-obra (FILGUEIRAS, 2006: 192).

Além disso, os setores que mais empregavam mão-de-obra foram reestruturados, devido à:

Reorganização e reconversão de setores industriais, que se caracterizam pela realização de grandes investimentos nos setores de ponta (informática, química fina, novos materiais, biotecnologia, telecomunicações), pela modernização de setores dinâmicos (automobilístico, máquinas e equipamentos, petroquímica) e pelo declínio de setores tradicionais (siderurgia, têxtil) (FILGUEIRAS, 1997: 907).

A abertura comercial e as privatizações afetaram importantes segmentos industriais, marcando o inicio de um processo de desnacionalização da indústria brasileira “ou a reconversão de suas atividades para montagem de componentes importados”. Outra mudança ocorrida foi que as principais exportações passaram a ser do agronegócio e de bens de baixo valor agregado, marcando o fortalecimento de alguns setores da economia, e um movimento de reprimarização das exportações (FILGUEIRAS, 2006: 192).

iii) Mudança no papel do Estado: as mudanças foram marcadas pelas privatizações que reduziram a participação do Estado nas atividades produtivas, em especial, nos “setores estratégicos da atividade econômica”, provocando demissões de trabalhadores de setores públicos. De acordo com Filgueiras (2006: 195) “a reforma administrativa permitiu a criação de mecanismos de demissão e contratação de funcionários para além dos concursos, flexibilizando também, as relações trabalhistas no setor público”. Além disso, foram feitas reformas na previdência social, reduzindo benefícios e direitos e redefinindo regras de aposentadoria.

Em suma, a arrecadação do Estado era reduzida, enquanto a dívida aumentava. Além disso, de acordo com Cardoso de Mello (2006: 63) “a capacidade de financiamento do Estado foi seriamente abalada pela paralisação dos fluxos de capitais externos”. A situação financeira do Estado se agravou devido: aos efeitos da desvalorização cambial sobre a dívida externa; às consequências da recessão e a aceleração da inflação sobre a arrecadação fiscal e “sobre as

receitas das empresas estatais”; ao impacto das “altas taxas de juros sobre a dívida mobiliária e bancária”.

A política econômica da década se concentrou em permitir que o setor privado transferisse ao Estado sua dívida externa; promoveu “fortes desvalorizações cambiais” (CARDOSO DE MELLO, 1992: 61). Além disso, este modelo de política externa acatou o aumento das margens de lucro e elevou as taxas de juros. Estas medidas fragilizaram a economia nacional e transferiram as dívidas das empresas para toda a população, causando o endividamento e a fragilização financeira do Estado. No trecho a seguir, Cardoso de Mello destaca a estagnação pela qual o país estava passando e os riscos da depressão e da hiperinflação:

O mercado privado de crédito está e estará fechado para nós. Há crise da dívida externa: ninguém empresta mais para quem deve muito e já não pode pagar. Mas o essencial é a avaliação negativa dos banqueiros sobre o futuro do Brasil na nova ordem internacional. Neste sentido, paradoxalmente, não é a dívida externa que impede novos empréstimos, mas o juízo pessimista sobre os novos empréstimos que impede a solução do problema da dívida (CARDOSO DE MELLO, 1992: 61).

As palavras do autor mostram um cenário desalentador em que a economia brasileira, endividada, estava também refém de um sistema financeiro que não confiava na capacidade do país em arcar com suas dívidas frente ao mercado financeiro internacional e, com isso, não lhe proporcionando o crédito necessário para continuar o crescimento virtuoso da década de 1970. Deixa evidenciado, ainda, como o setor financeiro dá pouca importância à construção de um cenário saudável de crescimento e prosperidade para a economia do país.

iv) Mudanças na relação capital/trabalho: todas estas mudanças provocaram uma total modificação no mercado de trabalho. A reestruturação produtiva marcou uma fase de desemprego, flexibilização (e precarização) das relações de trabalho e enfraquecimento do poder político da classe trabalhadora. Como este tema é de suma importância para nossa análise – especialmente no que se refere ao entendimento do efeito das mudanças do mercado de trabalho e sua influência no surgimento da Economia Solidária – dedicaremos uma seção exclusivamente para discuti-lo.