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2. A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL: HISTÓRICO E ATUALIDADE

2.2. POBREZA, CONCENTRAÇÃO DE RENDA E ECONOMIA SOLIDÁRIA

2.2.1. A formação de um "exército" de excluídos para a Economia Solidária

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Segundo Henriques (2013: 152), “destas sete, algumas já foram cooperativas e fizeram a mudança legal por acharem que a figura jurídica de empresa onerava os empreendimentos com menos tributos, mas afirmaram manter a gestão coletiva, apesar da mudança”.

20 De acordo com o autor, os principais nomes de estudiosos (que pesquisaram ou organizaram pesquisas sobre

o) tema são: Candido Giraldez Vieitez, Neusa Maria Dal Ri, Rogério Valle, José Ricardo Tauile, além do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e da Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão (ANTEAG).

Uma questão bastante pertinente que ajuda a entender o surgimento da Economia Solidária no Brasil é a situação da pobreza em que se encontrava parcela da população brasileira nos anos 1980, quando surgiram as primeiras experiências de Economia Solidária. Os dois temas (pobreza e Economia Solidária) estão fortemente relacionados, uma vez que parte dos trabalhadores que iniciaram a atuação na Economia Solidária fazia parte deste universo de pobreza, indigência e exclusão social. Eram pessoas que nem mesmo haviam conseguido se inserir, ou que haviam se inserido precariamente, no mercado formal de trabalho e que, ao chegar aos anos 1980, encontraram grandes dificuldades para conseguir obter a renda necessária para sobreviver. Diante disso, esta seção irá analisar o surgimento da Economia Solidária a partir da pobreza existente naquela época, buscando associar os dois temas.

A origem da pobreza no Brasil pode ser explicada a partir do próprio processo de colonização, por meio do qual os povos originários (indígenas) que habitavam as terras brasileiras foram subjugados, roubados, escravizados e massacrados, para gerar a riqueza dos colonizadores – primeiramente, por meio da exploração dos recursos naturais, depois, como mão de obra para as lavouras e demais tarefas.

Com a dificuldade de subjugar os índios (uma vez que estes conheciam bem as terras e podiam fugir), os colonizadores (que neste momento, já contavam com pessoas fixadas ao território, isto é, na condição de moradores) aderiram à alternativa do tráfico negreiro, promovendo o rapto e escravização de povos oriundos do continente africano. A mão de obra escrava gerou inúmeras riquezas para os escravocratas (e, por que não dizer, para o país), sendo utilizada, principalmente, nas lavouras de cana-de-açúcar.

Embora o país tenha passado por diversas mudanças em sua estrutura econômica – especialmente relacionadas à produção de bens (cana-de-açúcar, cacau, extrativismo, etc.), a mão de obra utilizada continuou sendo escrava, até final do século XIX, quando a escravidão foi abolida, para a geração de um mercado de trabalho, que se transformaria, também, no mercado consumidor do país21. No entanto, a mão de obra negra não foi reaproveitada no mercado de trabalho – primeiramente, nas plantações de café, e posteriormente, na indústria nascente. O país adotou a política da imigração e o mercado de trabalho brasileiro foi

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formado, fundamentalmente, com a mão de obra branca, europeia. Ou seja, enquanto mão de obra escrava, os negros serviram, mas foram rejeitados como mão de obra remunerada.

Como é possível notar, a escravidão – primeiro, dos povos indígenas, e depois, dos povos africanos – e a maneira como a abolição foi realizada, podem ser considerados processos geradores da gênese da pobreza no Brasil. Vale ressaltar que também os povos imigrantes encontraram situações de pobreza e exploração em território brasileiro (embora, o tipo de exploração tenha sido outro) e também compuseram, ainda que em menor quantidade, o contingente de pobres brasileiros – a diferença é que estes, por ascenderem mais facilmente à condição de trabalhadores assalariados nas indústrias nascentes, tiveram maiores chances de mudarem suas condições, ao passo que, para os trabalhadores negros, esta condição foi negada e/ou dificultada (NEVES, 2006).

O mercado de trabalho se estruturou entre 1930 e 1980, conforme já mencionado, porém, esta estruturação ocorreu de maneira oposta ao que ocorria nos países desenvolvidos, isto é, ela ocorreu de maneira heterogênea. Assim, embora:

Numa perspectiva de longo prazo, caminhava-se para a consolidação dos empregos regulares com registro e para uma maior taxa de assalariamento, porém permaneciam os problemas tradicionais do mercado de trabalho em economias subdesenvolvidas, tais como a informalidade, subemprego, baixos salários e desigualdades de rendimentos. Mesmo sem examinar as múltiplas relações entre não organizado e assalariado sem registro, desemprego e baixos salários e assalariamento e desigualdade de renda, não é temerário admitir que, em geral, as melhores condições de trabalho e remuneração tendiam a se concentrar no assalariamento com registro e nas ocupações nos segmentos organizados (POCHMANN, 1999: 70).

Percebe-se que durante o processo de industrialização, que foi intenso no decorrer do século XX, a classe trabalhadora brasileira ficou dividida: apenas parte dela foi incluída no mercado de trabalho, especialmente o mercado formal de trabalho, com carteira assinada e direitos trabalhistas garantidos por lei. Esta parte da classe trabalhadora passou a contar com a proteção das políticas sociais que, no Brasil, foram desenvolvidas atreladas ao mercado de trabalho. Com isso, esta parcela da classe trabalhadora chegaria ao final do século XX com características distintas da parcela que não havia se inserido no mercado de trabalho (BALTAR, 2003).

Assim, durante a década de 1980, quando se tem notícia das primeiras experiências de Economia Solidária no Brasil, a classe trabalhadora estava fragmentada em dois grupos: o primeiro era composto pelos trabalhadores que haviam se inserido no mercado de trabalho, atuando nas fábricas, contavam com a proteção das políticas sociais e com a atuação dos sindicatos, que batalhavam pelas melhorias nas condições de trabalho, na renda e na garantia dos direitos trabalhistas. Diferentemente, o segundo grupo era composto por trabalhadores que não haviam sido inseridos no mercado formal de trabalho. Estes trabalhavam nas zonas rurais e não contavam com a proteção social das políticas públicas (que haviam sido desenvolvidas apenas para os trabalhadores urbanos), ou ainda, atuavam no meio urbano, mas de maneira precária, sem vínculo formal – como é o caso dos trabalhadores domésticos, ou dos trabalhadores por conta própria e os que realizam trabalhos temporários (“bicos”), etc. Por ter se tornado um problema grave, a pobreza e concentração de renda se tornaram temas de interesse de estudiosos das questões sociais no Brasil (como Hoffman, 1978; Draibe; 1998; Barros, Henriques e Mendonça, 2001; Rocha, 2003 e 2004; Dedecca, 2011), que buscavam demonstrar o grave problema social presente em um país, apesar do crescimento vertiginoso especialmente a partir da segunda metade do século XX. A pobreza pode ser tratada sob diferentes perspectivas. Para Barros et all, ela é tratada apenas sob a perspectiva da renda, isto é, ela pode ser entendida como uma situação de “carência em que os indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de vida condizente com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico”, tendo a renda como o principal fator de análise, por implicar na possibilidade de acesso aos bens essenciais à manutenção da vida e do padrão de vida (BARROS, et all, 2001: 02). No caso do Brasil, esta medida pode ser a linha de pobreza e indigência.

Dentre as possíveis causas da pobreza está a falta de recursos, o que pode ocorrer em caso de países extremamente pobres, em que a pobreza de suas populações se deve à escassez de recursos. No entanto, uma importante constatação feita pelos autores é de que o Brasil não é um país pobre22, pelo contrário, trata-se de um país que conta com uma enorme e vasta

22 Os autores analisam tanto sob a perspectiva da renda média, como do consumo das famílias, e ainda em comparação com o resto do mundo e, sob nenhuma destas perspectivas, o Brasil pode ser classificado como um país pobre.

riqueza, seja sob a perspectiva dos recursos que possui, seja pelo próprio poderio econômico – que, por sinal, apresentou extraordinário crescimento durante todo o século XX. Diante disso, os pesquisadores denunciavam a má distribuição da renda como fator causador da pobreza no Brasil. Os autores deixam clara sua posição, já ao iniciarem o texto: “um país desigual, exposto ao desafio histórico de enfrentar uma herança de injustiça social, que excluiu parte significativa de sua população do acesso a condições mínimas de dignidade e cidadania” (BARROS et all, 2001: 01). Ou ainda, o trecho a seguir, em que a ideia da má distribuição da renda é ainda mais contundente:

Nossa hipótese central, presente em estudos anteriores, é que, em primeiro lugar, o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres. Em segundo lugar, os elevados níveis de pobreza que afligem a sociedade encontram seu principal determinante na estrutura da desigualdade brasileira, uma perversa desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social (BARROS

et all, 2001: 01).

Os autores mostram, em seu estudo, que nas últimas décadas do século XX, o Brasil havia confirmado sua tendência de má distribuição da renda e altos níveis de pobreza, e com isso, concluem que a desigualdade de renda “é tão parte da história brasileira que adquire fórum de coisa natural”. Uma análise da concentração de renda é uma excelente forma de analisar a questão da distribuição da renda. O estudo em questão mostrou, por exemplo, que a concentração da renda no Brasil, medida por meio do índice de Gini mostrou que o país era um dos mais desiguais do mundo (com índice próximo do 0,6), perdendo apenas para Malavi e África do Sul. A desigualdade também se confirmava quando se comparava a renda dos 10% mais ricos da população brasileira com a dos 40% mais pobres, o que indicava que a renda média daqueles era 28 vezes a destes (BARROS, et all, 2001: 11).

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE23, coletados no site do IPEA, e dispostos no Quadro 02, abaixo, deixam claro o tamanho do problema: conforme os dados, no ano de 1981, havia no Brasil, quase 48 milhões de pessoas (40,8% da população) vivendo abaixo da linha de pobreza e 20,3 milhões vivendo abaixo da linha de indigência (17,3% da população). Durante a década, a pobreza e indigência só aumentaram, de maneira que, no ano de 1989 mais da metade da população brasileira (56,1%) estava

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vivendo abaixo da linha de pobreza (41,4 milhões de pessoas) e 26,2 milhões (19,3% da população) estava vivendo abaixo da linha da indigência.

Quadro 02: Indicadores Sociais – 1981 a 1999

Fonte: Elaboração própria, com dados da PNAD, coletados no IPEADATA.

A tese da má distribuição da renda só ganha significado se analisarmos estes dados juntamente com os dados que indicam a concentração da renda. Os dados mostram que o índice de Gini saltou de 0,58 em 1981 para 0,64 em 1989. Os 10% mais ricos da população aumentaram suas participações na renda (detinham 46,4% da renda, em 1981, e 51,5% no final da década), ao mesmo tempo em que os 50% mais pobres tiveram suas participações na renda reduzidas (de 13,1%, no início do período analisado, para 10,6% em 1989). Em síntese, os dados mostram que a enorme crise econômica vivenciada pela economia brasileira na

década perdida (1980) serviu para agravar, ainda mais, o problema da pobreza e indigência no Brasil. No entanto, pior que isso, ela serviu, também, para agravar a desigualdade de renda – isto é, os pobres se tornaram ainda mais pobres e os ricos, ainda mais ricos.

A pobreza e a indigência adentraram a década de 1990 e aumentaram até o ano de 1993, ano de seu ápice (58,2 milhões de pobres e 27,7 milhões de indigentes); a partir de 1993, ambas as medidas apresentaram quedas, mas ainda apresentando oscilações. A desigualdade da distribuição da renda se manteve alta (embora tenha havido oscilações) em torno de 0,60 durante toda a década. A participação dos 10% mais ricos e dos 50% mais pobres na renda mantiveram seus padrões, embora também tenham apresentados pequenas oscilações.

É importante lembrar que no ano de 1994 foi lançado o Plano Real que estabilizou os preços da economia e trouxe a esperança de aumentos de investimentos e consequente aumento dos níveis de produção e emprego. Entretanto, mesmo diante do quadro animador de controle da inflação, a situação de pobreza, exclusão social e concentração de renda tiveram ínfimas reduções, conforme apontam os dados.

Conforme demonstram os estudos sobre o tema, as primeiras experiências de Economia Solidária surgiram na década de 1980 e cresceram na década seguinte, isto é, ela surgiu exatamente neste contexto, em que havia um enorme contingente de pessoas vivendo em situação de desemprego (ou subemprego) e pobreza e indigência. Sendo assim, fica fácil entender que os trabalhadores que vieram a fazer parte da Economia Solidária, naquele momento, faziam parte deste universo de pobreza e exclusão social. Foram, portanto, alguns destes milhões de pobres e indigentes que passaram a atuar em formas de trabalho precárias, algumas delas, desumanas – o exemplo de piores condições de trabalho era a dos catadores de materiais recicláveis que atuavam nos aterros sanitários (“lixões”) espalhados pelo país, em busca de possíveis materiais que pudessem vender para a reciclagem, e com isso, obter alguma renda. Havia, também, aquelas mulheres que realizavam algum tipo de trabalho artesanal (costura, bordado, crochê, artesanato, etc.) e que colocaram seu saber em prática a fim de obter alguma renda; ou ainda, o caso das pessoas que faziam algum tipo de culinária (panificação, doces e salgados, etc.) e que também começaram a produzir, a fim de angariar alguma renda; homens que se ofereciam como cuidadores de veículos nas ruas e avenidas das cidades movimentadas, em troca de algum dinheiro (os famosos [e indesejáveis]

“flanelinhas”). Enfim, várias foram as experiências de pessoas que buscavam alternativas de geração de renda, tendo em vista a busca pela sua subsistência e sobrevivência.

Diante disso, entendemos que uma outra explicação para o surgimento das iniciativas de Economia Solidária no Brasil é a pobreza e concentração de renda. Desta maneira, é preciso somar esta explicação àquela adotada pela maioria dos estudiosos do tema, que associam o surgimento da Economia Solidária à grave crise econômica dos anos 1980 e ao desemprego por ela causado, bem como à precarização do trabalho causada pelo processo de abertura econômica dos anos 1990.

Esta situação se difere da apresentada na seção 2.1 já que, enquanto naquela, os trabalhadores aderiram à autogestão na tentativa de impedir o desemprego e a exclusão social, nesta, já existia uma situação de desemprego e pobreza de parcela dos trabalhadores, que já enfrentava a exclusão social e a miserabilidade: alguns foram jogados nela neste contexto por terem perdido seus empregos; outros já faziam parte de uma realidade histórica de pobreza e exclusão social, isto é, nem mesmo haviam conseguido se inserir no mercado formal de trabalho.

2.2.2. A proposta de geração de trabalho e renda por meio do cooperativismo popular