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A admiração dos paraguaios aos “trabalhadores” brasileiros

IMAGENS DO PASSADO NOS CONFLITOS DO PRESENTE

EMBLEMA OFICIAL DE NARANJAL-ALTO PARANÁ (PY)

4. A admiração dos paraguaios aos “trabalhadores” brasileiros

Quais as representações que os próprios paraguaios constroem sobre os brasileiros? Os setores sociais e políticos críticos à expansão da soja em território paraguaio costumam denominar os brasileiros de “invasores” e que utilizam os métodos de violência tradicionais em suas fazendas. Na perspectiva desses segmentos sociais e políticos, o que falta ao camponês são projetos de desenvolvimento agrícola, apoio técnico do governo e linhas de créditos eficientes para o desenvolvimento de uma agricultura mais moderna. Neste sentido, não se pode explicar a pobreza do camponês paraguaio através do discurso da preguiça. Na verdade, a expansão do plantio de soja e a concentração da propriedade rural, lideradas pelos imigrantes e por grandes investidores brasileiros, estão aumentando o êxodo rural e a pobreza no Paraguai (Fogel, 2005).

Mas existem vários setores da sociedade e do governo paraguaio que continuam apoiando os imigrantes brasileiros e reproduzem os mesmos discursos dos “apóstolos do

trabalho”. Empresários agrícolas, pecuaristas, comerciantes, educadores, prefeitos, vereadores,

deputados, senadores e também camponeses paraguaios destacam o papel que estes imigrantes têm desempenhado no desenvolvimento do país nas últimas décadas. As classes dominantes no Paraguai geralmente apóiam os imigrantes e reproduz seus discursos legitimadores. Mas há pessoas dos próprios setores subalternos que também admiram a capacidade de trabalho dos imigrantes e se autodenominam de “haraganes”.

Os grupos dominantes no interior da sociedade paraguaia mantêm várias formas de alianças com esses imigrantes e se constituem em seus legítimos defensores. O empresário Emilio Peralta, por exemplo, destaca que aprendeu a valorizar o trabalho com seu pai que, por sua vez, já tinha aprendido com os imigrantes brasileiros. “Creo que ellos están haciendo un gran aporte a la economía del país. (...) Los paraguayos estamos aprendiendo a romper nuestras limitaciones, para incorporarnos a esta forma de agricultura más moderna, que nos ayude a progresar” (Emilio Peralta apud Gutiérrez, 25/09/ 2003).

Para muitas autoridades paraguaias, a imigração brasileira representa “uma dádiva”. Os brasileiros estão desenvolvendo regiões onde antes não existia nenhuma técnica agrícola e ainda estão dando exemplos para os paraguaios através de muita obstinação pelo trabalho. Para o prefeito da cidade de Santa Rita, Alto Paraná, foi graças ao contato que estabeleceu, há mais de 20 anos, com os imigrantes brasileiros que aprendeu a trabalhar e a valorizar a economia familiar:

Con ellos aprendí a trabajar en serio, también los domingos, los feriados, hasta Semana Santa. Aprendí a trabajar en comunidad. Aprendí lo que es economía familiar. Ellos tienen otra manera de ver las cosas y están haciendo mucho por el país. Creo que, en lugar de atacarlos tanto, tenemos que conocerlos, dialogar. Hay muchas cosas que corregir, pero es innegable que su presencia favorece al país (Balbino Benítez, prefeito de Santa Rita apud Gutiérrez , 23/09/2003).

Atílio Ramirez, diretor de uma instituição escolar, compara o tempo de trabalho diário dos brasileiros e dos paraguaios e admira a preparação e ambição dos imigrantes. Ele considera que o problema camponês é cultural. Para esse diretor, falta uma mentalidade moderna nos paraguaios que seja capaz de romper com a herança cultural arraigada.

[Los inmigrantes] comienzan el trabajo cuándo comienza el sol y va hasta la noche. Trece, catorce horas de trabajo por día. Compare esas trece, catorce horas con las cinco, seis de los campesinos. Es lógico que hay mucha diferencia, equivale mucha diferencia entre los dos. Tiene que tener mucha preparación, mucha ambición y, sobretodo, mucha capacidad de trabajo. Falta de cabeza es todo que lo falta en el paraguayo.(...). Yo conozco la realidad, es muy profunda, y todo eso viene desde años, no es de hoy. Esta es una parte de un proceso cultural que ahora se está queriendo sacar de la mente paraguaya (Adílio Ramírez, diretor escolar, 17/01/2004).

A professora Fernanda Feliú chegou no departamento de Canindeyú na década de 1970 e acompanhou o processo de imigração brasileira e o surgimento das cidades de La Paloma, Katuete, Puente Kyjhá, Corpus Christi etc. Ela escreveu um pequeno livro enaltecendo a integração entre brasileiros e paraguaios e a capacidade de trabalho dos “pioneiros brasileiros”. Em um poema de sua autoria descreve a saga desses imigrantes em território paraguaio. Ela destaca a coragem, o trabalho e o progresso dos “pioneiros” e a necessidade de acabar com ódios, rancores e indiferenças na relação entre brasileiros e paraguaios.

SALUD PIONEROS !

Transitando largos y tortuosos senderos, Cruzando montañas, desiertos y selvas, Cargando una alforja llena de recuerdos Y un baúl de sueños, estrellas y canto, Los pioneros llegaron al Canindeyú

Hachas y machetes vencieron gigantes; El hambre y la sed quedaron atrás.

Los ranchos desnudos con techos de ramas Dejaban al cielo mostrar sus estrellas. En la noche oscura los roncos rugidos De terribles fieras y agoreras voces, Rasgueo de guitarras, gemidos de amor, Unidos formaban un misterioso coro. De pronto, los niños crecieron jugando En surcos abiertos, sembrando semillas, cosechando mieses y a Dios dando gracias. Llegaron maestros, bohemios y artistas; Con manos callosas hojearon los libros. Espíritus nobles, de luz y grandeza, Dejaron sus huellas buscando el progreso. Viejas soledades se unieron en frentes

Colegios y clubes, caminos y puentes.

Religión, deporte, lectura, trabajo Transitaron juntos, detrás de incansables Pioneros ilustres de gran corazón.

Qué lindo es guardar recuerdos de gentes Que dieron de sí cariño y trabajo, Sin jamás buscar rédito ni paga.

Queridos amigos: miremos las huellas que vamos dejando. No quiera el mañana la memoria traiga amargos recuerdos, De odios y rencores o de indiferencia.

Miremos también el amplio horizonte,

Las miles… y miles de blancas estrellas que adornan el cielo, Soñando una mañana feliz y grandiosa,

Como los pioneros que el tiempo llevó. (Feliú, 1999, p. 125).

Essas auto-imagens e representações sobre o “outro” não são invenções arbitrárias sem nenhuma correspondência com as ações dos indivíduos. É importante lembrar que quando utilizo os conceitos de ideologia e discurso não estou dizendo que simbolizam falsas realidades. Essas construções simbólicas fazem parte da realidade social e têm correspondência com as condutas cotidianas. O discurso do trabalho está relacionado com uma determinada ética do trabalho. Todavia, não vejo essas representações como a reprodução de uma verdade inquestionável. Creio ser necessário interrogar as razões legitimadoras de certas construções discursivas.

Todos esses discursos dos paraguaios favoráveis à imigração brasileira ajudam a legitimá-la e a reproduzir os mesmos estigmas que os brasileiros constroem em relação aos paraguaios. A figuração “trabalhadores” e “preguiçosos” está relacionada com outras formas de identificação e discriminação, ou seja, à construção de uma auto-imagem de civilizados e limpos por parte dos imigrantes e às representações dos paraguaios como sujos, atrasados e pouco civilizados.

5. “Nós” e “eles” nas fronteiras da civilização

O emprego dos pronomes “nós” e “eles” serve para construir identidades coletivas e estabelecer os vínculos entre os indivíduos e os grupos sociais. A construção de uma auto- imagem positiva do “nós” significa ao mesmo tempo aumentar a auto-estima individual daquele que participa de um grupo social específico. Da mesma forma, o indivíduo que faz parte de um determinado grupo classificado de maneira negativa pelos grupos que relativamente detêm maior poder tende a ter uma baixa estima. Conforme informações coletadas durante as entrevistas, existem paraguaios que aprendem bem o português, negam a identidade paraguaia em alguns momentos e chegam a assumir a identificação brasileira quando vão procurar emprego ou estudar no Brasil. Mas também esses grupos marginalizados podem reforçar sua identidade nacional na luta contra os grupos estrangeiros.

A auto-imagem do “nós” brasileiros como trabalhadores, civilizados e modernos e a representação “deles” paraguaios como preguiçosos, atrasados e pouco civilizados devem ser vistas como construções genéricas dos imigrantes e que não explicitam todas as diferenças e contradições internas dessas comunidades nacionais em contatos harmoniosos e conflituosos. Na realidade, os grupos sociais se constituem como realidades heterogêneas e com contradições e conflitos internos. Como já analisei no segundo capítulo, os imigrantes brasileiros no Paraguai pertencem a diferentes “etnias”, estados e classes sociais e a sociedade paraguaia também não é somente formada por camponeses pobres de origem indígena, existem as mais diferentes classes sociais e distintas misturas étnicas naquele país. Mas as representações criam identidades homogêneas.

Nas relações cotidianas entre imigrantes e população paraguaia, as noções de trabalho, civilização e limpeza aparecem freqüentemente juntas para justificar o padrão cultural superior do imigrante. Alguns imigrantes relatam que já existem casamentos entre brasileiros e paraguaios, mas somente duram os matrimônios entre brasileiras e paraguaios. A explicação dada é que o brasileiro não agüenta a sujeira, o desleixo e a comida da mulher paraguaia: “a paraguaia

não é muito de limpeza, o brasileiro já é muito disso (Neonete Borges, moradora, em

16/11/2004).

Para a freira Dileta Zamchette, não se trata de um preconceito contra os paraguaios, mas significa a “pura realidade”. Ela afirma que as próprias paraguaias se consideram sujas,

preguiçosas e admiram o trabalho e a limpeza das brasileiras. O mecanismo utilizado é repetir determinadas frases atribuídas a uma mulher paraguaia: “las brasileras limpian, limpian y

trabajan, trabajan. Nosotras colamos el culo en la silla y tomamos nuestro tererê” (Dileta

Zamchette, freira da Congregação Verbo Divino, 24/11/2004).

Os raros casamentos entre brasileiros e paraguaias não são aceitos por muitos imigrantes brasileiros. Eles costumam descrever a mulher paraguaia de uma maneira bastante pejorativa. As paraguaias são apresentadas como “feias”, “bugronas”, “sujas” e “mentirosas”, enquanto que os brasileiros são vistos como “moços bacanas”: “Eu conheci uns que casou com

umas paraguaia, uns que trabaia de serraria, compraram serraria lá. Casaram com umas paraguaia tão feia... uns moço bacana... eles vieram pro Brasil com elas. Também nunca mais vi acontecer aquilo (“Brasiguaia" apud Sprandel, 1992, p. 295).

Os paraguaios admiram bastante as mulheres brasileiras e para muitos representa um triunfo namorar e casar com uma brasileira. Eles dizem que as mulheres do Brasil são bonitas, sensuais e trabalhadoras. Entretanto, essas jovens preferem se envolver com rapazes brasileiros, principalmente aqueles que possuem recursos econômicos. As brasileiras que se casam com paraguaios são objetos de “chacotas” de colegas com expressões como “só muito desespero de brasileira casar com um paraguaio”, estará condenada a miséria, visto que os paraguaios não trabalham.

Eles queriam casar com as brasileira, as brasileira é que tinham medo de casar com eles. Eu tinha um bando de filha lá, mas nenhuma delas queria se casar com paraguaio. Queriam casar com os lá do Paraná. E a que casou no Paraguai casou com brasileiro mesmo. Eles terminavam que buscavam uma brasileira, diziam que as brasileira era muito trabaiadeira! (“Brasiguaia” apud Sprandel, 1992, p. 295).

A freqüência de casamentos entre grupos étnicos e nacionais distintos que vivem em situações de contato sinaliza formas de separações e integrações entre esses grupos sociais. A pouca quantidade de casamentos entre brasileiros e paraguaios pode indicar a existência de fortes barreiras simbólicas dos imigrantes brasileiros que geralmente se apresentam como melhores que os paraguaios. As diferenças de poder e de estilos de vida entre os grupos sociais criam vários mecanismos de exclusão de relações sexuais e afetivas.

Os grupos menos poderosos são vistos por aqueles que detêm maior prestígio como grupos anônimos, sujos e preguiçosos, são nomeados geralmente com palavras depreciativas. Os

grupos inferiorizados às vezes terminam vendo o mundo com as lentes dos dominantes e incorporam essas representações. Os indivíduos pertencentes aos grupos sociais que se consideram superiores reproduzem determinados discursos atribuídos aos “outros” para legitimar seu ponto de vista como verdadeiro, pois os próprios paraguaios se vêem como sujos e admiram a limpeza dos brasileiros. Mas existem setores que não concordam com essas representações e também constroem imagens negativas dos brasileiros, como já foi abordado no capítulo anterior.

Podemos perceber através das micro-relações sociais nesse contexto fronteiriço que geralmente aparecem resistências ao processo de imposição desse modelo de cultura dos imigrantes. Provavelmente existe uma tensão cultural na relação entre imigrantes brasileiros e população paraguaia. Por um lado, uma frente de expansão capitalista, lideradas por imigrantes brasileiros que incorporam o “espírito” capitalista e a “missão” civilizatória. Por outro lado, os camponeses paraguaios adeptos de culturas agrícolas comunitárias e de origem indígena, fundada na solidariedade e na produção de “subsistência”.

No contexto dessas disputas simbólicas, algumas palavras são criadas e/ou ressignificadas visando classificar negativamente o “outro”. Os termos “chi ru” e “rapái” são usadas como expressões negativas para nomear os paraguaios e os brasileiros neste cenário de fronteiras. Essas palavras têm sentidos positivos em cada idioma nacional, mas são modificadas na pronunciação e no significado pelos brasileiros e pelos paraguaios como uma forma de classificação negativa do “outro”. Assim “che iru” em guarani significa “meu amigo”, “meu companheiro”, os brasileiros mudam para “chi ru” e passa a ser um termo pejorativo (“bugre”, “indio”, “não civilizado” etc). De mesma forma, a palavra portuguesa “rapaz” se transforma em “rapái” na linguagem paraguaia e também adquire um sentido depreciativo (“ignorante”, “inculto” etc).

As representações do “nós” e do “eles” nesta fronteira da civilização (Ribeiro, 1996) variam bastante e não se esgotam nestas classificações. Os termos estão em permanente mudança de sentido e são ativados conforme as relações conflituosas que se estabelecem neste cenário de relações interculturais.

Os processos migratórios são espaços sociais contraditórios em que estão presentes distintas temporalidades, diferentes culturas e visões de mundo. Nestas frentes de colonização existem variadas formas simbólicas de demarcar as fronteiras entre “nós” e os “outros”. Elas simbolizam os limites da civilização, do progresso, da denominada modernização e do trabalho.

As frentes de expansão não podem ser reduzidas a processos econômicos de expansão capitalista, são fenômenos complexos que reproduzem e expandem uma auto-imagem de um determinado modelo de civilização européia caracterizada por uma visão de superioridade em relação a outras culturas. Nesse movimento, as representações cristalizadas sobre os “outros” desde o período da conquista da América são atualizadas nesses contextos de variados conflitos e de produção e negação de alteridades.

As representações valorativas em torno do trabalho, do desenvolvimento, da modernização e da civilização, feitas pelos imigrantes e pelos paraguaios, estão relacionadas aos respectivos estados nacionais. Nas construções de auto-imagens e das imagens dos outros são formuladas também representações gerais sobre os dois países envolvidos nessa configuração de poder.