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IMAGENS DO PASSADO NOS CONFLITOS DO PRESENTE

A CARTOGRAFIA DAS PERDAS TERRITORIAIS

3. Lembranças e esquecimentos da guerra

As guerras marcam as histórias dos Estados nacionais, pois constroem e destroem nações, reforçam identidades nacionais e redefinem fronteiras. Elas são lembradas, esquecidas e

silenciadas e mesmo quando são oficialmente esquecidas, continuam sendo recordadas de alguma forma através de monumentos aos “heróis da guerra”, de datas comemorativas e nos relatos orais das gerações que vivenciaram e narraram os horrores e as glórias das batalhas. A “Guerra do Paraguai”, embora bastante esquecida pelos brasileiros, faz parte da paisagem simbólica de cidades do país. Quando observamos atentamente os nomes das ruas e dos bairros, os monumentos nas praças públicas, os museus históricos, as lojas comerciais em diversas cidades brasileiras, encontramos várias referências à “Guerra do Paraguai”: “Riachuelo”, “Humaitá”, “Jovita Feitosa”, “Tuiuti”, “General Osório”, “Duque de Caxias”, “Bartolomeu Mitre” etc. Mas geralmente as pessoas que transitam nesses lugares não fazem mais nenhuma associação com aquela guerra do século XIX. São poucos os estudantes brasileiros que conseguem narrar algum episódio referente ao maior conflito armado da América do Sul.

Já as gerações mais velhas no Paraguai lembram com mais intensidade os sofrimentos e as batalhas daquela contenda bélica, principalmente os paraguaios que estão envolvidos nas lutas contra os “brasiguaios”. A sensação que tive, quando estava no Paraguai, é que a guerra tinha ocorrido há menos tempo naquele país. Camponeses, taxistas, trabalhadores urbanos e políticos sabem de muitas batalhas da “Epopéia dos séculos”. Além das memórias dos ressentimentos da guerra, transmitidas de geração em geração na sociedade camponesa paraguaia, os governos nacionalistas do Paraguai, durante o século XX, instituíram vários lugares oficiais da memória da guerra: museus, monumentos aos “heróis da pátria”, “Parque Nacional de Cerro Corá”, “Ruínas de Humaitá”, os nomes dos “heróis da guerra” nas ruas principais das cidades e todo um calendário de homenagem e comemoração das principais batalhas da “Grande Guerra”.

Desta forma, no dia 01 de Março, data do fim da “Guerra da Tríplice Aliança” (1870), foi oficializado o dia dos heróis e durante todo o mês de março (mês dos heróis) existem atividades relembrando as batalhas da “Guerra de los 70”. Em 16 de agosto é comemorado o dia das crianças em recordação aos meninos que lutaram e morreram na batalha de Acosta Nu em 1869, quando já não existiam soldados e as crianças estavam indo para os campos de batalha. A própria data de 12 de julho, referente à assinatura do Protocolo de Paz da Guerra do Chaco, e 29 de setembro, data da batalha de Boquerón também do conflito armado contra a Bolívia, são

sempre associadas à Guerra de la Triple Alianza e nos discursos comemorativos se homenageia não os generais da segunda contenda bélica, mas o marechal Solano Lopez58.

A Guerra do Chaco (1932-35) ocorreu depois que a Bolívia invadiu territórios da região ocidental ou Chaco paraguaio. A Bolívia perdeu a saída para o mar para o Chile na Guerra

do Pacifico (1879-1883). A estratégia boliviana era construir fortificações no território Chaco e

depois anexar parte da região ocidental paraguaia e ter acesso à navegação do Rio Paraguai. Para alguns analistas, a empresa norte-americana de petróleo Standard Oil operava na Bolívia e teria financiado a guerra visando lograr um caminho fluvial para a exportação de petróleo. Mas os paraguaios não permitiram e declaram guerra à Bolívia, recuperaram os territórios ocupados militarmente pelos inimigos e firmaram o acordo de paz e de definição de fronteiras em 1935.

Nesta guerra foram mobilizados 150.000 soldados paraguaios e 200.000 bolivianos, morreram cerca de 90. 000 pessoas, sendo 40.000 paraguaios e 50.000 bolivianos (Espul, 2001).

O nacionalismo paraguaio está bastante associado a essas duas guerras que o país enfrentou num intervalo de 62 anos. Na primeira, o Paraguai foi “brutalmente derrotado”, na segunda foi vitorioso, já que recuperou a região ocidental que tinha sido invadida pela Bolívia. Conforme a interpretação de Domingo Quiñonez, professor de História, esse último conflito armado “levantó la moral del pueblo paraguayo” e possibilitou a construção de elos de memória entre as duas guerras. Neste sentido, quando se faz referência à guerra mais recente, automaticamente também se comenta algo sobre a mais antiga.

Hablar de la Guerra del Chaco, hay que mencionar el conductor de la Guerra de la Triple Alianza. Por eso siempre hubo un relacionamiento, se si habla del protocolo de paz que nosotros conmemoramos en 12 de Julio en la finalización de la Guerra del Chaco, en cualquier discurso que se haga ahí siempre si irá recordar del Mariscal Francisco Solano López (Domingo Quiñónez, Professor de História, 25/11/2004).

Tudo indica que a “Guerra da Tríplice Aliança” continua sendo mais lembrada no Paraguai do que no Brasil. Como diria Renan (2000), as nações modernas se formam a partir de um repertório de recordações em comum, mas também com base no esquecimento de determinadas guerras, batalhas e massacres que fizeram parte da formação dessas nações. Os sofrimentos e as derrotas geralmente são mais lembrados que as alegrias e as vitórias. “Haber

58 Francisco Solano Lopez se tornou presidente do Paraguai em 1862, após a morte de seu pai, Carlos Lopez. A

“Guerra do Paraguai” foi realizada durante o seu governo. Ele foi morto no final da guerra e durante o século XX foi transformado em herói nacional.

sufrido juntos; si, el sufrimiento en común une más que el gozo. En cuestión de recuerdos nacionales más valen los duelos que los triunfos, pues ellos imponen deberes; piden esfuerzos en común” (Renan, 2000, p. 65).

Desta forma, os paraguaios derrotados na “Guerra da Tríplice Aliança” não esquecem facilmente a experiência dolorosa do passado. Essas memórias, transmitidas oral e oficialmente, são ressignificadas em momentos históricos posteriores em que estão em jogo novas disputas de interesses nacionais envolvendo esses países. Já o Estado brasileiro geralmente só lembra e comemora as batalhas que ganhou e esquece o que aconteceu do outro lado da fronteira. As historiografias nacionalistas e a produção dos livros didáticos nos dois países também contribuem para a seleção daquilo que deve ser lembrado ou esquecido. Contudo, é provável que as novas gerações brasileiras, descendentes de ex-escravos e “voluntários da pátria” que lutaram obrigatoriamente naquela guerra, continuem lembrando tristes episódios e muitas derrotas. Tudo indica que continua existindo no Brasil uma “memória subterrânea” (Pollak, 1989) da “Guerra do Paraguai”, diferente das narrações oficiais59.

Na região de forte imigração de brasileiros, o estudo da “Guerra do Paraguai” ou “Guerra da Tríplice Aliança” adquire uma importância considerável nas aulas de história e serve para contrastar imagens e identidades nacionais dos próprios alunos. Para o professor Domingo Quiñonez, os estudantes paraguaios lembram de várias batalhas da guerra, já os brasileiros sempre vêem nos canais brasileiros a batalha de Riachuelo60 e unicamente lembram desse episódio porque serve para engrandecer o poderio naval do Brasil.

Hablo de la Guerra de la Triple Alianza y sólo ven en las teles brasileras la batalla de Riachuelo. Los brasileros hablan de odio a los brasileños, pero no es así. Hay que estudiar, hay que analizarlo. Nosotros analizamos con los alumnos los hechos y el paraguayo es el que más recuerda batalla de la guerra de la Triple Alianza que vivieron los países. (...) Es muy fácil para el pueblo paraguayo hablar de esta Guerra porque

ahí comenzó el calvario del Paraguay. Pero los canales brasileños, todos los diarios

sólo ven la batalla de Riachuelo, acá en Paraguay se habla bastante de la Guerra de la Triple Alianza y ellos [brasileños] utilizan para la grandeza de su fuerza naval. La

59 Um trabalho coletivo de história oral em diferentes regiões brasileiras, argentinas, uruguaias e paraguaias poderia

investigar as memórias, as cantigas e vários outros indícios da cultura popular das classes subalternas que tiveram familiares que vivenciaram a experiência daquela Guerra. Essas narrativas poderiam contribuir para um novo entendimento sobre a formação das nações no Cone Sul desde a perspectiva das classes populares.

60 A batalha naval de Riachuelo ocorreu no arroio Riachuelo em território argentino em 1865. As fragatas de guerra

brasileiras, comandados pelo Almirante Barroso, conseguem vencer um ataque dos barcos paraguaios e liberam o leito do rio Paraná em direção à Fortaleza de Humaitá. Essa batalha foi bastante retratada pela historiografia tradicional e militar brasileira como exemplo do heroísmo de guerra do Brasil.

grandeza de Brasil, su fuerza naval se utiliza en la batalla de Riachuelo (Domingo Quiñónez, Professor de História, 25/11/2004).

As referências à guerra servem para mobilizar sentimentos nacionais nessa zona de fronteiras. Conforme o professor, os alunos brasileiros estudam a abordagem paraguaia desse conflito na escola, mas assistem na televisão a versão brasileira. Neste sentido, as televisões brasileiras e os próprios alunos só lembram da batalha de Riachuelo porque ela representa um símbolo do nacionalismo e da auto-imagem de superioridade dos brasileiros em relação ao Paraguai. Já os estudantes paraguaios lembram várias batalhas, já que a guerra simboliza o inicio do “calvário do Paraguai”. Por detrás desse relato existem disputas simbólicas mais profundas entre a escola, a família e os meios de comunicação nesse contexto fronteiriço.

A maneira como a guerra é abordada nos livros didáticos de história no Brasil e no Paraguai traduz a importância atribuída por esses países à memória e ao esquecimento desse conflito bélico. No Brasil, a “Guerra do Paraguai” é geralmente discutida somente num item dentro de um capítulo sobre o segundo império. Já no Paraguai, a “Guerra da Tríplice Aliança” é abordada muitas vezes em mais de um capítulo. Os filhos dos imigrantes brasileiros estudam nesses livros paraguaios e pela primeira vez aprendem a importância que tem essa guerra para os seus vizinhos e em contraste percebem a atualidade daquele conflito armado do século XIX nas relações cotidianas entre paraguaios e imigrantes brasileiros.

Qual o significado dessa guerra na construção das fronteiras territoriais e simbólicas entre o Brasil e o Paraguai? Recordemos alguns fatos, representações e versões do conflito bélico que redefiniu os mapas nacionais no Cone Sul.