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IMAGENS DO PASSADO NOS CONFLITOS DO PRESENTE

CARICATURAS DA “GUERRA DO PARAGUAI”

6. Memórias, histórias e identidades nacionais

Os três momentos históricos analisados não estão separados nos discursos e nas memórias daqueles que reatualizam o passado das relações conflituosas entre o Brasil e o Paraguai. Quando falam da guerra também lembram dos bandeirantes ou estabelecem uma relação entre a privatização das terras públicas no final da “Guerra da Tríplice Aliança” com a venda ou “regalo” das terras estatais dos departamentos fronteiriços para os imigrantes brasileiros durante a ditadura de Stroessner.

As memórias atualizadas nos conflitos do presente visam mobilizar pessoas com orientações partidárias e ideológicas distintas. Os discursos nacionalistas que tocam na invasão dos “novos bandeirantes” ou na “Guerra da Tríplice Aliança” terminam congregando paraguaios de distintos partidos contra os “estrangeiros invasores”, inclusive aqueles que também sentem nostalgia da ditadura recente. Já aqueles discursos políticos que denominam os brasileiros de “herdeiros da ditadura de Stroessner”, somente acionam os setores de oposição àquele regime. Desta forma, esses discursos e referências ao passado se mesclam no jogo político e identitário na zona de fronteiras.

As lembranças desses momentos significativos servem para demarcar fronteiras políticas e culturais e reafirmar identidades nacionais nos confrontos contemporâneos na zona

fronteiriça. Os processos de afirmação de identidades mobilizam fragmentos escritos e orais sobre o passado e os transformam em símbolos de identificação, diferenciação e de estigmatização do “outro”. Nas referências a esses contextos específicos da história paraguaia, há uma mistura de conhecimentos e ressentimentos divulgados pela tradição oral com histórias aprendidas através de textos escritos. Esses “vestígios” da história de conflitos entre os dois países são atualizados e ressignificados nos discursos de intelectuais, religiosos, políticos e líderes camponeses. As recordações do passado servem para reativar e alimentar os sentidos das lutas políticas do presente.

A memória coletiva não é somente aquilo que é vivido, aprendido e recordado como uma atividade espontânea, emotiva e desinteressada pelos indivíduos e grupos sociais, como definida por Nora (1993), mas uma “reconstrução engajada do passado” ou uma “invenção do passado” que possibilita estrategicamente aos grupos mais heterogêneos reconstruírem identidades e um plano de luta política pelo reconhecimento social e pela cidadania. Essa concepção está em sintonia com o aparecimento ou visibilidade de vários movimentos sociais e grupos étnicos que reivindicam o reconhecimento social de suas “novas” e “antigas” identidades. “A memória, portanto, constrói o real, muito mais do que o resgata” (Seixas, 2004, p. 51). A memória coletiva é bem mais ampla que a história escrita, pois não se reduz ao conhecimento racional e sistematizado dos fatos pretéritos a partir do horizonte atual. Ela é formada pelas tradições orais, pelas recriações voluntárias do passado conforme as políticas de identidade do presente e por sentimentos e ressentimentos variados e ambíguos.

Os ressentimentos coletivos são fontes importantes para a construção das identidades e para a compreensão das lutas sociais e os conflitos internacionais. Os ressentimentos estão presentes nas mais distintas configurações sociais e podem ser entendidos como sentimentos duradouros de raiva, inveja, rancor, desprezo, humilhação e desejo de vingança (Ansart, 2004). Eles podem ser esquecidos ou silenciados como forma de superação das “feridas” e como uma maneira de proteção das novas gerações das “lembranças traumáticas” do passado. Para isso, deixam de ser comentados e os próprios manuais escolares selecionam e narram determinados fatos de um modo que não despertem rancor e desejo de vingança. Mas a tentação ao esquecimento suscita irritação naqueles que acreditam que não se pode “apagar o passado”, pois os sofrimentos vividos não foram superados e eles vivem ainda as conseqüências negativas da humilhação e da derrota pretérita. Neste sentido, torna-se necessário a publicização das

“memórias subterrâneas” dos grupos dominados, a repetição e a rememoração desses fatos “traumáticos”, vistos como fenômenos determinantes que condicionaram negativamente o destino de toda uma coletividade (Ansart, 2004, Pollak, 1989).

Há ainda as revisões na maneira como são contados determinados episódios históricos conforme as circunstâncias do presente. Se na situação hodierna o inimigo anterior se transformou em parceiro ou se o grupo social humilhado adquiriu poder, auto-estima e conseguiu superar a derrota do passado, os fatos “traumáticos” ou são esquecidos ou são revistos. Porém, se a situação presente piorou e novamente existe tensão com o mesmo inimigo de antes, facilmente se produz uma intensificação dos ressentimentos, principalmente incentivados por discursos e propagandas nacionalistas como no contexto atual dos conflitos entre camponeses paraguaios e fazendeiros brasileiros na zona de fronteiras.

As lutas políticas do presente reacendem muitas disputas simbólicas e novas formas de produção de identidades. A classificação negativa de “bandeirantes”, “invasores” ou “herança da ditadura” não é aceita pelos imigrantes, que negam esses rótulos de identificação e afirmam uma identidade de “trabalhadores”. Na construção dessa identificação coletiva, os imigrantes reforçam preconceitos em relação aos paraguaios e afirmam sua superioridade econômica e cultural. No próximo capítulo, refletirei sobre a configuração de poder entre os imigrantes e a sociedade paraguaia e os estereótipos construídos na relação entre “nós” e “eles”.

Capítulo V

NÓS” E “ELES” NAS FRONTEIRAS BRASIL-PARAGUAI

O problema é saber como e por que os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um mesmo grupo e se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais que estabelecem ao dizer “nós”, enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros seres humanos a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a quem se referem coletivamente como “eles” (Elias, 2000, p.38).

Muitos imigrantes brasileiros no Paraguai utilizam bastante o discurso classificatório de que são os “pioneiros” e os “trabalhadores”, enquanto que os paraguaios são ociosos e não sabem trabalhar. É provável que a força desse discurso sirva para legitimar a presença brasileira naquele país e rebater os discursos críticos que acusam esses brasileiros de “invasores” da nação e “destruidores” do meio ambiente. Os imigrantes, principalmente aqueles que vieram do sul do Brasil e que conseguiram ascender socialmente no Paraguai, assumem o discurso do progresso e de que, portanto, são os únicos capazes de desenvolver um projeto de modernização no país.

Esses discursos classificatórios fazem parte da trajetória dos grupos de imigrantes europeus que vieram para o continente americano na segunda metade do século XIX e início do século XX. Eles vieram imbuídos da missão de desenvolver uma ética do trabalho e civilizar as novas nações americanas - repletas de índios, negros, mestiços e caboclos - vistos como inferiores e preguiçosos pelos adeptos da civilização ocidental. Nesse cenário, os conceitos de raça, nação, civilização, trabalho e desenvolvimento se combinam e impulsionam diversas formas de discriminação. Nesta perspectiva, os europeus brancos são os portadores da civilização e do progresso, pois têm uma maior capacidade de trabalho, enquanto que os negros, índios e mestiços americanos simbolizam o atraso, a barbárie e a preguiça.