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Os “novos bandeirantes” nas fronteiras em movimento

IMAGENS DO PASSADO NOS CONFLITOS DO PRESENTE

1. Os “novos bandeirantes” nas fronteiras em movimento

Intelectuais, políticos e religiosos paraguaios, favoráveis às lutas camponesas,

chegam a comparar os imigrantes brasileiros, particularmente os grandes produtores de soja, com os invasores paulistas do período colonial e os denominam de “novos bandeirantes”. O relato do bispo Juan Bautista, durante uma missa, é significativo da imagem negativa que alguns setores da sociedade paraguaia continuam tendo dos bandeirantes paulistas.

Hace poco el ex ministro de la justicia (Ángel José Burró) se ha expedido contra los bandeirantes. Hasta hoy en día en San Pablo tienen todavía el monumento a los bandeirantes. Para mí, el monumento a los bandeirantes tendría que ser una vergüenza para los hermanos brasileños. Sabemos la filosofía de los bandeirantes y mamelucos. Tenemos en San Carlos el fuerte contra los bandeirantes. Yo no sé si a los brasileños

sigue alimentando a la filosofía de los bandeirantes. (…) En fin, yo creo que acá nos compete defender nuestra soberanía, nuestra tierra, lo poco que tenemos delante de lo mucho que tienen nuestros hermanos brasileros (Juan Bautista Gavilán apud Abc Color, 29/08/2003).

Embora o bispo não tenha feito uma afirmação categórica de que os plantadores de soja brasileiros fossem os “novos bandeirantes”, algumas reportagens dos periódicos de Assunção cuidaram em estabelecer o vínculo com os antigos exploradores paulistas. Os títulos e subtítulos relatam que esse membro da Igreja Católica teria afirmado que se tratava de “una

versión actualizada de la incursión de antaño de los bandeirantes y mamelucos” (La nación,

29/08/2003) ou “para Gavilán, brasileños repiten el espíritu de los invasores bandeirantes” (Alegre, 3/9/2003).

As referências ao “monumento aos bandeirantes” em São Paulo e ao “forte contra os bandeirantes” em San Carlos, lugar de uma antiga missão jesuítica no Paraguai, servem para estabelecer uma relação entre as disputas do passado colonial e os conflitos atuais entre “sojeros” e “campesinos” paraguaios. Esses monumentos, como lugares simbólicos de memória (Nora, 1993), transformam-se em emblemas de negação e de afirmação de identidades nacionais no discurso crítico desse religioso paraguaio. Essas comparações remetem às relações coloniais entre os bandeirantes paulistas e as missões jesuíticas do Paraguai.

A historiografia brasileira comumente apresenta os bandeirantes como os responsáveis pela descoberta do ouro, apresamento e escravidão indígena e aumento do território português durante o período colonial. Pouco se analisa o confronto com as missões jesuíticas administradas pelos espanhóis e as imagens negativas que os países vizinhos têm dos “mamelucos paulistas”51, vistos como os primeiros responsáveis pelo expansionismo português e brasileiro (Machado, 2002; Abreu, 2000; Moog, 2000).

A expansão dos bandeirantes sobre o território da Espanha principiou durante a União Ibérica (1580-1640), período em que Portugal foi administrado pelo governo espanhol. Com essa união, não havia mais motivo para os mamelucos respeitarem o Tratado de Tordesilhas. A fronteira lusitana avançava através de dois processos simultâneos: a instalação de postos comerciais e fortes militares em terras não ocupadas pela Espanha, como Colônia de Sacramento

51 O historiador Capistrano de Abreu faz brevemente algumas referências sobre o choque entre os mamelucos

paulistas, os crioulos paraguaios que buscava uma saída para o mar e as missões jesuíticas nas margens dos rios Paraná e Uruguai (Abreu, 2000).

em 1680, e o movimento das bandeiras, principalmente durante os séculos XVII e XVIII, em direção ao Amazonas, ao Mato Grosso e ao Rio Grande, como representado na figura abaixo.

FIGURA CARTOGRÁFICA DA EXPANSÃO PORTUGUESA (Séc. XVIII)

Fonte: Maeder, 1986, p. 25

Mas esse movimento expansionista português encontrou resistência por parte dos espanhóis. A criação de várias missões jesuíticas sob a jurisdição da Espanha na fronteira imprecisa entre os dois impérios visava deter o avanço dos lusitanos em direção ao Rio da Prata e à Cordilheira dos Andes. O Paraguai atual é “herdeiro” das missões indígenas dos séculos XVII e XVIII. Essas missões eram coordenadas por religiosos sediados em Assunção, cidade principal

da Província jesuítica do Paraguai52. Nas 30 reduções existentes chegaram a morar cerca de 128 mil indígenas (Jackson, 2003).

As missões guaraníticas funcionaram, por muito tempo, como uma muralha de proteção do império espanhol contra a fronteira movediça dos portugueses. No inicio, algumas missões, localizadas nas margens dos rios Paraná e Uruguai, foram destruídas ou transferidas devido às incursões dos bandeirantes53. Mas os jesuítas aprimoraram a organização militar e formaram várias milícias comandadas pelos caciques locais. As milícias indígenas visavam proteger as próprias missões dos bandeirantes e dos encomienderos (fazendeiros) espanhóis que caçavam índios missioneiros para escravizá-los, mas também outras regiões da colônia espanhola ameaçadas pelo avanço dos portugueses. Havia alianças táticas entre os jesuítas e os governadores da colônia espanhola. Mais de 3 mil indígenas das missões foram convocados pelos administradores espanhóis para expulsar os lusitanos de Colônia de Sacramento em 1705 e 1735- 37 (Maeder, 1986).

Apesar das estratégias de resistências dos espanhóis, os portugueses continuavam ocupando novas regiões para além da linha do Tratado de Tordesilhas. Em 1750, os dois impérios se reúnem para redefinir as fronteiras das colônias americanas e aprovam o Tratado de Madrid. A fronteira imprecisa da linha imaginária de Tordesilhas cede lugar a uma maior precisão demarcatória entre esses territórios coloniais a partir de acidentes geográficos naturais. Pelo novo tratado, Portugal teria o direito de posse das áreas já ocupadas, menos da região estratégica de Colônia de Sacramento. O acordo previa que os portugueses cederiam essa colônia para Espanha e em troca receberiam os sete povos missioneiros, localizados na margem Leste do Rio Uruguai.

Os jesuítas protestaram contra essa medida. O tratado estabelecia que esses religiosos deveriam convencer os índios a saírem desse novo território português, pois a coroa espanhola não queria perder a produção econômica e nem as milícias guerreiras das missões. Os líderes indígenas não concordaram com o acordo e resolveram resistir e lutar contra os exércitos

52 Conforme Aubert (1991), a “Província del Paraguay” era uma divisão territorial feita pela Companhia de Jesus

para o estabelecimento das missões indígenas. Essa Província corresponde mais ou menos a uma parte do território do sul do Brasil, Uruguai, Nordeste argentino e Paraguai atual.

53 Os exemplos mais presentes na historiografia são das missões Santa Ana na região do Tape e San Ignácio no Salto

de Guairá. A primeira foi estabelecida em 1633 no que é hoje zona central do Rio Grande do Sul. Em 1638, foi transferida devido aos ataques dos bandeirantes e em 1647 mudaram mais uma vez para o que é hoje a Província de Misiones, na Argentina. A missão de San Ignácio foi fundada em 1610 na margem esquerda do Rio Paraná, no lugar das Sete Quedas. Devido novamente aos ataques dos bandeirantes, foi transferida para a Província de Misiones, perto do Rio Uruguai, em 1631. Mas por causa de novas incursões dos bandeirantes, se instalaram próximo ao Rio Paraná também na Província de Misiones, Argentina. (Jackson, 2003)

espanhóis e portugueses. Essa batalha ficou conhecida como a “guerra guaranítica”54. Os índios dessas sete missões foram massacrados, juntamente com alguns jesuítas que não concordaram com as medidas arbitrárias das metrópoles coloniais. O tratado foi anulado em 1761, pois os portugueses não tinham abandonado a Colônia de Sacramento. Após uma nova expulsão dos lusitanos daquela fortificação em 1777, foi então estabelecido o Tratado de Ildefonso, delimitando novamente as fronteiras territoriais entre os dois impérios coloniais.

No contexto das independências dos países do Cone Sul, no início do século XIX, as tensões coloniais continuaram presentes nas relações entre as novas nações de herança espanhola na Bacia do Rio da Prata e o Brasil. O sonho colonial de que a “fronteira natural” da colônia portuguesa deveria ser esse rio continuou no cenário das independências nacionais. O reino unido de Portugal, Brasil e Algarves anexou a banda oriental do Rio da Prata em 1821, criando a Província Cisplatina. O Brasil se tornou independente no ano seguinte (1822) e continuou controlando aquela província de herança espanhola. Essa atitude brasileira suscita a reação imediata das Províncias Unidas do Rio da Prata (futura nação Argentina) que também reivindicavam aquele território. O conflito armado se instala entre os dois países em 1825. A Inglaterra foi árbitro internacional dessa guerra e decidiu pela criação de um “Estado-tampão” ou Estado neutro no território em disputa, surge então o Uruguai como país independente em 1828.

Na construção dos imaginários nacionais destes países durante os séculos XIX e XX, o Brasil passa a ser visto como um país expansionista e que deseja sempre avançar sobre os territórios vizinhos. Uma imagem reelaborada desde o período do avanço português sobre o território espanhol e das redefinições das fronteiras nos tratados de limites coloniais.

Desta forma, ao longo da história dos conflitos entre o Brasil e o Paraguai, essa antiga imagem expansionista dos bandeirantes é sempre acionada e serve para aumentar a desconfiança dos paraguaios em relação ao Brasil e aos brasileiros. No período da “Guerra da Tríplice Aliança” (1864-70), o exército paraguaio classificava os brasileiros de negros, macacos, mas também de “mamelucos e bandeirantes paulistas”. No contexto da década de 1960, o conflito fronteiriço de Salto de Guairá reacendeu as antigas imagens dos bandeirantes. Estudantes em Assunção fizeram passeatas com os seguintes slogans: “expulsão dos bandeirantes de Salto de

Guairá” ou “Paraguay si, bandeirantes no” (Menezes, 1987, p. 138).

54 Os episódios principais em torno da disputa de fronteiras entre os dois impérios coloniais e o massacre indígena na

denominada “Guerra guaranítica” foram abordados no filme a “Missão”, de Roland Joffé, em 1986. Algumas críticas aos erros históricos cometidos nessa película podem ser lidas no texto de Aubert (1991).

Atualmente, os paraguaios continuam estabelecendo uma associação entre o brasileiro e o bandeirante, mas nem todos vêem os grandes produtores de soja como uma versão moderna dos “mamelucos paulistas”. Como afirma o jornalista Andrés Gutiérrez, existem tanto os que apresentam os imigrantes como a “encarnação dos bandeirantes”, mas também há aqueles que os vêem como os “apóstolos do trabalho”:

Hay quienes los ven como a peligrosos invasores, reencarnación de los bandeirantes que devoraban tierras en épocas de colonia, y que hoy serian una avanzada del subimperialismo brasileño, con un pérfido plan para adueñarse poco a poco de todo el Paraguay. Pero también hay quienes los ven como a los héroes de la conquista del oeste en versión local. Como los apóstoles del trabajo y del progreso que han llegado para rescatarnos de la crisis y del atraso (Gutiérrez, 17/09/2003).

Essas classificações fazem parte de uma luta simbólica pela legitimação e identificação nacional entre imigrantes e determinados setores da sociedade paraguaia. Os brasileiros não aceitam essa imagem negativa de “novos bandeirantes” ou “piores do que os

bandeirantes”, como foram classificados por um investigador dos movimentos camponeses. Os

conceitos de “bandeirante” e “pioneiro” são categorias nativas que servem para nomear os mesmos atores sociais. Os imigrantes brasileiros são classificados por alguns setores paraguaios como “bandeirantes” e criam uma auto-imagem positiva de “pioneiros”, como será analisado no próximo capítulo.

A classificação de um grupo dos imigrantes e investidores brasileiros no Paraguai como “novos bandeirantes” não é tão freqüente nos discursos políticos dos opositores à presença brasileira em território paraguaio. Todavia, a imagem de uma “invasão brasileira”, associada aos episódios da “Guerra do Paraguai” está mais presente nas lutas políticas atuais. A imigração brasileira representaria uma espécie de “segunda invasão”, não através da guerra, mas de uma ocupação constante e silenciosa do território nacional.