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ABORDAGENS SOBRE ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PERSPECTIVA AMERICANA

1.5 A ANÁLISE COMPARATIVA DOS ESTUDOS DE CASOS

A análise da PTR que desenvolveremos se fará, conforme já anunciado, contrastando os contextos de quatro territórios rurais no estado do RN, razão pela qual incrementemos a metodologia proposta com o método comparativo.

Para Schneider e Schmitt (1988, p. 1), enquanto momento da atividade cognitiva na construção do conhecimento nas Ciências Sociais, a comparação possibilita “descobrir irregularidades, perceber deslocamentos e transformações, construir modelos e tipologias, identificando continuidades, semelhanças e diferenças, explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos sociais.” Os autores defendem a comparação como inerente a qualquer pesquisa no campo das Ciências Sociais, quer seja utilizada com o propósito de compreender um evento singular ou estudo de casos previamente escolhidos. Para tanto, o seu emprego requer duas condições indispensáveis, “uma clara semelhança entre os fatos observados e alguma dessemelhança entre o ambiente em que eles ocorrem” (BLOCH, 1928 apud ALVES; SARH, 2014, p. 13).

Ploeg (2011) concebe o método comparativo como estruturado, na maioria das vezes, em dois movimentos combinados que devem se fortalecer mutuamente. Um na direção do geral, que busca captar o que é único e o que é comum, isto é, as propriedades compartilhadas por todas as unidades (no nosso caso, territórios) analisadas. O outro viés da comparação encarrega- se da apreensão do que é específico, único, visando, assim, realçar as principais diferenças identificadas nas unidades estudadas. Em suma, a abordagem comparativa busca identificar os

fatores que explicam as categorias comuns às unidades analisadas, assim como as que respondem pelas unicidades identificadas. Contudo, Ploeg (2011, p. 137) alerta que o método comparativo “depende significativamente da formulação adequada das questões de pesquisa, bem como da especificação adequada do nível de análise”. Ao se atender a esses dois requisitos, conclui o autor, o método possibilita “generalizações empiricamente fundamentadas e uma especificação da relevante heterogeneidade” (PLOEG, 2011, p. 137).

Em termos mais históricos, a utilização do método comparativo e de seu papel na construção do conhecimento remonta a estudos clássicos realizados no século XIX pelos principais pensadores da Sociologia, que o concebiam como estreitamente relacionado à própria constituição dessa ciência enquanto campo específico do conhecimento. Pode-se citar sua adoção por Marx no seu trabalho sistemático de confrontação de diferentes casos históricos singulares, ou ainda por Comte, Durkheim e Weber que, não de modo semelhante, utilizaram a comparação como instrumento de explicação e generalização (SCHNEIDER; SCHMITH, 1998).

No campo das ciências políticas, a adoção do método comparativo teve início nos anos 1950 e perdurou nas décadas seguintes, tendo o seu emprego vinculado a estudos internacionais, mais especificamente a fenômenos macropolíticos, tais como revoluções, regimes políticos nacionais e a evolução dos Estados-nações (GONZALEZ, 2008 apud ALVES; SAHR, 2014). Com a sua aplicação, os cientistas políticos buscavam captar as similaridades e/ou diferenças, propósito esse que permaneceu nos estudos comparativos contemporâneos. Alves e Sarh (2014, p. 16), após estudarem diferentes autores das ciências políticas, concluíram que o método comparativo desenvolvido por eles “levou a generalização, a modelos, ou seja, ao controle das hipóteses e proposições gerais”.

Ainda no campo da Ciência Política, porém mais especificamente na aplicação da abordagem comparativa às políticas públicas, Meny e Thoening (1992) apontam explicações que evidenciam as causas do desenvolvimento desta abordagem nessa área, dentre as quais destacamos as seguintes: i) a primeira faz referência ao impulso (intelectual e financeiro) das instituições de pesquisa norte-americanas que se interessaram no campo de estudos políticos comparativos para compreender a evolução dos sistemas políticos de países recém- descolonizados, que caminhavam em direção à democracia e à construção de seus Estados e de suas nações. b) a segunda explicação está diretamente relacionada ao papel de vanguarda e pioneirismo desempenhado pelos Estados Unidos na análise das políticas públicas (educação, trabalho, desenvolvimento econômico ou urbano, etc.) formuladas e aplicadas a realidades

muito heterogêneas e sob diferentes modos de execução, o que acabou gerando uma competição estimulante na análise comparativa de políticas públicas neste país; c) uma terceira explicação está relacionada ao desenvolvimento de estudos comparativos com o propósito de resolver o fosso crescente entre os resultados e as determinantes desses resultados. Em outras palavras, houve por parte dos governantes e especialistas em políticas públicas o interesse de melhor compreender os êxitos ou falhas das políticas públicas, o que fizeram através de programas de pesquisas financiados por fundações norte-americanas e europeias, bem como como organismos internacionais (ONU, UNESCO, OCDE, CEE).

Meny e Thoening (1992) apontam o que consideram os atrativos, os problemas e as contribuições da análise comparativa. Não temos aqui a pretensão de nos aprofundarmos nesses aspectos, mas de conhecê-los de modo a clarear a trajetória analítica a que nos propormos nesse trabalho. Uma primeira qualidade apontada pelos autores é que a análise comparativa contribui para corrigir uma visão incompleta que a ciência política tradicional pode conferir aos sistemas políticos. E, por conseguinte, ela contribui para corrigir a própria política, ao jogar luz e suscitar novas questões, ao questionar as tipologias estabelecidas. Para ilustrar essas afirmações, os autores citam os casos dos Estados Unidos e da Europa que, embora pertencentes a sistemas políticos semelhantes, apresentam diferenças profundas no que se refere às políticas de educação, bem-estar, urbanismo, controle de armas e meio ambiente, possíveis de serem vistas com o auxílio da lupa do estudo comparativo. A segunda qualidade da análise comparativa “é permitir, no campo político social, uma observação que possa ser descrita como quase experimental”, como explicam Meny e Thoening (1992, p. 228-230). Essa condição possibilita, por exemplo, que divergências possam ser observadas em condições quase ideais de análise quando políticas idênticas ou similares, em resposta a problemas idênticos, são aplicadas a diferentes contextos sociopolíticos. Isso é possível porque a análise comparativa restaura como necessário considerar o contexto histórico, político-administrativo e cultural no qual as políticas são implementadas. A análise comparativa apresenta ainda outra vantagem potencial, a de fecundar a pesquisa transpondo hipóteses e resultados obtidos em outros campos ou em outros contextos, o que o faz de forma voluntária e explícita. Para os autores, é isso que a torna um método, enquanto em estudos não comparativos, a comparação, embora sempre subjacente, permanece implícita e não confessada.

Ao se debruçarem sobre as dificuldades enfrentadas pela análise comparativa, Meny e Thoening (1992) deram ênfase a situações de estudos em que não se dispõe de dados homogêneos, um pré-requisito indispensável para uma comparação minimamente sistemática.

Essa dificuldade se mostra mais evidente nos estudos que envolvem o campo estatístico. Outras dificuldades estão associadas a esta como a confiabilidade dos dados, a agregação (por exemplo dados agregados à nível nacional disfarçam variações intranacionais ou intersetorial) e a desagregação (feita de forma sumária pode revelar diferenças marcantes de dados não correspondendo à realidade). Outros problemas para o emprego da análise comparativa estão associados ao grande número de variáveis requeridas para atribuir maior confiabilidade à análise, o que a torna mais complexa quando envolve um grande número de políticas a serem comparadas em contextos muito heterogêneos; a eventual introdução de desvios culturais (como uma política é sempre impregnada dos valores daqueles que modelaram, sustentaram ou executaram, há sempre o risco de projetar em uma pesquisa comparativa os valores dominantes). Por fim, as contribuições aportadas pela abordagem comparativa permitiram mudar as perspectivas, enriquecer o aparelho metodológico e teórico disponíveis no mercado de ideias. O interesse na aplicação do método comparativo à análise das políticas públicas reside, precisamente, na sua compatibilidade com diferentes abordagens e quadros teóricos (MENY; THOENING, 1992).

Schneider e Schmitt (1988) e Alves e Sahr (2014), com base nos trabalhos de Skocpol e Somers (1980), identificam três tipos de análises comparativas ou abordagens sob as quais ela se apresenta. A primeira abordagem (macroanalítica) engloba as análises dedicadas ao exame sistemático da co-variação existente entre os casos, buscando gerar e controlar hipóteses. O segundo tipo (demonstração paralela de teoria) refere-se ao estudo de uma série de casos, em que o investigador busca mostrar que muitos deles (similares) podem ser analisados mediante uso de um conjunto de conceitos e categorias ou um modelo concreto. O terceiro e último, denominado de ‘contraste de contextos’, busca, a partir da comparação de dois ou mais casos, colocar em evidência suas diferenças recíprocas, destacadas a partir de referências a grandes temas ou conceitos do tipo ideal. Os autores que propuseram a tipologia defendem que essas diferentes perspectivas de análise possam ser empregadas de forma interligadas, de modo que uma possa suprir as debilidades da outra, a partir da noção por eles denominada de ‘ciclo de investigação’. Entretanto, um dos principais objetivos do método comparativo continua associado à comprovação e à formulação de determinadas hipóteses (SHNEIDER; SCHMITH, 1988). No caso do nosso estudo, buscaremos adotar a análise comparativa na perspectiva acima defendida, isto é, o emprego dos diferentes tipos de análises comparativas de forma interligada, uma vez que nossa análise se fará à luz de um modelo teórico e analítico, fundamenta-se no

contraste de diferentes contextos de quatros territórios rurais no estado do Rio Grande do Norte e alicerçada em hipóteses a serem (ou não) validadas.

Em termos de operacionalização, a análise comparativa pode ser conduzida em dois momentos. No primeiro deles, definido como analógico, identifica-se as similitudes entre os fenômenos; no segundo, denominado de contrastivo, o foco da análise se volta para evidenciar as diferenças. O momento analógico prevalece sobre o contrastivo tanto em termos de passo metodológico, quanto em termo de compreensão do real (BLOCH, 1928 apud SHNEIDER; SCHMITH, 1988).

Para Schneider e Schmith (1988), a aplicação do método comparativo implica em uma série de passos que se articulam de forma diferenciada segundo distintas orientações teóricas e metodológicas: (i) a seleção de duas ou mais séries de fenômenos que sejam efetivamente comparáveis, o que implica, entre outras coisas, estabelecer a complexa relação existente entre número de casos investigados e número de variáveis; (ii) a definição dos elementos a serem comparados, envolvendo a definição/construção por parte do pesquisador de algumas escolhas relacionadas ao modelo explicativo e a especificação das variáveis a serem comparadas; (iii) A generalização, a servir como bússola para o pesquisador, sem, contudo, perder de vista a unicidade do caso em análise.

Alves e Sahr (2014) reconhecem que é mérito dos cientistas sociais um maior aprofundamento na aplicabilidade dada à abordagem comparativa, o que fizeram enaltecendo semelhanças e diferenças, revelando as causas e efeitos que as estruturam. Todavia, não jogaram luz na intensidade que deveriam no “o papel dos indivíduos e grupos sociais que constroem e vivenciam seu espaço de forma desigual/diferenciada” por intermédio de seus processos cognitivos, o que abrange suas práticas sociais.

Acredita-se, portanto, que o incremento do método comparativo pode explicitar de forma mais nítida o papel dos atores nos espaços (territoriais) similares e ao mesmo tempo diferentes, assim como os efeitos gerados a partir das operações de tradução/reinterpretação realizados por estes durante os processos de implementação da PTR, sem, contudo, negligenciar a influência dos contextos político-institucional nos quais estão inseridos.

Considerações sobre o capítulo

Neste capítulo, buscamos enfatizar as principais perspectivas teórico-analíticas que dão sustentação ao presente estudo: análise de política pública, implementação e estudo comparativo.

Inicialmente, apresentamos o que julgamos ser as mais relevantes abordagens que influenciaram a análise de políticas públicas, e de forma mais aprofundada, àquelas fundamentadas nas ideias. Dentre estas abordagens, destinamos maior atenção ao que se convencionou denominar, sob protestos de alguns autores – de tradição francesa na análise das políticas públicas, no interior da qual se originou o quadro analítico que balizou o presente estudo.

O modelo analítico “referencial”, desenvolvido por Jobert e Muller (1987), alimentou o campo acadêmico da análise de política pública na França, nos anos 1990/2000, suscitando, tanto no exterior como no próprio país, adesões e críticas mesmo no interior dos modelos associados à abordagem cognitiva. A partir desse modelo analítico, os autores buscaram compreender como os valores e as representações de mundo que orientam os tomadores de decisão são determinantes para dar origem ou modificar uma política pública. Conforme já visto no capítulo, os autores mostraram como a aparição e difusão, nos anos 1980, de um referencial de mercado (fundado nos princípios neoliberais da desregulamentação e liberalização) modificou as formas de ação pública nas sociedades europeias, tendo, os efeitos dessa mudança, repercussão em toda sociedade e nos mais diferentes setores que a compõem, no caso em destaque a agricultura.

O próprio Jobert (1992; 1994; 2004) inicialmente, depois em parceria com Fouilleux (2017), instigados pelas críticas atribuídas ao seu modelo, propôs uma abordagem mais refinada fundada na noção de fóruns e de arenas das políticas públicas. Mais recentemente, objetivando atribuir mais clareza ao seu modelo, os autores simplificaram conceitos, acresceram às noções de regimes de debates e canalização das controvérsias, rebatizando-o de Abordagem Agonística das Políticas Públicas (AAPP). Assim, se o modelo assentado em fórum e arenas já apresentava o diferencial de atribuir relevância às ideias numa fase anterior à institucionalização das políticas públicas, buscando identificar os fóruns onde elas emergem, passou também a buscar compreender as estratégias utilizadas pelos atores para canalizar as controvérsias surgidas naturalmente da confrontação de suas ideias e interesses, objetivando a manutenção do referencial dominante.

A nossa escolha analítica foi determinada pela convicção de que tal modelo seria o que melhor se adequava ao estudo das novas institucionalidades propostas pela PTR e implementadas nos territórios potiguares, especialmente os Colegiados de Desenvolvimento Territorial (Codeters), que traziam em sua composição e em seu funcionamento características alternadas de fórum e arena, a ser melhor explicitado no capítulo seguinte.

A revisão da literatura desenvolvida no capítulo resgatou ainda a importância adquirida pela implementação na análise de política públicas, com maior destaque para os fatores que explicam as diferenças entre o ideal concebido, por ocasião da formulação de uma política pública, e o real implementado, resultante da ação de interpretação, mobilização e interação entre os atores engajados no processo de implementação. Isso nos permitirá, no curso do estudo, identificar fatores que poderiam explicar a diferente conformação assumida pela PTR nos quatro territórios pesquisados.

As tipologias referentes aos instrumentos da ação pública aqui apresentadas subsidiarão, no capítulo 4, a identificação daqueles incorporados à PTR, revelando como os atores que participaram da sua implementação nos territórios potiguares os interpretaram e deles se apropriaram nas definições de suas ações estratégicas.

Entender as determinantes requeridas pela análise comparativa, nos permitirão identificar, ao longo do estudo, as similitudes e as diferenças marcantes entre os territórios investigados, ocasionados pelos instrumentos incorporados à PTR, mesmo este estudo não assumindo caráter essencialmente comparativo.

Em suma, este capítulo teve o propósito de construir o alicerce teórico-analítico sobre a qual o estudo aqui proposto se ergueria, qual seja, uma análise de política pública focada na implementação, realizada por distintos atores com diferentes visões de mundo e em diferentes contextos político-institucionais cujos traços distintos das conformações assumidas só poderiam ser mais fielmente captados pelas lentes de uma análise comparativa.

CAPÍTULO 2 - ESCOLHAS ANALÍTICAS E METODOLÓGICAS: APLICAÇÃO AO CASO DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO DOS TERRITÓRIOS RURAIS (PTR) NO RN

Este capítulo complementa o arcabouço teórico-metodológico que fundamenta a Tese, iniciado no capítulo anterior. Para além da apresentação do esqueleto analítico a ser preenchido com as reflexões emanadas deste estudo, quatro outras partes o compõem: os elementos metodológicos (tipologia da pesquisa), o tratamento das informações com o auxílio do software Iramuteq, as incursões profissionais do pesquisador e suas interfaces com a política objeto do presente estudo e uma breve caracterização dos territórios pesquisados.

Assim, no primeiro tópico, apresentamos o quadro analítico que estruturou a Tese, tomando por base o modelo fóruns e arenas discutido no capítulo anterior, o qual foi adaptado às particularidades deste estudo. Na sequência, apresentamos o software Iramuteq e seu papel relevante para o preenchimento do quadro analítico. Ele nos permitiu atribuir mais rigor ao tratamento das informações advindas da pesquisa empírica e mais segurança para a definição das categorias que comporiam a análise propriamente dita.

Na terceira seção, fazemos referência à minha implicação enquanto analista com a política analisada. Julgamos importante incluir esse tópico já que meus cruzamentos e interação com a política ocorreu em diferentes momentos profissionais, em que eu desempenhava papéis distintos (gestor público e pesquisador), o que me permitiu lançar diferentes olhares (observações) sobre essa Política.

A última parte do capítulo foi reservada a apresentação de uma caracterização dos territórios pesquisados. A decisão de ofertar ao leitor, sobretudo aquele não familiarizado com a realidade dos territórios rurais potiguares, uma caracterização desses espaços teve o propósito de ressaltar a presença e a importância socioeconômica do segmento da agricultura familiar nos mesmos, estabelecendo, inclusive, comparações entre as realidades.

2.1 O MODELO APLICADO À ANÁLISE DA PTR

Um desafio importante deste trabalho é adaptar o quadro analítico fóruns e arenas e aplicá-lo ao objeto de estudo aqui proposto, o que implica não somente adequá-lo às particularidades de um processo de implementação de uma política pública formulada originalmente para um país complexo, com realidades regionais e territoriais bem distintas.