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ABORDAGENS SOBRE ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PERSPECTIVA AMERICANA

1.4. A RELEVÂNCIA DA IMPLEMENTAÇÃO NA ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

1.4.1 Os instrumentos da ação pública e sua utilização na implementação

Uma abordagem, antes secundarizada na análise das políticas públicas, vem ganhando espaço na Sociologia Política, os instrumentos na produção da ação pública. Para além das abordagens funcionalistas, focados nos objetivos das políticas públicas, essa perspectiva possibilita tratar outras dimensões na ação pública, até então pouco visíveis. Lascoumes e Galès (2004, p. 12; 29; 2007, p. 4) concebem como instrumentação da ação pública “o conjunto de problemas postos pela escolha e uso dos instrumentos (técnicas, meios de operar, dispositivos) que permitem materializar e operacionalizar a ação governamental”, isto é, a relação entre governantes e governados. Eles fundamentaram seus estudos com base em duas hipóteses segundo as quais a instrumentação da ação pública é uma questão importante para esse campo

de estudo, por ser ela reveladora de uma teoria da relação governante/governado, e por não serem os instrumentos de ação pública não são dispositivos neutros. Ao contrário, são portadores de valores, alimentados de uma interpretação do social e concepções precisas de um tipo de regulação que agem produzindo efeitos específicos, independentemente do objetivo perseguido (os objetivos que lhes são atribuídos), que estruturam a política pública de acordo com sua própria lógica.

Os instrumentos, por sua vez, são concebidos pelos autores como um dispositivo técnico e social que organiza relações sociais específicas entre o Estado e sociedade, em função das representações e das significações das quais é portador. Avançando na conceituação de instrumentos, os autores os concebem como um tipo particular de instituição, um dispositivo técnico com o propósito genérico de carregar um conceito concreto da relação política/sociedade e sustentado por um conceito de regulação (LASCOUMES; GALÈS, 2007). Com base em uma ampla revisão literária, Ollaik e Medeiros (2011) defendem a necessidade de novas abordagens nos estudos da ação pública, justificada pelas constantes mudanças sofridas pelo Estado no trato dos problemas públicos. Se anteriormente, as ações públicas antes predominantemente implementadas por comando e controle (Estado hierárquico), atualmente, a negociação, o convencimento e a persuasão (Estado parceiro, atuando em redes) tornaram-se quase imprescindíveis ao sucesso da implementação. Ollaik e Medeiros (2011, p. 1945) também fazem menção à “nova governança” ocorridas em décadas recentes, que responderia pela “substituição ou complementação de estudos sobre políticas e programas públicos como um todo para o estudo dos diferentes instrumentos para sua realização”, sejam tradicionais ou modernos, resultando na diversificação dos tipos de instrumentos governamentais utilizados na implementação. Para os autores, o estudo dos instrumentos de política, também por eles denominados de ferramentas de governo para implementação de políticas públicas, em alusão à referência feita por Hood (1986) e Salamon (2002), se reveste de grande importância já que ter o potencial de fornecer argumentos fundamentados ao debate acerca das alternativas, em termos de instrumentos governamentais, para implementação de políticas públicas. De acordo com essa visão, uma ação pública

é composta de uma série de meios através dos quais o Estado age, exerce seu poder ou o limita, tais como o uso de regulação, subsídios, campanhas de informação, entre outros, para influenciar o comportamento dos cidadãos e alcançar os objetivos da política pública, resolvendo os problemas sociais identificados e proporcionando ao cidadão os bens e serviços adequados (HOOD, 1986; SALAMON, 2002 apud OLLAIK; MEDEIROS, 2011, p. 1945).

Esse entendimento tem convergência com a concepção de Lascoumes e Galès (2007), apresentada anteriormente, segundo a qual os instrumentos são concebidos como tipos particulares de instituição. Dessa forma, imbuídos do papel inerentes às instituições, os instrumentos podem contribuir para a estabilização da ação coletiva, tornando o comportamento dos atores mais previsível e mais facilmente perceptível. Isso posto, a escolha dos instrumentos, longe de ser regida por critérios técnicos, trata-se de uma escolha política, pois atribui aos atores a condição de determinar como políticas públicas serão implementadas (OLLAIK; MEDEIROS, 2011). Em outras palavras, “os instrumentos estruturam as políticas públicas segundo suas lógicas inerentes e podem ser descritos e classificados conforme diversas tipologias” (PETERS, 2000 apud OLLAIK; MEDEIROS, 2011, p. 1949). Essas tipologias variam a depender do autor, podendo compreender classificações que congregam instrumentos “conforme quatro características (HOOD, 1986), ou conforme 14 (SALAMON, 2002), chegando até mesmo a classificações com 63 instrumentos (KIRSCHEN, 1975)”, em que essas diferentes tipologias estão relacionadas ao grau de análise, da lente utilizada39 e do ponto de vista adotado (OLLAIK; MEDEIROS, 2011, p. 1954).

Além da tipologia proposta por Lascoumes e Galès (2007), de repercussão mais internacional, optamos por apresentar também, dentre as citados por Ollaik e Medeiros (2011), a de Salomon (2002), mais voltada para a realidade nacional.

Lascoume e Galès (2004) ressaltam que tão importante quanto compreender as razões que levam à escolha de um instrumento em relação a outro, é considerar os efeitos produzidos por essa escolha. Com o propósito de tornar claro o lugar dos instrumentos nas tecnologias de governo, os autores propuseram uma tipologia, baseada na desenvolvida por Hood, na qual distinguem cinco modelos diferentes, a saber, os instrumentos legislativos e reguladores (legislative and regulatory), os econômicos e fiscais (economic and fiscal), com base em acordos e incentivos (agreement based and incentives based), com base em informação e comunicação (information based and communication based), e por padrões de boas práticas (de facto and de jure standards best practices). Esses três últimos, são mencionados sob o título de “novos instrumentos de política pública” (LASCOUME; GALÈS, 2007).

39 Ollaik e Medeiros (2011, p. 1948), com base no trabalho de Yanow (1990), identificaram diferentes lentes analíticas para o estudo da implementação de uma ação pública: a lente das relações humanas (indivíduo e relações interpessoais); a lente política (o grupo e relações intergrupos: poder, influência, negociações, jogos); a lente estrutural (a organização); a lente sistêmica (interorganizações: coordenação, controle, comunicação); ou uma combinação dessas diferentes perspectivas. Os autores citam ainda as perspectivas top-down, já citada anteriormente, e a interpretativista, que como a própria denominação indica concebe os desvios entre o planejado e executado como resultados de diferentes interpretações e significados, com vistas à conciliar valores sociais em múltiplas versões, mutáveis com o tempo.

De forma breve, Lascoumes e Galès (2007) referem-se aos instrumentos legislativos e regulatórios como ferramentas emprestados das formas jurídicas rotineiras constituindo o que eles denominam de “arquétipo do intervencionismo estatal”. Esses instrumentos cumprem três funções combinadas em diferentes proporções: função simbólica (atributo do poder legítimo), função axiológica (estabelecem os valores e interesses protegidos pelo Estado) e função pragmática (dirigem comportamentos sociais e organizam sistemas de supervisão). De maneira similar, os instrumentos econômicos e fiscais derivam sua força e sua legitimidade do fato de também terem sido desenvolvidos a partir de uma base legal. Sua especificidade reside, contudo, no fato de recorrerem a técnicas e ferramentas monetárias, seja para arrecadar recursos destinados a serem redistribuídos (impostos, taxas) ou para direcionar os comportamentos dos atores (por meio de subsídios ou permitindo a dedução de despesas).

Os três últimos modelos de instrumentos, configuram relações políticas diferentes entre Estado e sociedade que contribuem para a renovação da legitimidade estatal. Nas relações por eles estabelecidas, o Estado assume formas menos intervencionistas de regulação pública, passando a estabelecer outros tipos de relações, baseadas na comunicação e consulta. Nesse sentido, a adoção dos instrumentos com base em acordos e incentivos pressupõe um estado reduzindo suas funções tradicionais, renunciando ao seu poder intervencionista por modos de troca ostensivamente contratuais. Nesse contexto, o Estado se reveste do papel de principal impulsionador ou coordenador, não intervencionista e principalmente mobilizador, integrador e coerente. A principal legitimidade desse tipo de instrumento seria conferir uma imagem modernista e, acima de tudo, liberal de políticas públicas, da qual é o portador, pouco importando a real eficácia destas, raramente avaliada (GAUDIN, 1999 apud LASCOUMES; GALÈS, 2007).

Os instrumentos com base na comunicação e na informação tem sua origem no direito adquirido pela sociedade, a partir de 1970, de ter acesso à informação sob a posse da autoridade pública, que passou a ter a obrigação de disponibilizá-la e repassá-la aos seus destinatários. A instituição dessa obrigatoriedade de informar ou comunicar gerou, segundo Lascoumes e Galès (2007), uma noção particular de política compondo um espaço público relativamente autônomo na esfera política.

Os instrumentos padrões de boas práticas organizam relações de poder específicas dentro da sociedade civil entre atores econômicos (concorrência, por exemplo) e entre estes e organizações não governamentais (consumidores, ambientalistas etc.). Eles se fundamentam em uma legitimidade mista que combina uma racionalidade científica e técnica, ajudando a

neutralizar seu significado político, com uma racionalidade democrática baseada em seu desenvolvimento negociado e nas abordagens cooperativas que eles fomentam (LASCOUMES; GALÈS, 2007). No quadro abaixo, a tipologia proposta pelos autores.

Quadro 3 - Tipologia de Instrumentos de Políticas públicas

Tipo de instrumentos Tipo de relações políticas Tipo de legitimidade Legislativos e Reguladores Estado guardião social Imposição de interesse geral por

representantes mandatados Econômicos e Fiscais Estado produtor de riquezas e Estado

redistributivo

Busca beneficiar a eficiência social e econômica da comunidade

Com Base em Acordos e Incentivos

Estado mobilizador Procura envolvimento direto Com base em Informação

e Comunicação

Democracia de audiência Explicação das Decisões e Responsabilização dos Atores Por Padrões de Boas

Práticas

Ajustes na sociedade civil – mecanismos de concorrência

Misto: Científico / Técnico,

Negociado Democraticamente e / ou Concorrência, Pressão de

Mecanismos de Mercado Fonte: Lascousmes e Galès (2007).

Para além desses quatros instrumentos, Salamon (2002), citado por Ollaik e Medeiros (2011), identificou 14 instrumentos, alguns presentes na tipologia de Lascousmes e Galès (2007), mas bem mais abrangente, adaptada para realidades da ação governamental brasileira, conforme se observa no quadro abaixo.

Quadro 4 - Tipologia de instrumentos proposta por Salamon (2002) e exemplos no Brasil

Tipologia Descrição Exemplos de ações públicas no Brasil

1- Gestão Direta forma tradicional de implementação, onde o Estado é o ator que executa as ações diretamente. Trata-se da entrega de bens ou serviços diretamente por servidores públicos, com relação direta com os cidadãos (Leman, 2002)

Serviços que empregam o uso direto da força (ex: polícia), quando não se pode correr riscos (ex: controle

epidemiológico, bombeiros, tráfego aéreos, questões de equidade (ex: previdência e assistência), onde não há mercados (ex: educação em áreas rurais), onde é preciso manter capacidade governamental (ex: pesquisa). 2-Corporações

governamentais

Empresas de propriedade e controle estatais. O Estado utilizaria esse instrumento para desenvolver atividades de natureza privada.

Estatais (atuam principalmente em transportes, comunicações, energia elétrica, seguro e correios). 3-Regulação

econômica

Instrumento que combina legislação e decisões judiciais para controlar preços e produção do mercado, bem como eliminar barreiras à entrada e prevenir comportamento monopolístico.

Para eliminar barreiras à entrada e prevenir comportamento monopolístico.

4-Regulação social

Instrumento que define atividades permitidas e proibidas, mediante regras que impõem sanções e oferecem incentivos a

comportamentos, para que não ameacem

Regulação ambiental, de segurança no trabalho, de uso da terra.

Tipologia Descrição Exemplos de ações públicas no Brasil diretamente a saúde, a segurança e o bem-

estar dos cidadãos 5. Seguros

governamentais

Instrumento que o Estado utiliza para indenizar empresas ou indivíduos por perdas provocadas por eventos específicos, tais como desastres naturais ou quebra de instituições financeiras.

Indenizar empresas ou indivíduos por perdas provocadas por eventos

específicos, tais como desastres naturais ou quebra de instituições financeiras. 6. Publicidade

de utilidade pública

Instrumento com intenção de alterar determinado comportamento individual, direcionando-o para a meta do programa governamental.

Rótulos que informam sobre danos causados pelo consumo de cigarro ou bebida alcoólica.

7. Impostos corretivos e taxas

Instrumento tributário para influenciar indivíduos a mudarem suas preferências para reduzir danos sociais.

Tributos sobre cigarros e bebidas alcoólicas.

8. Contratação Instrumento que firma acordo entre um órgão da administração pública e uma entidade privada com ou sem fins lucrativos, com contrapartida financeira, para fornecimento de bens ou serviços a órgão da administração pública contratante ou para a entidade que o represente

Contratação de serviços de segurança, de manutenção de computadores, de limpeza de vias públicas, de construção de prédios públicos.

9. Aquisição de serviço

contratado

Instrumento onde a administração pública contrata uma entidade privada, por uma quantia determinada, para fornecer um serviço a um determinado grupo de pessoas ou "clientes"

Programas de ensino profissionalizante, de aconselhamentos para dependentes de drogas, de cuidados a idosos e doentes mentais.

10. Assistência financeira

Instrumento que transfere recursos de uma entidade governamental para uma organização pública ou privada sem fins lucrativos para estimular ou apoiar determinadas atividades ou serviços cuja competência é de quem recebe os recursos.

Convênios, bolsa família, pontos de culturas, etc.

11.

Empréstimos e garantia de empréstimos

instrumentos onde o Estado empresta diretamente recursos do Tesouro ou garante à entidade financiadora o pagamento da dívida contratada pelos tomadores dos empréstimos, usado para estimular atividades de interesse político ou econômico

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

12. Renúncia fiscal

Instrumento que visa estimular determinado comportamento por parte das empresas ou dos indivíduos pelo adiamento, redução ou isenção de obrigações tributárias.

Simples (tributação diferenciada para micro e pequenas empresas), Rouanet (para incentivo na área da cultura) 13. Vales Instrumento que oferece subsídio, dando

poder de compra aos indivíduos para aquisição de bem ou serviço de sua

preferência, dentro de um conjunto de opções que, normalmente, lhe é oferecido pelo setor privado.

Vale alimentação, vale transporte, vales cultura, etc.

14. Legislação de perdas e danos

Instrumento que estabelece o direito de uma pessoa ou entidade de procurar, no sistema judicial, compensação por um dano sofrido por negligência ou má conduta de outras pessoas ou entidades

Legislação para evitar perdas, como o Código de Defesa do Consumidor.

Assim, em termos de aplicação à ação pública, os instrumentos buscam orientar as relações entre governo e sociedade civil por meio de dispositivos que associam componentes técnicos (medida, cálculo, regra de direito, procedimento) e sociais (representação e símbolos). A nova concepção de ação pública da qual participam múltiplos atores em diferentes níveis fez emergir um novo conceito de governabilidade, que se faz com a participação e pela negociação entre os diferentes atores envolvidos. A opção por uma abordagem centrada no instrumento pode complementar as visões clássicas atualmente predominantes na análise de políticas públicas, que focalizam a organização ou a interação de atores e representações. Graças a esse modelo de abordagem, perguntas diferentes podem ser agregadas à análise, e mesmo as tradicionais podem ser integradas de maneira nova. Foi com esse propósito que decidimos por identificar os instrumentos da ação pública utilizados na implementação da PTR implementada nos territórios potiguares, os quais serão apresentados no capítulo 4.