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ABORDAGENS SOBRE ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PERSPECTIVA AMERICANA

3.1 O ESTADO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO

3.2.1 O Pronaf Infraestrutura e Serviços e o Programa Comunidade Ativa

da intersetorialidade [...] (E31, informação verbal).

É importante lembrar que, na segunda metade dos anos 1990, a Contag lançou o Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável (PADRS), focado na concepção de desenvolvimento rural sustentável, isto é, em um

novo tipo de relação entre o campo e a cidade e a perspectiva de um novo projeto de desenvolvimento que inclua equidade de oportunidades, justiça social, empoderamento dos atores sociais, preservação ambiental, soberania e segurança alimentar e crescimento econômico (CONTAG, 2004, p. 5).

Representantes da Fetarn, afiliada no RN à Contag, relembraram que as concepções básicas que fundamentaram o PADRS (desenvolvimento com sustentabilidade, inclusão de gênero e gerações, juventude, agroecologia, etc.) foram agregadas à PTR, o que revela, de certo modo, que o movimento sindical rural contribuiu para sua formulação. De modo diferente, o MST também pode ter contribuído com suas concepções e formato organizacional em bases territoriais. Este movimento adota fundamentos intrínsecos à abordagem territorial para estruturar sua atuação e até mesmo sua existência alicerçada na ação coletiva, no reconhecimento da conflitualidade e da multidimensionalidade do poder, desde a fase de acampamento, compreendido como um espaço a ser des(re)territorializado sob a lógica campesina, cujas cooperativas de produção agrícolas assumem um papel de nucleadoras das atividades econômicas em escala multiterritorial.

A dinâmica estabelecida pela PTR, especialmente no tocante aos debates e tomada de decisão, prezava pela valorização das instâncias coletivas, o que, de certa forma, contrariava a prática do MST, cujas pautas eram negociadas de forma direta e exclusiva com os agentes de governo. Essa particularidade pode explicar a pouca adesão do movimento em alguns estados à PTR, a exemplo do RN.

Como será debatido mais a frente, a discussão mais diretamente relacionada à mudança de enfoque da política de desenvolvimento rural, isto é, a passagem do setorial para o territorial, ficou mais a cargo das contribuições dos organismos internacionais e dos acadêmicos, não se constituindo num tema central nos fóruns de debates dos movimentos sociais.

3.2.1 O Pronaf Infraestrutura e Serviços e o Programa Comunidade Ativa

A Constituição Federal de 1988, ao modificar a situação política-administrativa dos municípios e ao possibilitar a participação da sociedade civil nas ações governamentais,

instaurou no Brasil, a partir dos anos de 1990, um novo formato institucional propício à gestão participativa das políticas públicas no Brasil, o que representou, nas palavras de Curado (2002) uma difusão territorial do poder, tanto político quanto financeiro.

Foi nesse ambiente que foi formulado o Pronaf Infraestrutura e Serviços, a primeira ação pública destinada ao meio rural no Brasil pensada numa perspectiva territorial. Essa linha, reflexo do processo de descentralização participativa, inseria-se dentro de um programa mais amplo que nasceu da reivindicação dos movimentos sociais organizados do campo, que defendiam a necessidade de uma política de crédito diferenciada para a agricultura familiar. Nesse sentido, a partir de 1996, o Pronaf passou a abranger além do financiamento direto aos agricultores familiares, outras duas linhas, uma destinada a financiar projetos de infraestrutura e serviços municipais (Pronaf Infraestrutura e Serviços) e outra à capacitação de agricultores e integrantes dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDRS)59 (GRISA, 2012), estes constituídos enquanto fóruns de debates e arenas decisórias locais.

Com a criação do Pronaf Infraestrutura, o governo federal pretendia potencializar o desenvolvimento dos municípios60, especialmente dos mais pobres (baixo IDH), os mais agrícolas, e os de menor população (ABRAMOVAY, 2001), viabilizando a infraestrutura produtiva destes. Dentre os critérios obrigatórios a serem respeitados para o financiamento, a Resolução nº 37, do Condraf, estabelecia os projetos com caráter de integração entre municípios, no sentido de regionalidade das ações de infraestrutura61, ações de infraestrutura de caráter complementar a outras ações de desenvolvimento e as ações de capacitação que assegurassem a gestão dos PTDRS pelos atores locais.

Diferentemente de políticas de créditos anteriores dirigidas ao segmento da agricultura familiar, havia a intenção que o Pronaf assumisse de fato o intento de uma política de desenvolvimento rural, moldado pela natureza multifuncional e plural da agricultura familiar. Contudo, o referencial produtivista e modernizante (GRISA, 2012) assumido pelo programa o fez caminhar noutra perspectiva, muito mais concentradora e setorial (AQUINO; SCHNEIDER, 2011) e, por consequência, distante da abordagem territorial. O caráter

59 Reconhecidos através das Resoluções do Condraf n° 16, de 10 de maio de 2001, e n° 28, de 28 de fevereiro de 2002. Esta última, atribui-lhe as “funções consultivas e deliberativas referentes às ações de desenvolvimento [...] notadamente na priorização de demandas, na alocação de recursos (Pronaf), no planejamento e execução de ações [...]”.

60 Fala do Secretário executivo do Pronaf em reunião extraordinária do Condraf, realizada em 10 de maio de 2001(ata Condraf).

61 Exemplos de projetos financiáveis: rede de energia elétrica, canais de irrigação, estradas vicinais, armazéns, abatedouro comunitário, habitação rural, etc.

municipal assegurado à transferência dos recursos62 e, em muitos casos, pautados numa vertente eminentemente agrícola, tornava a perspectiva assimilada e difundida pelos conselhos não condizentes com os objetivos do desenvolvimento rural, pretendidos pelo programa (ABRAMOVAY, 2001; DELGADO; BONNAL; LEITE, 2007).

No período posterior à criação do Pronaf Infraestrutura, o Decreto nº 3.508, de 14 de junho de 2000, institui o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS)63, órgão colegiado integrante da estrutura regimental do Ministério do

Desenvolvimento Agrário. Em 2003, o CNDRS foi reformulado passando a ser denominado de Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF)64. Nas reuniões do

62 Os municípios selecionados poderiam ser beneficiados com cerca de R$ 150 mil anuais durante quatro anos, direcionados a ações definidas pelos Planos Municipais de Desenvolvimento Rural (PMDRS), discutidos no âmbito dos CMDRS (NIERDELE, 2014).

63 O CNDRS tinha como finalidade: I - deliberar sobre o Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável -PNDRS, que definirá as diretrizes, os objetivos e as metas dos Programas Nacional de Reforma Agrária, Fundo de Terras e Reforma Agrária – Banco da Terra, de Fortalecimento da Agricultura Familiar e de Geração de Renda no Setor Rural; II - coordenar, articular e propor a adequação das políticas públicas federais às necessidades da reforma agrária e da agricultura familiar, sob a perspectiva do desenvolvimento rural sustentável; III - aprovar a programação físico-financeira anual dos Programas que integram o PNDRS, acompanhar seu desempenho e apreciar os pertinentes relatórios de execução; IV - avaliar e aprovar, anualmente, o Plano de Safra da Agricultura Familiar, com previsão de recursos, distribuição geográfica e sazonal dos financiamentos, assim como sua destinação por categoria de produtores; V - analisar previamente os planos de trabalho dos agentes financeiros, a serem executados com os recursos provenientes do Orçamento Fiscal da União, do Fundo de Amparo ao Trabalhador, dos Fundos Constitucionais e recursos de outras fontes, subsidiando os respectivos órgãos deliberativos dos Fundos na aprovação dos planos, para promover o

cumprimento dos objetivos e metas do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf e de seus Planos de Safra correspondentes; VI – orientar os Conselhos Estaduais e Municipais de

Desenvolvimento Rural Sustentável, constituídos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, em seu âmbito de atuação, e que sejam pelo CNDRS reconhecidos; VII- promover estudos e estabelecer indicadores gerenciais para a avaliação dos Programas que integram o PNDRS e propor redirecionamentos; VIII- aprovar o seu Regimento Interno, que disporá, também, sobre as atribuições, a composição e o funcionamento das Câmaras Técnicas que integram sua estrutura; e IX- exercer outras competências e atribuições que vierem a lhe ser cometidas. (RESOLUÇÃO Nº 03 DE 20 DE DEZEMBRO DE 2.000)

64 O CONDRAF foi instituído pelo Decreto nº 4.854, de 8 de outubro de 2003, cuja finalidade é propor diretrizes para a formulação, a implementação e a execução de políticas públicas estruturantes voltadas para o

desenvolvimento rural sustentável, a reforma agrária, o reordenamento fundiário e a agricultura familiar, constituindo-se em órgão para concertação e articulação entre os diferentes níveis de governo e as organizações da sociedade civil. O CONDRAF foi reestruturado pelos Decretos Nº 8.735, de 3 de maio de 2016, Nº 9.186, de 1º de novembro de 2017 e Nº 9.784, de 7 de maio de 2019. De acordo com o Decreto 9.186, sua composição se dava de forma paritária: dezessete ministérios e secretarias de governo, cinco representantes de instituições representativas dos órgãos e entidades dos entes federativos, indicados pelo Presidente do CONDRAF; cinco representantes de organizações voltadas aos agricultores familiares, aos beneficiários do reordenamento fundiário ou aos assentados da reforma agrária; dois representantes de organizações voltadas às mulheres trabalhadoras rurais; e representantes (um de cada) de organização voltada às comunidades remanescentes de quilombos; aos indígenas; aos pescadores artesanais; às comunidades extrativistas; à educação do campo; à rede de cooperativismo para a agricultura familiar; às redes de agroecologia; aos trabalhadores da extensão rural pública oficial; um representante de instituição religiosa com atuação no meio rural brasileiro; dois

representantes de organizações voltadas à juventude rural; e quatro representantes de organizações voltadas à proteção dos biomas.

CNDRS (2002)65, alguns conselheiros defendiam a proposta de articulação dos municípios e a introdução de uma visão territorial do rural brasileiro como central na proposta do Plano. Com efeito, na versão final do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PNDRSS), de 2013, a abordagem territorial ganhou destaque, seja como elemento de organização e reflexão sobre o rural, seja como espaços de planejamento e gestão social e, principalmente, como estratégia para a efetiva integração e articulação das políticas públicas de desenvolvimento rural.

Ortega e Cardoso (2002), citado por Ortega (2015), questionaram a real condição dessa linha de crédito, gerida pelos CMDRS, pensada enquanto uma iniciativa de estímulo ao desenvolvimento local, ter efetivamente contribuído para a viabilização de um pacto territorial capaz de articular interesses diversos em torno de projetos viáveis de desenvolvimento local. Em outras palavras, as estruturas e as dinâmicas assumidas pelos conselhos municipais não possibilitarem momentos de reflexão coletiva e de concertação social capazes de estabelecer e reforçar laços econômicos e sociais possíveis de revelar e de potencializar as vocações de um determinado território (ABRAMOVAY, 2001). Em função do seu atrelamento aos CMDRS (a forma de acesso ao crédito66 se dava pela via de projetos municipais que tinham de passar pelo crivos destes), a eficácia do Pronaf Infraestrutura estava muito associado ao funcionamento e ao controle desses conselhos e, por consequente, a ação das prefeituras municipais, que buscavam exercer controle sobre suas dinâmicas de funcionamento, o que ficou conhecimento como “prefeiturização” dos CMDRS67. As dificuldades encontradas pelos CMDRS para a

viabilização deste pacto territorial teriam explicação, na visão de Ortega (2015), na pouca disponibilidade de recursos destinados ao financiamento das infraestruturas locais, mas também no caráter setorial eminentemente agropecuário adotado pelos projetos e, ainda, pela não incorporação de segmentos sociais urbanos nos arranjos locais que envolviam tais projetos.

65 Defesa feita pelos conselheiros Gilson Bittencourt (à época Secretário Nacional de Agricultura

Familiar/MDA) e Luiz Fernando de Mattos Pimenta (MDA), em reunião extraordinária do CNDRS realizada em 30 de julho de 2002.

66 Na verdade, os municípios selecionados pelo CNDRS deveriam elaborar seus Planos Municipais de

Desenvolvimento Rural sustentável, os quais se desdobrariam em projetos, a serem aprovados pelos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS). E para se tornar beneficiário do Pronaf

Infraestrutura (com o limite máximo de quatro contratos), o município deveria atender a três critérios: o primeiro critério é o percentual da população rural sobre a população urbana do município, transformando este número em índice. O segundo critério é o número de estabelecimentos com menos de quatro módulos fiscais sobre o total de estabelecimentos do município e o terceiro é o valor bruto da produção agropecuária municipal dividido pela população rural, definindo a sua renda per capita (fala do Secretário Executivo da Agricultura Familiar na reunião do CONDRAF, realizada em 10 de maio de 2001.

67 Termo atribuído ao papel das prefeituras na apropriação, na condução e no controle, inclusive dos recursos, dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento (CMDRS)

O Programa Comunidade Ativa, criado no final da década de 1990, constitui-se noutra iniciativa do governo federal (Gestão FHC) visando à promoção do desenvolvimento local nas áreas rurais com significativos índices de pobreza. A exemplo do Pronaf Infraestrutura, esse programa também se estruturou sob o viés municipalista, dispunha de pequenas dotações orçamentárias e buscava fomentar o protagonismo dos atores locais e de suas organizações na busca de soluções para os problemas que entravavam o desenvolvimento de suas comunidades, espacialmente a pobreza, e alimentados pela ideia de aumentar a eficiência das políticas públicas. Essas duas experiências (Pronaf infraestrutura e Comunidade Ativa) e as estratégias por elas adotadas, concebidas sob a égide do pensamento neoliberal, se mostraram incapazes de alcançar os resultados que justificaram suas concepções, isto é, “promover um desenvolvimento capaz de sanar problemas como a pobreza” e possibilidade a inserção, de forma competitiva, de suas organizações produtivas aos mercados (ORTEGA, 2015, p. 32).