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ABORDAGENS SOBRE ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PERSPECTIVA AMERICANA

1.3. A ANÁLISE COGNITIVA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E SUAS DIFERENTES ABORDAGENS

1.3.1. O Estado em Ação: a noção de referencial

Fouilleux (2011, p. 88) não só reconhece a existência de uma tradição de análise e uma literatura essencialmente francesa no interior da análise cognitiva das política públicas, como concebe o État en Action como sua obra-prima, cujos autores, segundo a autora, tiveram a proeza de agregar a “função intelectual das políticas públicas” à análise de sua “função de decisão”. Nesse sentido, as políticas públicas seriam muito mais do que processos de decisão dos quais participam um certo número de atores. Elas constituem o lugar onde uma dada sociedade constrói sua relação com o mundo, ou seja, as políticas públicas devem ser analisadas como processos através dos quais são elaboradas as representações que uma sociedade faz de si mesma para compreender e agir sobre o real tal como percebido (MULLER, 2008).

Trata-se, segundo Sabatier e Schlager (2000), de uma abordagem que se aplica a sociedades modernas e industriais caracterizadas por uma forte divisão do trabalho e por subsistemas (setores) de políticas públicas relativamente autônomos, que necessitam desenvolver sistemas de ideias que atribuam sentido e sirvam como guia à ação pública desses

subsistemas, bem como à relação entre estes e a sociedade como um todo. Essa função, remarcam os autores, é exercida pelo referencial, concebido como um conjunto de valores, percepções dos problemas mais sérios em relação a esses valores, relações causais pertinentes e imagens favoráveis. Trata-se, portanto, de categorias, notadamente as imagens, que englobam uma dimensão identitária relativa ao papel das ideias muitas vezes omitidas na análise de políticas públicas.

O papel das imagens é destacado por Jobert e Muller (1987) como central para a análise das políticas públicas. Para eles, toda política se apresenta ao observador primeiramente sob a forma de uma imagem, isto é, uma representação do sistema sobre o qual se quer intervir. Em um segundo momento, ela se desvenda ao olhar de quem a observa sob o aspecto de um conjunto de meios organizacionais (financeiros, administrativos, jurídicos, humanos, técnicas, relações de poder) que a tornam um processo social concreto.

Muller (2018), por seu turno, associa a categoria imagem à gênese de uma política pública. Afirma o autor que elaborar uma política pública pressupõe construir uma representação, uma imagem da realidade sobre a qual se quer intervir. É, portanto, em referência a esta imagem cognitiva, afirma o mesmo, que os atores organizam sua percepção do problema, confrontam suas soluções e definem suas preposições da ação. Logo, a noção de referencial de política pública está diretamente vinculada à visão de mundo de seus atores, que é resultado de uma complexa relação entre o lugar do grupo social a que pertence esses atores na sociedade e a identidade construída a partir desse lugar. Mas para que esses processos de definição social da realidade a ser empreendida pelos atores aconteça, eles dependem de duas características relativamente estáveis de todo sistema político, qual seja, sua capacidade de executar uma articulação eficaz entre regulação e legitimação, isto é, tais processos devem se encaixar nas representações que garantem a integração social, assim como também nos modelos de referência que pretendem tornar a sociedade inteligível e que são a base dos processos de legitimação (JOBERT; MULLER, 1987; JOBERT 1992).

Ademais, tais processos devem ainda ser compatíveis com os modos de mediação social que caracterizam uma determinada sociedade. É a esses processos de modelagem da realidade social que Jobert e Muller (1987), em sua obra État en Action, atribuem a noção de “modelos de referência” ou “referenciais” das políticas públicas, os quais compreendem três dimensões, reforçadas posteriormente por Jobert (1992), as quais combinadas, os assemelham e os diferenciam de outros tipos de representação: uma dimensão cognitiva (os referenciais fornecem os elementos de interpretação causal dos problemas a serem resolvidos); uma

dimensão normativa (os referenciais definem os valores que devem ser respeitados para o tratamento desses problemas); e uma dimensão instrumental – definem os princípios de ação que devem orientar a ação de acordo com esse conhecimento e esses valores.

Ainda segundo Jobert (2004), o referencial de uma política é constituído de um conjunto de prescrições que atribui sentido a um programa político definindo critérios de seleção e os modos de designação dos objetivos. Trata-se, na sua visão, de uma perspectiva que alterna um processo cognitivo – que permite a compreensão do real limitando sua complexidade – com um processo prescritivo, que possibilita agir sobre o real. Em síntese, a produção do referencial é o resultado de um conjunto complexo de discussões, de debates e de negociação.

Em termos de estrutura de significado, o referencial articula quatro níveis de percepção do mundo, distintos, porém com ligações evidentes: valores, normas, algoritmos e imagens. Os valores concebidos como definidores de um quadro global da ação pública. Referem-se às representações fundamentais acerca do que é bem ou mal, daquilo que é ou não desejável. No contexto da ação pública, o debate sobre equidade versus igualdade, crescimento versus preservação do ecossistema são exemplos de debates que envolvem valores. As normas respondem pela diferença entre o real percebido e o real desejado. Elas muito mais do que os valores, definem princípios de ação que passam a nortear a ação pública. A afirmação “a agricultura deve se modernizar” ou “é preciso diminuir os custos com despesas de saúde” são exemplos desses princípios de ação. Os algoritmos são percebidos como as relações causais que exprimem uma teoria da ação, exemplo: “se o governo reduz o peso sobre as empresas, então elas ganharão em competitividade”. No tocante às imagens, são vetores implícitos de valores, normas ou até mesmo de algoritmo, atalhos cognitivos que de imediato fazem sentido, como por exemplo o presidente visitando uma escola ou um hospital (MULLER, 2018).

Ao transpor a noção de paradigma do universo da atividade científica para o contexto das políticas públicas, Jobert (1992) identifica grande semelhança entre a noção de referencial e a noção de Paradigma, anteriormente apresentada. Contudo, o autor alerta para o fato que tal analogia não oculte as diferenças também presentes nessa relação. Concernente à analogia, o autor a enxerga nos dois sentidos empregados por Kuhn à noção de Paradigma, a saber, no nível das crenças, dos valores e das técnicas que estruturam o cenário das políticas públicas, mas também no nível das soluções concretas e comprovadas para resolver problemas até então não resolvidos. Essa analogia também pode ser percebida na oposição dos debates entre “ciência normal” e “revolução científica”, sendo que, no caso do referencial, tal oposição acontece no interior do mesmo referencial produzindo controvérsia que incidirá sobre ele próprio,

condicionando sua influência enquanto referencial à sua capacidade de apresentar uma conciliação mais crível entre estes imperativos contraditórios26. Em ambas as atividades, científica e na área das políticas públicas, afirma Jobert (1992), a controvérsia suscita uma profunda recomposição dos setores, dos participantes e dos atores envolvidos. No tocante às diferenças entre estruturas de políticas públicas e paradigmas científicos, estas resultam, segundo o autor, da natureza necessariamente ambígua e contraditória da ação política. “Não se trata aqui de resolver melhor os enigmas e os desafios do conhecimento, mas sim limitar os conflitos para conter os efeitos das contradições que poderiam ameaçar a coesão social. Trata-se de responder a imperativos contraditórios de legitimação e regulação” (JOBERT, 1992, p. 223).

Enquanto representação do lugar e do papel do Estado numa dada sociedade, em uma dada época, o referencial de uma política pública pode se decompor em dois elementos: o referencial global e o referencial setorial. A relação entre esses dois elementos forma o que se denomina de relação global-setorial (RGS). O referencial global é constituído de um conjunto de valores fundamentais que constituem as crenças de base de uma sociedade, bem como as normas que definem o papel do Estado e das políticas públicas. Atribui-se a esse referencial a representação que uma sociedade faz de sua relação com o mundo e de sua capacidade de agir sobre ela mesma pela ação pública. É em torno dessa representação geral que passa a se ordenar e se hierarquizar as diferentes representações setoriais (MULLER, 2018).

Logo, evocar um referencial global é, nas palavras de Jobert (2004, p. 48), designar representações que estruturam e hierarquizam o espaço de políticas públicas, o que corresponderia ao que Vivien Schmidt (2002), citada pelo autor, designou de “master discurse” ou “discurso de coordenação”, o qual deve fornecer um quadro orientando a ação dos protagonistas da ação pública. Dessa forma, um referencial global jamais poderia ser confundido com discursos políticos, ideologias, muito menos referenciais de política econômico-financeira..

O referencial setorial, como a própria denominação define, é uma representação do setor ou profissão cujas fronteiras são objetos de permanentes conflitos e de controvérsias quanto ao controle da agenda política. A exemplo do referencial global, o setorial é um construto social cuja coerência jamais pode ser considerada perfeita, haja vista que em um dado setor coexistem várias concepções sobre a natureza e a extensão dos limites setoriais entre as

26 Jobert 1992) ilustra sua afirmação citando o exemplo do enraizamento do Estado-Providência na França. Segundo o autor, o enraizamento deste modelo tornou-se possível quando a tradição solidarista se encontra com as novas concepções da macroeconomia keynesiana, permitindo reconciliar o crescimento com a justiça social. Inversamente, a mensagem neoliberal teve dificuldade de penetração na esfera social por apresenta-se

quais, geralmente, uma delas passa a ser dominante por melhor se conformar às normas existentes no referencial global, passando assim a impor como imagem de referência para a política pública correspondente (MULLER, 2018).

O conceito global-setorial, na concepção de Jobert e Muller (1987), estaria no coração da intervenção estatal. Nesse caso, a intervenção tem por objeto ajustar, na medida do possível, a reprodução do setor envolvido aos objetivos mais globais concernentes à reprodução de toda a sociedade (ex: o referencial dominante, nos anos 1970/60, na França, relacionava-se a um projeto de modernização da sociedade). Esses setores, continuam os autores, são definidos como conjuntos de papéis sociais estruturados em torno de uma lógica vertical e autônoma de reprodução (setores industriais, setores agrícolas, sociais etc.).

Na relação global-setorial, o papel central é destinado aos agentes denominados por Jobert e Muller (1987) de mediadores. Esses agentes possuem duplo papel, uma vez que cabe aos mesmos decodificar a RGS, isto é, torná-la inteligível aos demais atores pela via da elaboração de uma filosofia de ação. Compete-lhes ainda a tarefa de recodificar essa RGS em termos de ação prática, ou seja, em normas e critérios de intervenção política. Os autores chegam até mesmo a comparar a função dos mediadores a uma operação de alquimia ideológica, já que esses atores atuam para transformar uma realidade socioeconômica relativamente opaca em um programa de ação político coerente.

O que caracteriza os mediadores no contexto em análise é a capacidade de fazer a ligação entre dois espaços de ação e de produção de sentidos específicos, o global e o setorial, os quais se definem por uma distinta relação com o tempo e espaço. Dessa maneira, os mediadores encarnam a complexa relação entre as limitações do global e a autonomia do setorial, razão pela qual são considerados mediadores da mudança. Em última análise, é o papel exercido pelo mediador que faz emergir, concretamente, um referencial.

Figura 2 - A Relação Global-Setorial e a ação dos mediadores

Fonte: elaborado pelo autor.

Diferentemente do que se possa pressupor, o referencial de uma política pública não se identifica com os discursos e posições das elites. Da mesma forma, a produção do sentido por ela traduzida não é obra dos intelectuais profissionais (universitários, jornalistas etc.). Os mediadores, por serem geralmente oriundos dos grupos os quais eles passam a definir a relação com o mundo, são diretamente responsáveis por atribuírem ao referencial de uma política pública um componente identitário extremamente forte, tornando muitas vezes a sua elaboração

Referencial Global valores e normas - Fornece um quadro orientando a ação pública Relação Global Setorial RGS Mediadores

Atores que permitem o estabelecimento de coerência entre RGS e a PP. A partir da atividade de

decodificação/recodificação da realidade, efetuam a construção do referencial de PP. DECODIFICAÇÃO DA RGS RECODIFICAÇÃO DA RGS REFERENCIAL SETORIAL reprodução ajustada aos objetivos do ref

global

Política Setorial Implementação

Intervenção Estatal (elite dirigente)

um processo indissolúvel que gera além uma nova forma de ação pública um processo por intermédio do qual um ator coletivo fortalece sua identidade social (MULLER, 2008). Assim, o papel de mediador é geralmente assumido por grupos de elites que desempenham papéis- chaves em agências governamentais, grupos de interesse e/ou corporações profissionais, a exemplo do que ocorreu no processo de transformação da agricultura francesa, na década de 1960. Nesse episódio específico, conforme Sabatier e Schlager (2000), esse papel foi exercido por atores que compunham a equipe do primeiro ministro e outras instâncias de governo, mas também por representantes da Juventude Agrícola Católica (JAC).

Todos esses quadros interpretativos e modelos de análise acima apresentados, associados à abordagem cognitiva, aportam, conforme se constata na literatura especializada, contribuições importantes e aspectos considerados limitantes à análise de políticas públicas. Dentre estes, Surel (2014) destaca o questionamento feito por alguns autores sobre a cientificidade de uma abordagem que se mostra incapaz de definir corretamente suas variáveis de análise, de identificá-las de maneira rigorosa e de deduzir hipóteses confiáveis. Ou seja, a abordagem cognitiva não fornece nenhuma indicação precisa sobre o que são as ideias, como identificá-las na realidade social e sobre a influência causal destas sobre as políticas públicas. Outra crítica feita à abordagem cognitiva reside no que alguns consideram seu caráter excessivamente abstrato e sociologicamente pobre, na medida em que negligencia o peso dos indivíduos e grupos envolvidos em suas análises. De acordo com essa visão, um excessivo peso é atribuído aos fatores cognitivos e normativos em relação a outras variáveis, consideradas mais facilmente identificáveis e com uma dimensão causal mais claramente perceptível, a exemplo dos interesses dos atores envolvidos e das lógicas institucionais associadas a qualquer política pública.

Especificamente, no tocante ao modelo proposto por Jobert e Muller (1987), houve questionamentos dentro e fora da literatura francesa. Destaca-se aqui algumas lacunas identificadas por Sabatier e Schlager (2000) que os impede de conceber esse modelo (referencial) como teoria científica da ação pública. Num primeiro momento, eles questionam sobre o silêncio da abordagem no tocante ao papel dos arranjos institucionais, das condições socioeconômicas, da cultura política no desenvolvimento e no conteúdo dos referenciais. Sugerem ainda, como forma de dar uma moldagem mais consistente à abordagem, a realização de um trabalho empírico sistemático com o propósito de investigar como se dá a crença dos atores em um referencial (ou em certos aspectos deste) e como eles coordenam suas atividades para traduzir em ação pública.

No universo intelectual francês, os questionamentos se deram no âmbito mesmo da sociologia da ação pública, embora às vezes também de forma crítica a ela. Também como já dito, alguns dos trabalhos que contribuíram com a evolução do campo da análise das políticas se deram em profunda consonância com esse modelo, a exemplo do que fez Bruno Jobert, que procurou, com base nas críticas, evoluir a noção de referencial desenvolvidas em conjunto com Pierre Muller. Ele desenvolveu a noção de fóruns e arenas, estimando que seria através da identificação de comunidades de atores relevantes, muito mais do que das ideias trazidas por estes, que se poderiam compreender as lutas e dinâmicas evolutivas características de uma determinada política pública (SUREL, 2014).

A seguir, apresenta-se a referida perspectiva (fóruns e arenas) com base nos escritos de Fouilleux (2003; 2000; 2011). Cremos que a perspectiva fóruns e arenas se apresenta mais adequada à natureza da política territorial rural a ser analisada, tendo em vista que o enfoque territorial aplicado ao desenvolvimento, nesse caso de áreas rurais, é antes de mais nada concebida como uma visão de mundo, e os territórios como espaços socialmente construídos mediante processos de diálogos e negociação entre os atores que dele fazem emergir as ideias que impulsionam o desenvolvimento.