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A inspiração na iniciativa Leader: uma abordagem que combina referencial descendente e ascendente

ABORDAGENS SOBRE ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PERSPECTIVA AMERICANA

3.1 O ESTADO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO

3.2.3 A inspiração na iniciativa Leader: uma abordagem que combina referencial descendente e ascendente

A abordagem Leader emerge num contexto marcado pela retórica sobre o desenvolvimento rural, amplamente visível nos países europeus desde o final da década de 1980, pela existência de lacunas institucionais e a partir da implementação de uma política setorial (a época introduzida como uma ‘iniciativa comunitária’ da Comissão Europeia - CE), tida como inovadora, cujo conceito assentou-se na mobilização de recursos endógenos e na abordagem do desenvolvimento local em regiões rurais (SHUCKSMITH, 2010 apud DAX; OEDL-WIESER, 2016).

68 Grisa e Delgado (2019) citam ainda como influência externa para a concepção de desenvolvimento rural baseada no enfoque territorial, integrado e participativo adotado pela SDT/MDA, a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) em 1992, que resultou na criação da Política de Desenvolvimento Rural. e a contribuição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que a um só tempo alterou a classificação de rural e de urbano na Europa e propôs uma base territorial comum, a partir de critérios como densidade demográfica e dinâmicas territoriais rurais-urbanas.

Nos documentos da Comunidade Europeia (2006, p. 5), é definida mais como “um método de mobilizar e incentivar o desenvolvimento nas comunidades rurais locais, do que de um conjunto fixo de medidas a implementar”. Ao incentivar os territórios rurais europeus a construírem respostas inovadoras para velhos e novos problemas rurais, a explorarem novas formas de se tornarem ou permanecerem competitivos, a desenvolveram novas possibilidades de parcerias e de ligação entre atividades, a iniciativa Leader assumiu o caráter de “laboratório para o desenvolvimento de capacidades locais e para a experimentação de novas formas de satisfazer as necessidades das comunidades rurais” (CE, 2006, p. 5). Através de seus instrumentos, sempre de forma complementar a outros programas europeus e nacionais, mobiliza recursos para apoiar estudos, diagnósticos, projetos de desenvolvimento de intersetorial, além do fomento ao desenvolvimento de capacidades locais.

Anteriormente à adoção por parte dos países-membros de uma abordagem endógena, o desenvolvimento rural experimentado era tipicamente setorial, essencialmente dirigidas aos agricultores e destinado a incentivar mudanças estruturais no setor agrícola. Assim, a estratégia de desenvolvimento era inspirada em metodologias descendentes, cujas decisões concernentes aos territórios rurais se davam em nível regional ou nacional, portanto, sem o envolvimento e a implicação direta dos atores locais e de suas comunidades. A mudança de abordagem para uma perspectiva ascendente se deu de forma gradual, possibilitando o envolvimento das comunidades locais nas discussões das ideias, projetos, recursos, acrescentando, assim, valor aos recursos locais (CE, 2006).

A partir de 1991, ano de lançamento da abordagem Leader, o percentual de territórios rurais e de Grupos de Ação Ação Local (GAL) aplicando a nova abordagem cresceu substancialmente, de modo semelhante o nível de financiamento atribuído a abordagens do mesmo tipo. Num rápido resgate de sua história, a abordagem Leader foi lançada, em 1991, como parte integrante da política de desenvolvimento rural global da União Europeia. Desde o seu lançamento em 1991, o Leader passou por mudanças que se caracterizam como diferentes estágios (gerações) de sua evolução.

Iniciada como uma iniciativa experimental, o Leader I (1991-1993) teve suas ações financiadas com recursos de fundos estruturais comunitários (CE, 2006). O Leader II (1994- 1999) se caracterizou pelo aspecto ‘laboratorial’, estimulando a promoção e a difusão de experiências inovadoras (DAX; OEDL-WIESER, 2016). O Leader+ (2000-2006)69

69 O Leader + foi concebido em torno de quatro temas predominantes: 1. utilizar da melhor forma os recursos naturais e culturais; 2. melhorar a qualidade de vida nas zonas rurais; 3. valorizar os produtos locais,

caracterizou-se pela sua ampliação a um vasto leque de regiões rurais, proporcionando um impacto substancial sobre o desenvolvimento econômico e social rural. Essa é a fase, para muitos, de alcance da sua maturidade (DAX; OEDL-WIESER, 2016).

Na geração seguinte (2007-2013), a abordagem Leader foi integrada à Política de Desenvolvimento Rural (PDR) global da União Europeia, o que representou sua inclusão nos programas de desenvolvimento rural regionais e nacionais apoiados por dotações orçamentárias advindas dos países membros da União Europeia, especialmente do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) (CE, 2006). Na fase atual (2014-2020), a abordagem Leader assume um novo enfoque, a do Desenvolvimento Local conduzido por Comunidades Locais (DLCL), com forte inspiração na metodologia ascendente e participativa (bottom-up), na coesão territorial para além dos limites do desenvolvimento rural, com “perspectivas mais integradoras e holísticas” com outras políticas europeias para a aplicação coordenada dos distintos fundos estruturais70 (ESTRADA, 2015, p. 58).

A abordagem Leader é composta por sete critérios totalmente imbricados: a) baseada no nível local (recursos endógenos), em Grupos de Ação Local (GAL); b) perspectiva ascendente (tomada de decisões participativa a nível local, em relação a todos os aspectos da política de desenvolvimento); c) parcerias entre agentes públicos e privados (responsáveis pela identificação de uma estratégia comum e um plano de ação local); d) processos inovadores, inclusive no tocante aos componentes pedagógicos e de ligação entre as redes; e) ações e projetos integrados; f) redes de cooperação entre os territórios; e g) financiamento e gestão local (CE, 2008, 2009).

Essa abordagem inspirou, como reconhece um dos formuladores da equipe que concebeu a estratégia de desenvolvimento dos territórios rurais no Brasil, as ideias que pavimentaram os conceitos, paradigmas, critérios e propostas para as formulações procedidas pela SDT entre 2000 e 2003 (GUIMARÃES, 2013). Esses fatos, associados ao êxito das experiências territoriais europeias, fomentaram inúmeros estudos comparativos entre estas e os territórios rurais inseridos na PTR brasileira. Nesses estudos, são inúmeras as varáveis que podem ser confrontadas (forma de delimitação territorial, estrutura física e infraestrutura, arranjos institucionais, participação do poder público e formas de interação deste para com a

4. utilizar os novos conhecimentos e tecnologias para aumentar a competitividade dos produtos e serviços das zonas rurais. (CE, 2008, 2009).

70Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), Fundo Europeu de Garantia Agrícola (FEADER), Fundo Social Europeu (FSE), Fundo Europeu Marítimo e Pesqueiro (FEAMP). Todos esses fundos integram a Política Agrícola Comum Europeia (PAC) e a gestão dos mesmos foi alvo da última reforma da PAC, com vigência para o período de 2014 até 2020 (ESTRADA, 2020).

sociedade civil, suporte técnico e financeiros, dentre outros71). Por não ser foco desta Tese, a comparação entre territórios rurais pertencentes a realidades brasileiras e europeias, não adentraremos em profundidade nesses aspectos que contrastam essas duas realidades. No entanto, achamos relevantes enfocar alguns destas variáveis mesmo que de forma superficial, haja vista sua relação com o objeto de análise deste estudo.

Um dos aspectos mais comumente analisados para explicitar as diferentes entre a experiência nacional e as apoiadas pelo Programa Leader tem como foco a participação do poder público através dos fundos que financiaram as duas experiências. Novamente recorremos as palavras de um dos formuladores da PTR rural brasileira para fins de ilustração: “aquele programa teve à sua disposição recursos jamais sonhados em condições latino- americanas, o que pode ter sido determinante para os resultados obtidos em cada caso, ou mesmo para a capacidade em resistir às mudanças de governo” (GUIMARÃES, 2013, p. 9). Especificamente neste quesito, na visão de Sabourin (2018), reside uma das grandes diferenças entre as duas experiências.

os projetos no LEADER dependem de um importante co-financiamento das coletividades territoriais e/ou do setor privado. Há uma necessidade de pre- financiamento pelos operadores mediante empréstimos bancários, e a Comissão Europeia ressarce sua parte dos recursos a posteriori e após uma fiscalização externa muito rigorosa. Vale lembrar quanto o LEADER é também a expressão de um modelo europeu neoliberal levando a uma concorrência entre regiões/territórios mediante o peso do setor privado e público local (se há “regiões que ganham”, outras perdem) (SABOURIN, 2018, p. 5).

É fato que o Programa Leader, ao curso de suas várias gerações, tem buscado aplicar de forma coordenada distintos fundos destinados ao financiamento de políticas de desenvolvimento territorial, mas, como já mencionamos, esta realidade (integração de fundos) é recente, objeto da última programação feita pela União Europeia. Além do que, os recursos disponibilizados nem sempre chegam de fato a serem aplicados pelos Grupos de Ações Local (GAL)72.

Na realidade dos territórios austríacos, a insuficiência destes fundos também foi sentida, “há que reconhecer que o apoio financeiro ao LEADER como iniciativa comunitária foi muito

71 Na análise comparativa entre territórios rurais brasileiros e espanhol, Marcelino de Jesus (2015) abordou 12 dimensões, dentre as quais citamos algumas. Para saber mais, consultar: Estudo Comparado entre Territórios Rurais Brasil – Espanha. Ver Ortega e Estrada (2015).

72 Matéria divulgada em 19/03/2019 pelo cotidiano “Le Croix” denuncia que a França poderá ter de devolver à União Europeia 650 milhões de euros, a ser gasto de 2014 a 2020, como parte do programa europeu Leader para apoiar territórios com uma estratégia de desenvolvimento. Disponível em: <https://www.la-

croix.com/Economie/France/Aides-europeennes-fiasco-francais-2019-03-19-1201009783>. Acesso em 25 jun. 2019.

reduzido, em comparação com os orçamentos da PAC e dos fundos estruturais, o que implica um impacto limitado (quantitativo) no desenvolvimento rural”, como nos ensinam Dax e Oedl- Wieser (2016, p. 31). Ademais, “o princípio da anualidade do orçamento” adotado no âmbito do Leader, foi reconhecido como inapropriado para o financiamento orientado para projetos de desenvolvimento rural.

Outra variável comparativa faz referência a infraestrutura social/produtiva e serviços públicos disponibilizadas aos territórios rurais europeus e brasileiros. A reconhecida falta ou insuficiência de infraestrutura e serviços básicos nos espaços rurais brasileiros foi o que motivou a criação do Pronaf Infraestrutura e Serviços, já abordado anteriormente, e foi alvo principal dos investimentos feitos pelo Proinf no âmbito no Pronat, a ser comentado mais adiante. Uma das justificativas utilizadas para explicar as diferenças entre ambas as experiências são atribuídas ao fato de nos territórios europeus já dispor dos ativos de base (saúde, educação, energia e transportes), ao passo que nos territórios brasileiros, em alguns de forma mais acentuada que em outros, isso ainda não acontece (SABOURIN, 2018), o que se constitui em um relevante entrave ao desenvolvimento Mesmo dispondo de tais condições, reconhece-se que as políticas dirigidas ao desenvolvimento dos territórios europeus, incluindo as ações da iniciativa Leader foram insuficientes para assegurar o bem-estar da população rural por não contemplarem ações que impulsionem a melhoria da infraestrutura e equipamentos (ESTRADA, 2015). Contudo, lá, dado o fato desses ativos estarem assegurados, embora de forma ainda não totalmente satisfatórias, dá margem para que o Leader invista na valorização dos atributos específicos dos territórios para torná-los mais competitivos, realidade distante da experiência brasileira.

Por derradeiro, e também de forma sucinta, abordaremos o horizonte temporal das duas iniciativas. Enquanto a iniciativa Leader caminha para completar três décadas, já em sua quarta geração, associada a uma perspectiva de longo prazo, a experiência brasileira não chegou a completar quinze anos, embora tivesse sido concebida para igual período73. Ademais, a política

brasileira não sofreu as reformulações necessárias para fazer face a inércia inerente aos processos de adaptação das políticas públicas, principalmente os de natureza mutável como os que envolvem o desenvolvimento local/territorial/regional.

Para além da ação do efeito sinérgico do capital social (valorização dos recursos endógenos, as dinâmicas colaborativas estabelecidas e mobilização social protagonizada pelos

73 De acordo com o planejamento da SDT, para cumprir o ciclo de implementação nos 450 territórios rurais presumivelmente existentes no Brasil, o Pronat deverá vigorar por 32 anos ininterruptos. (SDT/MDA, 2003).

atores locais através de seus Grupos de Ação Local instalados por todos os territórios europeus), “a chave do êxito da iniciativa LEADER é ter conseguido uma boa síntese entre, de um lado, a metodologia ascendente e participativa (bottom-up) utilizada por aqueles grupos e, de outro lado, a lógica descendente e administrativa (top-down) típica das políticas públicas”. Esses fatores, associados aos investimentos realizados no meio rural pelos distintos fundos rurais e estruturais, a transversalidade dos aspectos ambientais em todas as ações setoriais, a ampliação do números de atividades econômicas desenvolvidas nos espaços rurais e a sua integração nas agendas social e econômica europeias, dentre outros, explicariam o fato de os territórios rurais europeus apresentarem, nos dias de hoje, melhores condições que a cinquenta anos atrás (ESTRADA 2015, p. 56-57).

Em certa medida, a PTR brasileira também visou compatibilizar, por assim dizer, a adoção de metodologias ascendentes e descentes, quando, por exemplo, estruturou a lógica de funcionamento do PTC, a partir de uma perspectiva descendente, diferentemente das experiências desenvolvidas nos anos 1990 – e do próprio Pronat – que se organizaram numa perspectiva mais voltada para o desenvolvimento endógeno.

Por fim, farei uso da análise de Dax e Oedl-Wieser (2016) sobre a perspectiva de transferência da abordagem Leader para outras realidades, mesmo que europeias. Para os autores, que analisavam a apropriação desta abordagem aos territórios austríacos, o caráter piloto e laboratorial das experiências iniciais tornou seu processo de implementação por demais específico. Essa especificidade fez com que a riqueza dessas experiências dificilmente pudesse ser transferida para outras regiões haja vista a enorme diversidade dos contextos locais. Reconhecem ainda os autores que a iniciativa Leader gerou novas soluções, designs e ideias, mas a transferência e a aplicação de suas boas práticas ao contexto da diversidade das regiões rurais europeias se revelaram quase impossível (VAN DER PLOEG, 2003; ÖIR, 2004 apud DAX; OEDL-WIESER, 2016, p. 31)

O resgate que ora acabamos de apresentar por si só não nos possibilitaria a rigor identificar os fóruns de produção de ideias envolvidos no processo de institucionalização da PTR. A precisa identificação destes careceria de um maior aprofundamento investigativo- analítico, o que demandaria, muito provavelmente, uma outra tese. Todavia, à luz do que fizeram Jobert (1994), Fouilleux (2003) e Grisa (2012) em análises já mencionadas neste estudo, e conscientes de não termos tido a pretensão de alcançar a profundidade analítica atingida pelos mesmos, arriscamo-nos a identificar a existência de pelo menos três fóruns: os fóruns científicos, os fóruns profissionais e/ou temáticos (nesse caso, agricultura familiar), além

dos fóruns de comunicação política. sobre os quais teceremos breves comentários acerca de suas constituições.

o Fórum científico: composto por pesquisadores e organismos de cooperação internacional que contribuíram para a assimilação de conceitos e para sua adequação às especificidades nacionais e locais, contribuindo dessa forma com suas pesquisas, estudos e intercâmbios de experiências para a formulação das políticas territoriais e para o aperfeiçoamento das políticas de desenvolvimento rural.

o Fórum da agricultura familiar: congregaria o conjunto das organizações e movimentos sociais que lutam pela reforma agrária e pelo fortalecimento da agricultura familiar no país, compreendendo as organizações que atuam em redes de articulação voltadas para o assessoramento e/ou o desenvolvimento de tecnologias adequadas a esse segmento nos seus diferentes biomas.

o Fórum de comunicação política: composto pelos grupos políticos partidários que assumem os governos nas diferentes esferas (nacional, estadual e municipal) e que buscam fazer valer suas ideias anteriormente difundidas através de discursos eleitorais, convertidos em programas e plataformas políticas no momento das disputas eleitorais.

Foi a mudança ocorrida no fórum de comunicação política, em 2002, que possibilitou que novos atores – com novas ideais – assumissem o comando do governo nacional alterando a correlação de forças no fórum de políticas públicas e, portanto, a condução das políticas públicas para os mais diversos setores. No tocante às políticas de desenvolvimento rural, que mudanças essa alteração provocou?

3.3. A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO