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CAPÍTULO 1 QUADRO TEÓRICO E ANALÍTICO DA PESQUISA: A ANÁLISE COGNITIVA NOS ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE AS POLÍTICAS

1.2. A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO SOBRE A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

1.2.2 Outras abordagens que influenciaram a análise de políticas públicas

1.2.2.4 As abordagens analíticas das políticas públicas baseadas nas ideias

Hall (1996), citado por Fouilleux (2003), identifica as ideias (associadas aos fatores culturais) como uma das três principais tradições que tratam das políticas públicas, as quais se constituem como fatores causais das políticas20. Para Jobert (2004), pensar a relação das ideias com políticas públicas é considerar os processos de construção da hegemonia, considerada como a definição de normas, critérios que enquadram a formação dos atores sociais e políticos, bem como as regras de sua interação.

Fouilleux (2003) defende conceber as ideias de maneira muito ampla, numa linha mais convergente com Jobert (2004). Para ela, não se pode restringir as ideias a meros fatores culturais como muitas vezes é caso, mas como ‘um conjunto de representações, quadros de análise e de esquemas de interpretação diversos que fazem sentido através de sua encarnação

20 Perspectiva negada pelos defensores do modelo da Escolha Racional. Para eles é “impossível atribuir qualquer valor causal às ideias, que, na melhor das hipóteses, formam uma racionalização ex-post dos comportamentos dos atores e não podem, portanto, ser consideradas como uma série de variáveis relevantes para a análise” (PALIER e SUREL, p. 10).

em comunidades de atores específicos (FOUILLEUX, 2000, p. 278). Em outras palavras, as ideias alimentam o debate entre os atores na busca de formulação de receitas de políticas públicas.

Surgida nos anos 1980-1990, essas abordagens são resultado de uma série de pesquisas que apresentavam em comum o peso por elas atribuídas ao conhecimento, às ideias, às crenças ou às representações sociais na elaboração das políticas públicas (SUREL, 2014). Esses trabalhos constituíram a fundamentação de uma corrente de análise – que se convencionou denominar de abordagem cognitiva e normativa das políticas públicas – a qual abordaremos mais adiante.

Nas linhas que se seguem, apresentaremos de forma sintética uma sistematização das abordagens analíticas americanas na qual se identifica claramente onde se posicionam aquelas cujo processo de formulação das políticas públicas se fundamenta nas ideias. Na sequência, faremos um resgate de desenvolvimento das abordagens baseadas nas ideias, na França, de onde buscamos inspiração para a adoção do quadro analítico que guiará nossa análise.

1.2.2.4.1 A perspectiva americana

Sabatier e Schlager (2000) avaliaram, com base em dois conjuntos de critérios21,

diversos referenciais teóricos de análise de políticas públicas que se diferenciam em função do grau de importância que atribuem a fatores cognitivos em relação a fatores não cognitivos. Dentre as abordagens por eles avaliadas como com Conteúdo Cognitivo Relativamente Fraco elencam as Políticas Públicas Comparadas e a Escolha Racional Institucional. De forma bastante superficial, no caso das primeiras, examina-se e compara-se múltiplas unidades políticas – não recorrendo para tanto a nenhuma teoria para guiar tais análises – com vistas a determinar os efeitos relativos de fatores socioeconômicos e político-institucionais (variáveis independentes) sobre os resultados de uma política pública. Longe de ser um modelo individual ou geral de tomada de decisão individual, na abordagem comparativa os seres humanos estão ausentes ou são considerados como “caixas pretas”. Por conseguinte, as ideias e os processos de aprendizagem também estão ausentes ou não são considerados. Em contraste com os estudos

21 O primeira diz respeito ao escopo da teoria (objetivos importantes e interesses conflitantes. o contexto socioeconômico no seio do qual emerge uma política pública) acrescido das ideias e aprendizagens; o segundo conjunto de critérios de avaliação é a ciência, não sob o prisma do debate ontológico e epistêmico, mas do ponto de vista de postulados (o comportamento humano está sujeito a uma série de regularidades estruturais

subjacentes e que a principal tarefa das ciências sociais é discernir essas regularidades, etc.). Para saber mais, consultar (SABATIER e SCHLAGER, 2000, P. 213).

comparativos, as abordagens da escolha racional institucional colocam um papel central na tomada de decisão humana, adotando conscientemente a racionalidade absoluta ou a racionalidade limitada como modelo de tomada de decisão individual, combinadas com outras variáveis que animam a discussão sobre as explicações da mudança da ação pública ou escolha institucional. Tal modelo de decisão utilizado nas abordagens de escolha racional institucional dá pouca atenção aos processos cognitivos. Além do que, não se considera que os indivíduos possam agir deliberadamente sobre a percepção das informações que eles detêm. Nessa abordagem, as variáveis relativas às instituições são centrais para a escolha racional institucional, com as instituições sendo explicadas e usadas para explicar resultados específicos. (SABATIER; SCHLAGER, 2000).

Dentre as abordagens (americanas) que consideram como potencialmente importante o papel das ideias na formulação das políticas públicas, Sabatier e Schlager (2000, p. 218) as distinguem de acordo com o grau de importância por elas atribuído à análise de políticas públicas. Eles denominam de “abordagens cognitivas minimalistas” àquelas que atribuem grau de importância mínima ao papel das ideias na mudança das políticas públicas, em detrimento das “abordagens cognitivas maximalista”, que absolutizam essa importância.

No primeiro caso, os autores King et al. (1994) apud Sabatier e Schlager (2000, p. 219- 220) advogam que as ideias dos atores simplesmente refletem interesses materiais anteriores (exemplo: o poder militar e condições socioeconômicas nas realidades da Rússia e na Europa Oriental seriam considerados fatores que explicariam o apoio da sociedade desses lugares às ideias do planejamento centralizado), e que estas não têm nenhum efeito independente sobre as escolhas políticas ou sobre as estratégias de políticas públicas. Por sua vez, os autores que potencializam as abordagens maximalistas acabam por excluir outros fatores que não as ideias – a exemplo dos institucionais, socioeconômicos e não cognitivos – como elementos de explicação da mudança da ação pública.

Sabatier e Schlager (2000, p. 220-224) enumeram quatro abordagens maximalistas: os quadros de ação pública, as narrativas de políticas públicas, a teoria culturalista e os referenciais. A primeira abordagem é percebida pelos autores como o modelo que torna possível dar sentido a uma situação problemática, complexa, mal definida, tornando possível agir sobre ela. Tal situação implica controvérsias relacionadas a políticas públicas, a exemplo de temas como o aborto ou a energia nuclear. Esses autores consideram-na, dentre as abordagens cognitivas, como sendo a menos convincente para a compreensão do papel das ideias no processo de construção de políticas públicas em geral, dado seu caráter ambíguo no

que tange à sua construção central (num quadro de extremo confronto de posições, como distinguir uma ideologia de uma narrativa (?), indagam os autores). Ademais, os formuladores desse modelo não abordam como os fatores culturais, institucionais e socioeconômicos afetam o conteúdo dos quadros de políticas pública e seu impacto na ação pública.

As narrativas de políticas públicas foram desenvolvidas por Roe (1994) e aperfeiçoadas por C. M. Radaelli (1999). Referem-se a uma história plausível que reúne elementos específicos do sistema de crenças, ou seja, a percepção do problema, suas causas, os instrumentos de política pública privilegiados e as preferências em termos de ação pública que uma coalizão usa no debate político. Também nesse caso, Sabatier e Schlager (2000) não vislumbram da parte dos autores que defendem esse modelo nenhuma referência explícita sobre como a cultura política, as regras organizacionais, as condições socioeconômicas e os recursos políticos afetam os atores que aderirem a uma determinada narrativa que lhes pareceu mais atrativa do que outras, e/ou que narrativa é capaz de se tornar dominante em uma dada situação específica; a teoria culturalista, trata da influência das crenças e dos modos de vida (como o indivíduo se percebe na sua relação com a sociedade) dos atores na definição das estratégias gerais que adotam para instrumentalizar suas intervenções na ação pública. Embora reconheçam que há vários aspectos da teoria culturalista que os aproximam de seus formuladores, especialmente o sistema de crença que buscam operacionalizar, Sabatier e Schlager (2000) fazem as mesmas críticas sobre a não menção da interferência dos fatores não cognitivos (papel das regras institucionais na distribuição de recursos naturais, condições socioeconômicas) na determinação dos vieses culturais na sociedade e como isso se traduz nos debates específicos de políticos públicas; Enfim, os referenciais (ou referencial), cuja apresentação será feita mais adiante, haja vista que tal abordagem é central para a compreensão do quadro de análise adotado nesse estudo.

Finalmente, Sabatier e Schlager (2000) identificam as “abordagens equilibradas” entre os fatores não-cognitivos e cognitivos no estudo do processo associado à ação pública. King et al. (1994), citado pelos autores, mencionam como quadros teóricos pertencentes a essa abordagem, as correntes (streams), o equilíbrio pontual, a construção social e a Advocacy Coalition Framework. Novamente, sem ter a pretensão de aprofundar sobre essas perspectivas teóricas, far-se-á uma superficial descrição das mesmas, a partir dos autores acima citados.

A perspectiva Correntes, desenvolvida por John Kingdon (1984) apud Sabatier e Schlager (2000), precursor em desenvolver um quadro de análise das políticas públicas com ênfase no papel das ideias, conceitualiza a agenda e o processo de formulação da política

pública sob a forma de três correntes: uma corrente dos problemas, que diz respeito à informação sobre as características do problema e sua gravidade; uma corrente da política pública, composta de ideias sobre inovação – como instrumentos de ação pública ou reorganizações administrativas – para resolver o problema e uma corrente política, que diz respeito às eleições e à mudança no sistema político. Essas correntes, claramente distintas e separadas, têm nas ideias inovadoras em matéria política e nas informações seus elementos centrais, mas que também considera o contexto institucional (ex. separação de poderes nos EUA) e fatores econômicos.

O modelo equilíbrio pontual, formulado por Jones (1993), com contribuições de True et al. (1999) apud Sabatier e Schlager (2000), fundamenta-se no argumento segundo o qual o desenvolvimento de uma política pública nos Estados Unidos é caracterizado por longos períodos de estabilidade, pontuadas por períodos de mudanças muito significativas. Esse modelo busca explicar as alterações na ação pública como resultado de uma série de elementos cognitivos (estratégia dos atores na propagação de imagens das políticas públicas como um meio de influenciar a opinião pública, ênfase na aprendizagem política pela tentativa e erro na busca da direção mais vantajosa) e não cognitivos, como as restrições institucionais (variáveis constitucionais, poder do Congresso, etc.) (SABATIER; SCHLAGER, 2000, p. 226).

Os numerosos trabalhos que abordam o modelo a construção social versam sobre como a construção social da realidade afeta a definição de problemas e o poder de diferentes atores nas políticas públicas. Os elementos cognitivos estão presentes nesse modelo de forma expressa na percepção dos atores, a partir dos conhecimentos científicos, profissionais e políticos, que uma vez validados ganha forma de construções sociais que acabam por influenciar fortemente o processo de elaboração das políticas públicas. Estas, por sua vez, são produto do contexto normativo societário e setorial das instituições (fatores não cognitivos) que afetam os instrumentos de ação pública e as regras institucionais incorporadas nas decisões públicas (SABATIER; SCHLAGER, 2000, p. 226).

A noção de Coalização de Interesses – Advocacy Coalition Framework (ACF), desenvolvida pelo próprio Sabatier e outros autores, busca explicar a mudança, a longo termo, da ação pública no âmbito de setores específicos.

O argumento básico é que a tomada de decisões de políticas públicas pode ser melhor entendida como uma competição entre coalizões de causas, cada uma formada por atores de uma multiplicidade de instituições líderes de grupos de interesse, agências administrativas oficiais, legisladores, pesquisadores e jornalistas que compartilham um sistema de crenças ligadas à ação pública e que se envolvem em um esforço conjunto para traduzir elementos de seu sistema de crenças em uma política pública. (SABATIER; SCHLAGER, 2000, p. 227).

A estrutura do sistema de crenças que compõe o modelo, na forma de três níveis definidos por sua escala ou extensão, configuram a presença dos elementos cognitivos: um núcleo central (deep core) composto de crenças muito gerais que se aplicam a maioria das políticas públicas; um núcleo próprio a uma política (policy core), compreendendo percepções e crenças normativas cruciais aplicadas a um setor de políticas públicas (ex. controle da poluição atmosférica); e aspectos secundários (secondary aspects) aplicados apenas a partes específicas de um setor de políticas públicas. A ACF também atribui significativo destaque aos fatores não cognitivos, como os socioeconômicos, culturais e institucionais (eleições, o papel dos fóruns profissionais para gerir conflitos) que limitam o processo de desenvolvimento de políticas públicas.

O quadro abaixo apresenta uma suscinta distinção, baseado no trabalho de Sabatier e Schlager (2000), entre esses três grupos de abordagens com os respectivos modelos que os compõe.

Quadro 2 - As abordagens analíticas das políticas públicas segundo a perspectiva Americana