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3. A importação normativa: processos e riscos nos setores regulados da aviação civil e

3.2. Aviação civil

3.2.3. A ANAC e as normas internacionais

Existe uma relação íntima entre o direito aeronáutico nacional e o direito internacional. Além de serem constantes as pontes com os organismos internacionais, como a OACI, na condução do setor no País, o direito aeronáutico internacional é amiúde objeto de convenções internacionais e acordos bilaterais, que seguem os trâmites constitucionalmente previstos para a integração ao ordenamento jurídico pátrio. No plano internacional, negociam-se, com frequência, ainda, liberdades de voo e de prestação de serviços reciprocamente entre países. O peso dos tratados e das normas internacionais na regulação setorial brasileira é tão grande que o CBA, antes mesmo de dizer a que veio, estabeleceu: ―Art. 1° O Direito Aeronáutico é regulado pelos Tratados, Convenções e Atos Internacionais de que o Brasil seja parte, por este Código e pela legislação complementar‖.

Há uma série de tratados, convenções e protocolos internacionais em que o Brasil é ou foi parte no setor da aviação civil. Destaca-se, em primeiro lugar, a Convenção de Varsóvia, de 1929, a primeira a unificar regras para o transporte aéreo internacional. Limitando a responsabilidade do transportador em caso de acidente, podem-se citar o Protocolo de Haya, de 1955, o Acordo de Montreal, de 1966, a Convenção da Guatemala, de 1971, e os Protocolos de Montreal I, II, III e IV, de 1975. A Convenção de Roma, de 1933, e seu Protocolo Adicional, de 1938, assinado em Bruxelas, trataram dos danos causados por aeronaves em terceiros, na superfície. A Convenção de Roma e a de Genebra, de 1948, abordaram o direito de propriedade sobre as aeronaves, sobretudo em case de execução de garantia real. Mais recentemente, houve mais atenção à proteção contra ataques e interferências ilícitas a voos, aeroportos e instalações de auxílio à navegação aérea, refletida nas Convenções de Tóquio, de 1963, de Haya, de 1970, e de Montreal, de 1971. Houve, ainda, o Acordo entre o governo brasileiro e o governo americano para a promoção da segurança da aviação, celebrado em Brasília, em 22 de março de 2004.

De todas as convenções internacionais de que o País é parte, a mais relevante é, sem dúvida, a Convenção de Chicago, de 7 de dezembro de 1944, que foi promulgada no País pelo Decreto nº 21.713, de 17 de agosto de 1946. Essa Convenção foi um marco

para a cooperação internacional na aviação civil e criou a Organização de Aviação Civil Internacional. Essa Organização, conforme já apresentado, por sua vez, é o principal polo de governança do setor em plataforma global. A ratificação da Convenção pelo Brasil implicou a aceitação de todas as suas cláusulas – não houve reservas – e de toda a normatização (e pseudonormatização) secundária, as SARPs, nos termos do art. 37 da Convenção278. A vinculação do País a esses documentos e a relevância atribuída a eles é refletida, por exemplo, nos considerandos do Decreto nº 54.203, de 23 de agosto de 1964279, e no rol de competências da ANAC280.

Discutindo se os anexos técnicos produzidos pelo Conselho da OACI possuem aplicabilidade direta na ordem jurídica portuguesa, Jorge Bacelar Gouveia (2005) firma o entendimento de que eles não configuram normas jurídicas internacionais plenas e carecem de cogência perante os Estados e suas ordens jurídicas. O Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa argumenta que a imposição de simples obrigação de notificação aos Estados, existindo a possibilidade juridicamente prevista de não cumprimento, e o fato de consistirem em relações jurídicas entre a OACI e um Estado específico, não se estendendo à coletividade dos convenentes, retiram dos anexos técnicos a eficácia normativa necessária para a incorporação na ordem jurídica interna.281 Não se admite que sejam recepcionados automaticamente,

278 Esse dispositivo foi objeto de discussão na subseção 2.3.1 desta dissertação.

279 O Decreto nº 54.203/1964 determina a observância, no Brasil, das Normas e Recomendações

constantes da 5ª edição do Anexo 9 à Convenção da Aviação Civil Internacional, que dispõe sobre a facilitação do transporte aéreo. Lê-se, no primeiro considerando: ―ATENDENDO a que, nos têrmos da Convenção da Aviação Civil Internacional, formada em Chicago em 1944 e promulgada pelo Decreto nº 21.713, de 27 de agôsto de 1946, o Brasil se comprometeu a observar as Normas e Recomendações internacionais que, sob a denominação de Anexo à Convenção, forem adotadas com aprovação da maioria dos Estados contratantes, ressalvada a faculdade de cada um notificar as diferenças com que as observará nos casos em que colidirem com a sua legislação ou não as considerar convenientes aos interêsses nacionais‖.

280 O art. 8º da Lei nº 11.182/2005 atribui à ANAC, entre outras, a competência de ―(…) promover a

implementação das normas e recomendações internacionais de aviação civil (…)‖. Em relação a disposições internacionais acerca de segurança, admite-se, quando muito, que a ANAC delibere tecnicamente acerca da interpretação das normas e recomendações internacionais.

281 Ressalte-se que, da Constituição portuguesa, consta o seguinte dispositivo: ―As normas emanadas dos

órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos‖. Gouveia (2005) ainda complementa, justificando porque não se aplica tal dispositivo constitucional: ―a normatividade dos anexos técnicos está estritamente dependente da actividade colaborante dos Estados, para quem a própria Convenção de Chicago remete a solução jurídica de se conseguir a harmonização da regulamentação técnica internacional. A este mesmo resultado chega o Parecer nº 30/90 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República: ‗As disposições emanadas no seio da Organização de Aviação Civil Internacional, assim, necessitarão de regulamentação interna concordante com a sua própria regulamentação para que o sistema instituído se revele eficaz e aplicável: as especificações da Organização de Aviação Civil Internacional não são, de acordo com este sector doutrinal, ipso facto, aplicáveis no território dos Estados contratantes‘‖.

mas se admite que sejam transformados em regulamentos administrativos emanados pelo órgão regulador da aviação civil português.

A internalização dos anexos técnicos à Convenção de Chicago não ocorre da mesma forma que os tratados. O meio pelo qual elas são integradas ao direito nacional, porém, apenas se tornou explícito a partir de 21 de maio de 2008, com a Resolução da ANAC nº 30. Esta norma instituiu o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC), que tem por objeto ―as normas e procedimentos recomendados pela Organização de Aviação Civil Internacional – OACI, contidos nos Anexos à Convenção sobre Aviação Civil Internacional e aplicáveis às matérias de competência da ANAC (…)‖ (art. 2º), buscando cumprir o art. 37 da Convenção.282 O RBAC deve ser submetido a consulta ou audiência pública (art. 7º). No entanto, até recentemente, havia casos – alguns dos quais ainda resistem – em que normas e recomendações da OACI produzem efeitos no Brasil e condicionam os atos da Administração Pública sem terem sido submetidos a um procedimento contestatório realmente aberto.283 Ainda que uma resolução da ANAC incorpore uma norma da OACI ao direito brasileiro, o fato de o documento já ser reconhecidamente uma norma aplicável ao País não confere margem para não a cumprir. A legislação brasileira, em muitos casos, adota essa abordagem para com os documentos da OACI, como se o único caminho fosse cumpri-los. Veja-se, nesse sentido, o disposto no CBA:

Art. 94. O sistema de facilitação do transporte aéreo, vinculado ao Ministério da Aeronáutica, tem por objetivo estudar as normas e recomendações pertinentes da Organização de Aviação Civil Internacional - OACI e propor aos órgãos interessados as medidas adequadas a implementá-las no País, avaliando os resultados e sugerindo as alterações necessárias ao aperfeiçoamento dos serviços aéreos.

Já se viu que a produção normativa no âmbito da OACI não é dotada de uma participação democrática exemplar, na medida em que carreada pelo Conselho sem canal institucional com a sociedade civil, o que lhe retira muito da parca participação dos próprios Estados convenentes e, consequentemente, muito da sua eficácia. Uma saída para esse beco de ilegitimidade em busca da concretização de um processo republicano de produção normativa lida necessariamente com dois momentos: o

282 Trata-se dos Anexos nº 1 (Licença de Pessoal), 5 (Unidades de Medida a serem Usadas em Operações

em Voo e no Solo), 6 (Operação de Aeronaves), 7 (Marcas de Nacionalidade e Matrícula de Aeronaves), 8 (Aeronavegabilidade de Aeronaves), 9 (Facilitação), 14 (Aeródromos), 16 (Proteção Ambiental), 17 (Segurança: Proteção da Aviação Civil Internacional contra Atos de Interferência Ilícita) e 18 (O Transporte Seguro de Produtos Perigosos pelo Ar).

283 Podem ser verificados, inclusive, casos em que portarias do Departamento de Aviação Civil (DAC)

remetiam a normas emitidas pela Federal Aviation Administration (FAA), entidade reguladora do setor nos EUA, recepcionando automaticamente também todas as alterações posteriores.

momento posterior à formulação da norma ou do método recomendado, consubstanciado na efetiva internalização da norma ou pseudonorma no País, mas também o momento anterior, de articulação e debate preliminares à própria formação do documento na OACI.

Em relação a isso, é ao CONAC que compete ―estabelecer as diretrizes para a representação do Brasil em convenções, acordos, tratados e atos de transporte aéreo internacional com outros países ou organizações internacionais de aviação civil‖ (art. 2º, I, do Decreto nº 3.564/2000). Essa competência, todavia, tem sido parcamente exercida. As únicas manifestações do Conselho em relação a isso tratam das operações internacionais de empresas aéreas brasileiras, estabelecendo diretrizes para a regulação da ANAC no âmbito interno e na atuação da Agência e dos delegados brasileiros no cumprimento e na formalização de acordos bilaterais internacionais em que se transem direitos de voo.284 Em nenhum momento, o CONAC estabeleceu orientações a respeito da abordagem a ser seguida pela ANAC ou pelo País na leitura, no cumprimento ou na recepção dos anexos técnicos da Convenção de Chicago ou em sua a atuação na OACI.285

Para auxiliar a atuação da Agência na OACI, foi criada, recentemente, por meio do Decreto nº 6.055, de 6 de março de 2007, a Delegação Permanente do Brasil junto à Organização de Aviação Civil Internacional. O objetivo disso foi dar mais um passo no processo de desmilitarização da Agência, na medida em que a referida Delegação seria o ponto oficial de comunicação com a OACI, teria membros civis e militares em composição praticamente paritária286 e, finalmente, estaria submetida à coordenação do Ministério das Relações Exteriores (MRE), o que antes não ocorria. Essa medida denota a crescente relevância que o Brasil vem atribuindo à Organização e, por outro lado,

284 Em relação aos direitos de voo, saliente-se o papel do Plenário da ANAC, que, segundo o art. 103 do

Regimento Interno, tem competência para ―(…) apreciar as matérias relacionadas com aviação civil internacional que subsidiarão as decisões da Diretoria‖. Trata-se de um ambiente de concertação internacional, frequentemente ocorrido em um processo de audiência aberto à participação das empresas aéreas brasileiras, para negociação bilateral internacional com outros países – e com empresas de outros países – de direitos recíprocos de voo, como frequência semanal, capacidade, limites tarifários entre outros.

285 De acordo com o art. 8º, II, da Lei nº 11.182/2005, compete à Agência ―representar o País junto aos

organismos internacionais de aviação civil, exceto nos assuntos relativos ao sistema de controle do espaço aéreo e ao sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos‖.

286 ―Art. 2º O Chefe da Delegação Permanente do Brasil junto à OACI dispõe de um Assessor de

Transporte Aéreo Internacional, indicado pela Diretoria da ANAC, e de um Assessor de Navegação Aérea Internacional, indicado pelo Comando da Aeronáutica, de acordo com o Decreto nº 5.731, de 20 de março de 2006‖ (Instrução Normativa nº 16, de 18 de dezembro de 2008).

também a relevância atribuída a uma instância preliminar de formação de posição brasileira, mediante um debate informado do próprio País.

Recebidos os documentos da Delegação Permanente do Brasil junto à OACI, a Superintendência de Relações Internacionais da ANAC classifica-os em informativos (divulga orientação relativa à aviação civil, informa sobre as atividades da OACI ou convida para ou solicita a participação em atividades da OACI) ou consultivos (proposta ou adoção de emenda a algum Anexo). No caso de documentos consultivos, são etapas necessárias a distribuição, a emissão de parecer e a consolidação de uma resposta final, sinalizando a posição do Brasil ou, se for o caso, a adoção ou não da emenda.