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2. A globalização da governança

2.2. Déficit democrático e direito administrativo

2.2.1. Déficit democrático

Foi noticiada, no início deste capítulo, a discussão sobre a legitimidade democrática da União Europeia (UE), pelas palavras de Oscar Vilhena Vieira. Tratar da legitimidade do exercício da autoridade pública na UE é diferente do que a tratar no resto do mundo. A UE exerce autoridade pública a partir de competências explicitamente delegadas pelos Estados-membros e isso é indiscutível. Em se tratando de organizações intergovernamentais e não governamentais no âmbito internacional, nenhuma delas tem jurisdição sobre ninguém, parecendo, de imediato, que não exercem autoridade pública, sobretudo quando comparadas às relações de supranacionalidade no âmbito da UE. Todavia, essa impressão não corresponde à realidade. (DELBRÜCK 2003)

A configuração internacional herdada da Paz de Westfália, com cada Estado exercendo sua soberania no âmbito internacional, coordenando-se com os outros voluntariamente e tendo o monopólio da personalidade jurídica nesse plano, está sob revisão. A profusa criação de entidades multilaterais intergovernamentais introduziu novos atores na política e no direito internacional, que não se limitam a fronteiras territoriais. Em tese, a autoridade exercida por essas entidades tem sua legitimidade apoiada em consensos e em atos não impositivos. (BRUNER 2008)

Porém, hoje há, sobretudo nos países emergentes, uma relativização da soberania nacional, instituição tão basilar ao direito internacional público. A dependência que muitos desenvolvem dos resgates financeiros de instituições como o FMI e o Banco Mundial impõe-lhes, por via colateral, limitações na governança política interna. A

165 De acordo com categorização da ONU, a sociedade civil global abrange grupos representantes de

fragmentos da população (mulheres, indígenas, homossexuais,…), associações profissionais e de empregados, organizações religiosas, academia, ONGs filantrópicas e movimentos sociais. Discute- se, no âmbito da ONU, se se devem abranger também atores privados com interesse eminentemente econômico.

política econômica nacional, teoricamente soberana, é ceifada por meios extrainstitucionais. (AGUILLAR 1999)

Embora a globalização requeira algum grau de sacrifício da autonomia, tem-se observado que o poder frequentemente se centraliza nos Estados Unidos ou em outra potência; a perda de autonomia é, afinal, dos outros. O comportamento dos Estados dominantes no plano mundial para com o direito internacional, assim, tende a oscilar entre uma postura instrumentalizadora, em que as instituições são usadas para satisfazer seus próprios interesses, e a desistência, em que o Estado simplesmente deixa de legitimar a instituição que não lhe satisfaz e abandona o regime cooperativo. (BRUNER 2008)

Muitas das organizações internacionais (OIs) desenvolvem políticas e adotam decisões que impactam os Estados nacionais vinculados, de alguma forma, a elas. O direito nacional desses Estados, portanto, recebe influxos – mais fortemente em alguns casos, menos explicitamente em outros – dessas organizações.

É possível perceber que, em muitos casos, o direito doméstico que parece ser genuinamente ―feito em casa‖ é, na realidade, uma norma previamente trabalhada no âmbito das OIs por burocratas e especialistas internacionais e nacionais. Isso ocorre especialmente em relação às chamadas convenções- quadro que são emendadas continuamente, de acordo com os padrões do conhecimento especializado, no formato de protocolos ou recomendações, que, por sua vez, são implementadas, no seio doméstico, por meio de ordens executivas ou outras medidas regulatórias, abaixo do nível parlamentar, contornando o processo legislativo nacional.166 (DELBRÜCK 2003, 35-6)167 Um impulso significativo para o fortalecimento do papel regulador dos organismos internacionais foram os programas para integração econômica internacional: o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), a Comunidade Europeia (CE), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e o GATT, substituído pela OMC após a Rodada do Uruguai, em 1995, entre outros. O crescente papel da OMC no plano internacional se junta à posição fortalecida do FMI e do Banco Mundial, que se

166 Tradução livre do original: ―In addition, one has to realize that, in many instances, domestic law that

appears to be genuinely ‗homemade‘ is actually nothing but a ‗rubberstamped‘ regulation worked out at the level of IGOs by teams of international and national administrators (civil service). This is particularly true in the case of so-called framework conventions that are continuously amended according to the standards of expert knowledge, as either Protocols to conventions, or as recommendations that in turn are often implemented on the domestic level, through executive orders or other regulatory means, below the level of parliamentary legislation, thereby bypassing the national legislative process.

167 Isso parece ser coerente com o papel das organizações intergovernamentais, porém se pode duvidar da

relevância das organizações não governamentais (ONGs) internacionais no exercício de qualquer autoridade pública. Delbrück (2003), assim, esclarece que muitas delas têm participação privilegiada como consultoras especializadas em processos decisórios no âmbito das OIs, além de frequentemente figurarem como advogadas legítimas do interesse público internacional, ainda quem sem mandato democrático para isso.

avantajaram depois das crises financeiras internacionais da década de 1980, interferindo nas políticas domésticas mediante exigências de ajustes estruturais e de reestruturação das dívidas de países subdesenvolvidos.

A regulação internacional é, hoje, tão extensa que muitos estudiosos têm reconhecido que a autoridade regulatória não reside mais somente, ou soberanamente, no governo local ou nacional. Em vez disso, ela é compartilhada por uma combinação de entidades, incluindo governos, redes transgovernamentais e organização internacionais públicas, que constituem um complexo sistema de governança internacional.168 (KINNEY 2002, 419) O principal descontentamento com a globalização decorre da percepção de que os governos locais ou nacionais estão perdendo poder para órgãos reguladores internacionais. Isso se associa ao fato de que tais órgãos são, com frequência, inacessíveis aos cidadãos comuns e irresponsáveis (unaccountable) perante eles, ou seja, os processos mediante os quais eles elaboram suas políticas e regras não são democráticos. (KINNEY 2002)

A globalização é um fenômeno que tem dimensões cultural, econômica, ambiental e política. Governança refere-se a um processo decisório menos formal que um governo. A globalização da governança é um fenômeno que vem sendo debatido e criticado a partir de suas experiências e possibilidades (não) democráticas. Uma maior participação democrática nesses processos tem sido advogada pela academia, pela sociedade civil e mesmo pelas OIs. Há quem diga, hoje, que a democracia nos Estados nacionais estará fadada ao fracasso se não se dispuser de meios e de oportunidades concretas para efetivar uma participação nos processos decisórios globais.

O déficit democrático das OIs tem sido cada vez mais combatido. Já não é recente o slogan ―no globalization without representation‖.169 Uma democracia global pressupõe que organismos internacionais sejam considerados distintos dos Estados que os criaram, formando um ambiente próprio de comunicação e de formação de sentido. Só a partir disso se pode perquirir o público apto a acessá-la democraticamente. Mas, afinal, em que exatamente consiste o déficit democrático?

Steve Charnovitz (2003) admite três sentidos possíveis para essa expressão. Déficit democrático pode se referir ao fato de os organismos internacionais não tratarem

168 Tradução livre do original: ―International regulation is now so extensive that many scholars have

recognized that regulatory authority no longer resides in only, or chiefly, national or local government, but rather is shared by a combination of entities including governments, transgovernmental networks, and public international organizations, which constitutes a complex system of international governance.‖

169 Frequentes são as manifestações revoltosas contra a globalização econômica. Veja-se, por exemplo,

igualmente todos os Estados que nele têm participação, dando oportunidades diferentes para eles se manifestarem e influenciarem suas decisões, conferindo, por exemplo, pesos diferentes aos seus votos.170 Déficit democrático pode também significar que as OIs não exigem que seus membros sejam Estados democráticos. A outra visão possível, que nesta dissertação se adota, é a de que déficit democrático faz referência ao fato de os organismos internacionais funcionarem afastados do público que é afetado por suas decisões.

A extensão do poder atribuído a uma OI é condicionada por dois fatores: a eficácia legal de suas medidas e a independência gozada pelo organismo. Delegar poderes de elaborar regras vinculantes é mais forte do que delegar poderes para elaborar pseudnormas (soft law), por exemplo, que operam como mecanismos de pressão, o que também dependerá da possibilidade concreta de fazer valer a decisão. Além disso, quanto menos mecanismos de controle os Estados tiverem sobre a OI e quanto menos precisas forem suas atribuições, mais poderes de fato ela terá. (BRADLEY e KELLEY 2008) A combinação desses fatores pode parametrizar o déficit democrático experimentado.

O momento vivido atualmente pela governança internacional, em verdade, é paradoxal. Existe um conjunto de estudiosos e visões, agrupáveis sob o rótulo de teorias democráticas da governança global, que julga existir um déficit democrático na prática das OIs e de outras entidades internacionais com poder de influência nas políticas mundiais. Esse déficit democrático leva à produção decisões no âmbito global que prejudicam Estados e indivíduos sem conferir-lhes possibilidade de mudar isso ou defender-se. Por outro lado, nunca antes se teve tamanha participação da sociedade civil nos organismos internacionais quanto hoje, o que, segundo Woodward (2006), deve-se aos seguintes fatores: evolução tecnológica das telecomunicações, dissolução da União Soviética, a expansão do sistema legal internacional para vários lugares, a entrada de novos países e de países em desenvolvimento na ONU e a insatisfação com a paralisia dos Estados individuais em relação a assuntos de interesse global.

De acordo com Sol Picciotto (2000), muitos dos que defendem uma democracia cosmopolita de matiz neokantiana, fundada no reconhecimento de direitos individuais e princípios de justiça, corroboram a infértil visão ultraliberal de que basta que não haja

170 É o que ocorre, por exemplo, no Conselho de Segurança da ONU. Evidentemente, sempre existirá a

pergunta: devem ser aplicadas aos Estados dentro de uma OI as mesmas regras de participação democrática aplicáveis aos cidadãos em um Estado?

intervenção nas relações internacionais que a persecução dos interesses individuais garante legitimação universal e a concretização da justiça. Em resposta a isso, assere que ―a democracia é muito mais que Estado de direito, que pode, ao máximo, prover um ambiente para resolver conflitos entre direitos individuais. São os processos políticos que devem decidir quem possui o direito‖171 (165). A democracia, portanto, deve ser um instrumento conduzido pela política e pelo direito.