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2. A globalização da governança

2.1. Do direito internacional ao direito global

2.1.3. Direito global

Nas últimas décadas, o constitucionalismo alcançou boa presença mundial. Muitos países enxergaram nesse modelo e em suas instituições – Estado de direito, limitação do arbítrio estatal, liberdade política, separação dos poderes, entre outras – um meio para o fortalecimento da sociedade e para a estabilização de expectativas que contente o maior número de pessoas possível. Em contrapartida, porém, parece haver uma sensação de esgotamento de suas possibilidades em face do aprofundamento da integração econômica internacional recente e da multiplicação de fontes normativas transnacionais. (VIEIRA 1999)

Fala-se, hoje, em um direito global, que escapa ao direito doméstico; o primeiro é conceituado negativamente por Sundfeld (1999), em comparação com o segundo. O direito doméstico tem suas fontes dentro do Estado (constituição, leis, decretos,…), ao passo que o direito global tem-nas fora (tratados, normas de organismos internacionais, pseudonormas). O direito doméstico, ainda útil e sadio, tem seu conteúdo assediado por pressões econômicas externas. As normas estatais agora não levam mais em consideração apenas aspectos internos, mas necessidades mundiais, porquanto os mercados estão cada vez mais globalizados. O fato de boa parte do poder econômico e político mundial estar concentrado nos EUA tem levado à incorporação de instituições típicas do common law em países com formação jurídica romano-germânica.

É patente que uma série de temas atuais é incapaz de ser tratada isoladamente por um país, seja ele desenvolvido ou em desenvolvimento.152 As instituições e as organizações que governam os temas de interesse de cada país são cada vez mais globais e o direito global opera de forma diferente que o direito doméstico. A regulação transnacional é composta menos de leis e mais de princípios – pode-se dizer que, em vez de um Estado de direito, tem-se um mundo de princípios. Embora princípios sejam considerados geralmente mais brandos que normas, não deixam de ter eficácia concreta. A preferência por princípios está no seu caráter mobilizador da opinião pública, na sua abertura, que permite que normas mais concretas sejam feitas sucessivamente, e na sua

152 Podem-se destacar temas ambientais, como aquecimento global, de infraestrutura, como a aviação civil

internacional, e financeiros, como a presença global de empresas multinacionais e a livre circulação de capital pelo mundo.

generalidade, que os protegem contra os aspectos rapidamente cambiantes da economia internacional. (SCHEUERMAN 2002)

O acordo estabelecido entre Estados que os compelem a agir em determinado sentido, conformando o direito global, é comumente visto como uma renúncia voluntária à sua soberania. Em 1923, porém, o Tribunal Internacional de Justiça ofereceu uma nova visão sobre isso. No caso Wimbledon, afirmou-se que esse tipo de acordo, em vez de uma renúncia da soberania, é, precisamente, um exercício e uma afirmação dessa soberania.153 Dessa forma, a concepção realista do direito internacional, que o vê como um instrumento para o alcance dos interesses dos países poderosos, contrasta com a visão alegadamente contemporânea de que o direito internacional funciona – e deve funcionar – como uma limitação na perseguição desses interesses. (WOODWARD 2006)

Analogamente à discussão empreendida pela nondelegation doctrine154, quando dois ou mais Estados atribuem autoridade a um órgão internacional para tomar decisões e executar ações, pode-se dizer que há uma delegação internacional. Que tipo de autoridade pode ser concedida? Curtis Bradley e Judith Kelley (2008) identificam oito tipos de atribuições passíveis de serem delegadas.

A delegação legislativa envolve a atribuição de poderes para realizar ou emendar tratados, não se tratando de uma medida comum. A delegação adjudicativa concede o poder de o órgão resolver disputas por vários métodos. Pode haver a delegação de tarefas de monitoramento e aplicação de medidas, como a Organização para Proibição de Armas Químicas. Pode-se delegar também a atribuição de formulação de agendas, de pesquisa e recomendação, de implementação de políticas e pode haver, ainda, redelegações. Por fim, pode-se ter delegação regulatória, viés este que será aprofundado em seguida. Nessa modalidade de delegação, o órgão internacional incumbido tem o poder de elaborar normas administrativas vinculantes ou não, o que pode afetar obrigações internacionais.155

153 Giros lógicos como esse são comuns na análise jurídica e só fazem furtar-se artificiosamente dos

problemas concretamente postos, tentando resolvê-los com um passe de mágica. Outro exemplo disso foi tratado no debate da delegation doctrine, na seção 1.3.3 do capítulo anterior.

154 Essa doutrina foi apresentada na seção 1.3.3 do capítulo anterior.

155 Bradley e Kelley aprofundam as distinções entre esse tipo de delegação e a delegação legislativa:

―Assim como ocorre no direito doméstico, pode haver alguma incerteza associada à distinção entre as delegações legislativa e regulatória. Quando a regulação se torna tão extensa ou removida do tratado original que se torna legislação? Isso pode ser relevante para o direito doméstico, que pode exigir um processo doméstico em particular para novos compromissos que se consubstanciem em tratados. Delegações regulatórias também podem levantar questões para estudiosos do direito a respeito de em que medida os conceitos de direito administrativo doméstico deveriam aplicar-se à

Em outras palavras, a governança e o direito global podem abranger um grande conjunto de atividades com o propósito de promover uma decisão coletiva a respeito de problemas que transcendem um único país.156 (ESTY 2006) Confere-se especial atenção, neste trabalho, ao papel dessas entidades na elaboração de regras para a execução dos tratados, na formação de normas suportadas principiologicamente por esses documentos, na instituição de padrões a serem seguidos uniformemente pelos Estados-membros e na elaboração e harmonização de políticas compartilhadas por eles.

Bradley e Kelley (2008) ainda fazem uma análise de custo-benefício da delegação. Como benefícios, apontam a possibilidade de o Estado usufruir da especialização técnica que o organismo comporta, o caráter facilitador da cooperação internacional que as OIs detêm e a possibilidade de resolver disputas amigavelmente com outros países. Os custos identificados são, sobretudo, relacionados à perda da autonomia soberana do Estado, à impossibilidade de escolher sempre suas alternativas de políticas públicas preferidas, a exigência que lhe é imposta para cumprir com os compromissos internacionais e os custos de oportunidade do uso dos recursos disponíveis.

Ainda, muitas vezes, a delegação se processa sem que tenha havido efetivamente uma delegação. É o caso quando a governança no plano internacional não ocorre por meio de normas, mas de pseudonormas (soft law). O ponto fulcral é que, embora o soft law não seja formalmente reconhecido como fonte do direito, é encarado com bastante seriedade pelas partes envolvidas na sua formação. Produz, portanto, efeitos

arena internacional. Além disso, essas delegações pode ser de interesse aos cientistas políticos que estudem as circunstâncias sob as quais as instituições internacionais que se perdem dos seus mandatos originais.‖ [Tradução livre do original: ―As can be the case in domestic law, there may be uncertainties associated with the distinction between legislative and regulatory delegations. When does regulation become so extensive or removed from the original treaty that it amounts to legislation? This can matter to domestic law, which may require a particular domestic process for new treaty commitments. Regulatory delegations also may raise questions for legal scholars about the extent to which domestic administrative-law concepts should be applied to the international arena. In addition, such delegations may be of interest to political scientists studying the circumstances under which international institutions stray from their original mandates.‖] (2008, 14)

156 Daniel Esty (2006) usa o termo governança supranacional em vez de governança global. Não se optou

por ele nesta dissertação porque dá a entender que há uma instância formal e hierarquicamente superior ao Estado, o que não é o caso, exceto na União Europeia.

internamente.157 A importância atual do soft law é grande principalmente na União Europeia, a ponto de, certas vezes, ele chegar a ser formalmente previsto.158

Na medida em que os textos de soft law oriundos de organismos internacionais têm produção descentralizada e não se apoiam na soberania estatal – fazem-no, no máximo, indiretamente –, o positivismo estatalista perde lugar: há outras pessoas, que não os Estados, produzindo normas, ainda que suaves (soft), no direito internacional.159 Constata-se que esses documentos levam à produção de direito não só no plano internacional, mas também internamente, seja quando recepcionados pelo Poder Executivo em sua praxe administrativa, seja quando utilizados pelo Poder Judiciário doméstico na resolução de uma contenda, seja quando apropriados pelo Poder Legislativo nacional.160

A governança global, portanto, não se restringe às decisões e ao papel dos Estados no plano internacional. Ela conta com a atuação de outras pessoas jurídicas, OIs, pessoas individuais, ONGs, movimentos, redes de interesses, grupos despersonalizados etc. Essa percepção deu origem à ideia de comunidade jurídica global, que seria a comunhão de todo o mundo em torno de valores mutuamente

157 Hartmut Hillgenberg (1999) chega ao ponto de contestar a atual dicotomia legal/não legal existente

sobre os acordos firmados entre estados, na medida em que acordos feitos sob a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados diferem, em eficácia, muito em relação aos acordos qualificados como soft law.

158 Foi o caso, por exemplo, de uma Comunicação expedida pela Comissão ―Política fiscal na União

Europeia – prioridades para os anos vindouros‖ em 2001, por meio da qual ela previu, expressamente, que ―o uso de abordagens não legislativas ou ‗soft legislation‘ pode ser um mecanismo adicional de se obter progresso no campo fiscal‖ [tradução livre de: ―the use of non- legislative approaches or ‗soft legislation‘ may be an additional means of making progress in the tax field‖]. (SENDEN 2005)

159 O soft law representa um direito diferente do direito positivo. Por não ser vinculado a um Estado, não

pode ser imposto diretamente (enforced) nem é obrigatório, embora o seu descumprimento possa traduzir-se em consequências negativas para o Estado ―violador‖. Destoando da maior parte da doutrina e da jurisprudência, Salem H. Nasser afirma peremptoriamente que tais documentos não são fontes do direito internacional, não possuindo sequer valor normativo, porquanto, para o autor, direito é algo necessariamente obrigatório e vinculante. Ainda que possua essa posição extrema, ele não nega que ―esses fenômenos, como o direito, influenciam os comportamentos, organizam a sociedade e resultam da combinação de necessidades sociais, valores e relações de poder‖ (NASSER 2005, 160).

160 ―Vários exemplos podem ser dados que evidenciam a influência da soft law sobre a produção

normativa dos Estados, como no campo dos direitos humanos, direito do consumidor, no direito ambiental, nos direitos do trabalhador, no combate ao tráfico internacional, na arbitragem internacional, as leis econômicas internacionais, entre outras, demonstrando que, se carecem de valor imperativo por um lado, por outro são inspiradoras da criação de legislações em várias áreas do direito e para a celebração final de vários Tratados internacionais de incontestável valor para humanidade, na busca de um mundo melhor.‖ (MENEZES 2003, 71)

reconhecidos e em prol do bem comum, em um movimento de progressiva constitucionalização do direito internacional.161 (WOODWARD 2006)

Podem ser identificadas, nesse sentido, quatro formas principais pelas quais o sistema ONU dialoga com a sociedade civil, representada por ONGs: estas podem ser consultoras da Ecosoc – existem hoje mais de 2.800 –, podem se credenciar no Secretariado para algum evento organizado pela ONU, podem acessar os diversos órgãos e agências especializadas da Organização por meio de seus próprios programas de credenciamento ou, ainda, podem associar-se ao Departamento de Informação Pública (DPI). (WOODWARD 2006) O foco do estudo se dará em duas das dezesseis agências especializadas da ONU. Essas agências têm um importante papel na formulação de normas e padrões globais.

Conforme já se afirmou, com a globalização, o exercício da autoridade pública não se restringe mais ao âmbito de Estados territorialmente definidos. Concorrem com eles organizações internacionais e supranacionais, além de organizações não governamentais que participam lateralmente de processos decisórios internacionais. Em face disso, esse exercício da autoridade pública requer novas formas de legitimação, diferentes das já tradicionalmente construídas no âmbito de Estados nacionais. A legitimidade, por sua vez, construída a partir da tradição republicana, vincula-se a autogoverno e a soberania, que implicam, necessariamente, transparência e responsabilidade (accountability), entre outros elementos. (DELBRÜCK 2003)

A popularização da palavra governança, nesse contexto, revela um efeito da própria globalização, como, inclusive já se indicou acima: a fragmentação da esfera pública, que se repartiu em diversas instâncias e redes mundiais de relacionamento político, muitas vezes descoordenadas. Vários teóricos tendem a enxergar essas instâncias como meros loci tecnocráticos e inofensivos, com funções administrativas ou

161 Citando Ernst-Ulrich Petersmann, Barbara Woodward apresenta um possível desenho desse cenário:

―A constituição do Estado civil é, supostamente, republicana, portanto exigindo o consentimento de seus cidadãos, na condição de ‗sujeitos‘ do Estado, em vez de o chefe (ou ‗dono‘) do Estado para decisões importantes, como declaração de guerra. A constituição interestatal seria uma ‗federação de estados livres‘ que não teria qualquer poder governamental como o de um Estado, mas, em vez disso, ‗teria sido concebida como uma ‗federação de pessoas‘ com direitos humanos inalienáveis e governos constitucionalmente limitados e compromissados com o Estado de direito e com a proteção dos direitos dos cidadãos interna e externamente‘‖ [tradução livre de: ―The civil state constitution was to be republican, thereby requiring the consent of its citizens, as ‗subjects‘ of the state, rather than the head (or ‗owner‘) of the state for important decisions, such as whether to declare war. The inter-state constitution would be a ‗federation of free states‘ which would not have any government power like that of a state, but instead, ‗was conceived as a ‗federation of peoples‘ with inalienable human rights and constitutionally limited governments committed to rule-of-law and to protection of citizen‘s rights at home and abroad‘‖] (2006, 269).

facilitadoras das relações internacionais. Essa visão, contudo, mascara as feições políticas desses processos, que, em verdade, não são neutros.162 Enxergando-os também como processos de construção de decisões politicamente relevantes, que impactam a vida das pessoas, por mais que tenham conteúdo técnico, abre-se espaço para lhe justificar uma maior abertura e transparência, voltada a garantir uma participação democrática. Tratá-los como instâncias desinteressadas e neutras que gera decisões tomadas por uma elite tecnocrática termina por abrir o processo somente para quem tem acesso privilegiado à discussão e à tomada de decisão. (PICCIOTTO 2000)

Bryan Schwartz e Elliot Leven (1992), por exemplo, fazem um estudo empírico para verificar quais razões são ou não relevantes para que uma organização internacional seja efetiva, isto é, promovam políticas e decisões que, de fato, alterem o ambiente no qual operam. Um dos fatores que consideram é a existência de uma burocracia tecnicamente forte, que defina ações para o alcance dos objetivos da organização, em vez de uma entidade operada por políticos.163 Por outro lado, acreditam que a organização pode ser mais efetiva se os seus países-membros forem democracias, na medida em que estarão acostumados a debater, a entrar em consensos e, eventualmente, a perder.164

Com a globalização, porém, existe o risco de fragmentação social à medida que as pessoas abandonam sua comunidade pré-determinada, o que pode prejudicar possibilidades democráticas ou, no mínimo, exigir novos arranjos. Dessa forma, a partir da década de 1990, a necessidade de ampliação epistemológica do direito e das relações internacionais já era fortemente reconhecida na doutrina. Isso levou a inúmeras formulações de alternativas para tornar a política internacional mais inclusiva e garantir

162 Os organismos internacionais tinham, outrora, esse posicionamento quase unânime. No entanto, mais

recentemente, ―ao passo que as burocracias internacionais ainda preferem apresentar-se como possuindo um papel tecnocrático, elas aparentemente começaram a aceitar – talvez como resposta às críticas – que ele possui uma dimensão política, ao menos em termos de que suas políticas deveriam ser aceitas pelo público‖ [tradução livre de: ―while international bureaucracies still prefer to represent their role as a technocratic one, they apparently have begun to accept – perhaps in response to criticism – that it has a political dimension, at least in terms of the concern that their policies should be acceptable to the public‖] (PICCIOTTO 2000, 163).

163 Os autores têm a mesma percepção de Schoenbrod (1987), conforme indicado no capítulo anterior: os

políticos delegam o trabalho para burocracias com o propósito de se isentarem da responsabilidade por escolhas difíceis, que se refletiria no resultado das urnas.

164 Além desses dois fatores, Schwartz e Leven fazem um estudo de outras onze variáveis, para verificar

se, e em que medida, elas influenciam a efetividade da organização: volume de decisões, objetivo e subprogramas bem definidos, foco na resolução de questões pragmáticas e concretamente definidas, financiamento garantido, equilíbrio de poder entre os membros, rapidez na tomada das decisões, elevação progressiva do número de associados, autoridade legal para impor sanções, processos decisórios que não exigem unanimidade, liderança carismática e compartilhamento de valores comuns entre os membros.

mais legitimidade para o direito produzido a partir dela. A ideia de uma sociedade civil global ganhou apoiadores e presença nos debates acadêmicos e políticos.165 (WOODWARD 2006)