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2. A globalização da governança

2.1. Do direito internacional ao direito global

2.1.2. Globalização

A partir do fim da bipolarização da geopolítica no mundo, com o término da Guerra Fria, as relações internacionais e o direito internacional aproximaram-se

149 Stephen Krasner (2000), afinal, considera que o fato de as relações internacionais e o direito

internacional não se religarem por completo não seja algo tão ruim, pois evidencia que são ciências com preocupações distintas. ―A tarefa dos cientistas políticos é, primariamente, explicar o que existe e, a partir daí, explorar as possibilidades do que pode vir a ser. A tarefa dos advogados é, com mais frequência, elucidar não aquilo que existe, mas o que pode vir a ser‖. [Tradução livre do original: ―The task of political scientists is primarily to explain what is and thereby to hint at what might be. The task of lawyers is more often to elucidate not what is, but what might be.‖] (99)

mutuamente e passaram a trabalhar com categorias que se comunicavam, fazendo uso, muitas vezes, de conceitos da filosofia política e da sociologia. Esse movimento marcou o que Barbara Woodward (2006) chama de passagem da internacionalidade para a globalidade. Enquanto a primeira trabalha com uma visão fragmentada das relações mundiais, contornadas pelas fronteiras dos Estados territoriais, a globalidade enxerga uma multiplicidade de relações de várias naturezas (políticas, sociais, econômicas e jurídicas) ocorrendo entre diversos níveis, a despeito das divisões formalistas entre Estados.

Globalização pode ter dois sentidos distintos: um mais amplo, referindo-se a uma integração social internacional e a uma aproximação, em todos os âmbitos, das pessoas e das culturas dos diferentes países, e um mais restrito, relacionado à política econômica ocidental após o término da Guerra Fria e à velocidade com que ela vem se alastrando no mundo voluntariosamente ou não. Embora ambos não sejam fenômenos novos, recentemente se tornaram mais agudos. O segundo fenômeno – a globalização econômica – é, em verdade, um recorte do primeiro, sendo frequentemente tematizado e criticado. Ele não ocorre por si só, no entanto; muito do seu espraiamento decorre de decisões políticas mais ou menos conscientes. (WOODWARD 2006)

A retórica da globalização econômica surgiu a partir da resposta, nas urnas, às crises dos anos 1970 e 1980 nos países centrais. Governos conservadores assumiram o poder em países centrais com o lema de tornar o Estado eficiente, reduzindo seu peso, para equilibrar as contas, e retirando sua intervenção na economia, para deixar o mercado funcionar. Esse, em uma frase, o epítome da ideologia neoliberal, que deu origem ao Consenso de Washington, receituário produzido pelo Banco Mundial, pelo FMI e por burocratas americanos, para estancar a inflação e estabilizar a economia dos países em desenvolvimento.150 (VIEIRA 1999)

A onda de privatização ocorrida há algumas décadas em diversos países do mundo ocidental tem forte influência da globalização, entendida nesse sentido. As

150 O ―Consenso de Washington‖ foi uma expressão elaborada por John Williamson (1990) para

referenciar uma lista de dez medidas recomendadas para que os países da América Latina lidassem com a crise fiscal pela qual passavam: disciplina fiscal, redução e priorização dos gastos públicos, reforma tributária, taxas de juros de acordo com o mercado, determinação das taxas de câmbio pelas forças de mercado, liberalização das importações, liberalização do investimento estrangeiro direto e, em um segundo plano, da circulação de capitais, privatização de empresas estatais, desregulação (eliminação das medidas regulatórias que impedem a mobilidade no mercado e o rápido investimento) e respeito aos direitos de propriedade intelectual. Com o tempo, o Consenso de Washington passou a se referir a uma radicalização dessas recomendações, em uma agenda neoliberal mais ampla.

pressões por eficiência econômica – e por competitividade – atingem entidades públicas e privadas, em um entremeado de fenômenos de diversas naturezas que desnacionalizam e desterritorializam os Estados. Assim como as empresas competem entre si, a globalização institui um regime de competição entre os próprios Estados pelos recursos disponíveis para investimento no mundo. É comum, nesse jogo, haver disputas pela redução da carga tributária ou das barreiras regulatórias. (AMAN JR. 2002) Outro efeito da globalização tem sido o aumento das disparidades econômicas no mundo; em outras palavras, ela tem beneficiado a poucos e deixado à margem muitos outros. (WOODWARD 2006)

Simultaneamente, os problemas que decorrem dessa nova ordem econômica transcendem as fronteiras de um Estado, exigindo e estimulando, ao lado da competição, uma cooperação transfronteiriça ou internacional. Um Estado globalizado deixa de ter sob seu monopólio a elaboração de políticas públicas, sendo forçado a barganhar e a formar parcerias com outros países. Existe a pressão compreensível para que os quadros regulatórios de diferentes países sejam, ao menos minimamente, harmonizados. Isso decorre da globalização e, ao mesmo tempo, estimula-a, porquanto cria as condições para uma organização global dos negócios praticados por empresas multinacionais, que se desenham em pós-fordismos multicontinentais.151 (AMAN JR. 2002)

As privatizações deram-se, anunciadamente, em face dos déficits fiscais estatais e das dificuldades de legitimar muitos dos gastos havidos com programas de bem-estar e com infraestrutura que poderia ser construída e mantida por entes privados, especialmente em face da má prestação dos serviços públicos e da ineficiência do Estado. A partir disso, muitos princípios empresariais passaram a ser aplicados na Administração estatal. Setores de serviço público, como o de telecomunicações e o de aviação civil, foram abertos à entrada de multinacionais mediante a instauração de regimes de prestação competitiva. Na medida em que haveria a entrada de grandes vultos de capital externo nos países, muitos procuraram padronizar um modelo regulatório, adotando uma agência reguladora para os setores liberalizados, com o

151 Embora não se refira expressamente ao pós-fordismo, Aman Jr. faz menção indireta a ele quando

procura descrever a maneira de operação de corporações globalizadas: ―Às vezes é difícil saber onde se encontra o centro de determinada companhia, na medida em que ela é comumente formada de uma série de contratantes mundo afora, cada um desempenhando uma tarefa específica, com o melhor custo-benefício.‖ [Tradução livre de: ―Sometimes it is hard to know where the center of a particular company is, as it is, in many ways, made up of a series of independent contractors around the world, each performing a particular task in the most cost-effective way.‖] (2002, 1699)

objetivo de sinalizar um controle mais técnico do mercado, isolado de interferências políticas. (CÂMARA 1999)

Todavia, essas mudanças consistiram mais em uma reorganização da esfera pública e do seu relacionamento com a esfera privada, do que em uma desoneração de encargos da primeira. No período de privatizações, a relação entre gastos públicos e Produto Interno Bruto (PIB) pouco se alterou. Reformas regulatórias facilitaram a interpenetração de mercados nacionais, reconfigurando o relacionamento entre o público e o privado, entre o nacional e o internacional. Esta reconfiguração deu origem à diferenciação entre os termos regulação e governança. Enquanto o primeiro significa atuação legalmente determinada e formal, o segundo, surgido no contexto do Consenso de Washington e cunhado por representantes do Banco Mundial, tem conotação mais imprecisa e indica uma intervenção tecnocrática nas relações econômicas e sociais domésticas. (PICCIOTTO 2000)

Quando se fala em governança global em um contexto jurídico, faz-se referência aos instrumentos regulatórios existentes no nível pós-nacional, sejam eles regras vinculantes, não vinculantes ou outros tipos de instituições. Há visões pessimistas associadas a isso. Alguns julgam que o uso da expressão governança global vem para mascarar e amaciar o fato de ONGs internacionais privadas estarem tomando o lugar dos Estados na determinação das políticas públicas; a governança, assim, estaria substituindo o governo. Outros argumentam que a autoridade dos Estados no plano internacional está sendo corroída pelas empresas multinacionais e pelos grandes grupos econômicos, que possuem influência decisiva e acesso privilegiado em certos organismos internacionais, como a OMC, o FMI e o Banco Mundial. (WOODWARD 2006)

Ao criticar o avanço da ideologia neoliberal da globalização fundada em teóricos como Friedrich Hayek, Calixto Salomão Filho (1999) argumenta que a saída ideológica disponível passa, necessariamente, pela teoria jurídica. Calixto instrumentaliza as críticas tecidas pela Escola Ordo-liberal de Freiburg contra as teses hayekianas para concluir que o mercado, mesmo o mercado competitivo, é incapaz de gerar, por si só, objetivos jurídicos ou políticos a serem perseguidos pela sociedade. O que faz isso são os valores. Portanto, não é a melhor escolha para as políticas públicas simplesmente renderem-se ao eficiente mercado para que ele tudo lhes proveja. O direito tem o papel de, produzido democraticamente, provocar a persecução de valores compartilhados pelo próprio mercado, ou seja, orientá-lo a objetivos republicanamente estatuídos. A

globalização, portanto, deve ser um fenômeno compreendido pelo direito. Só assim a coletividade será capaz de orientá-lo em vez de se submeter a ele.