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2. A globalização da governança

2.2. Déficit democrático e direito administrativo

2.2.2. Direito administrativo global

As OIs e as redes transgovernamentais hoje lidam com inúmeros assuntos que são de interesse de todas as nações, visivelmente condicionando ou guinando as políticas internas dos países que se relacionam com esses órgãos. Isso tem levado a academia e a doutrina a desenharem um novo campo de estudos no direito internacional público: o direito administrativo global.

O surgimento dessa área de estudos representa uma mudança pouco banal no direito administrativo, na medida em que este sempre lidou exclusivamente com os processos e as políticas internas a um Estado soberano. O propósito de avançá-lo ao plano global é, precisamente, dispor de um instrumental para a análise e a construção de procedimentos de funcionamento e de elaboração de políticas desses órgãos, permitindo que eles tornem-se mais transparentes, acessíveis e participativos.

Três preocupações circundam esse tema: transparência, acessibilidade e responsabilidade (accountability). Transparência refere-se à possibilidade concreta de um cidadão obter informações claras e completas a respeito dos processos decisórios desses organismos e das políticas desenhadas por eles. Acessibilidade significa a possibilidade, geográfica e de compreensão, que indivíduos e a sociedade civil têm de participarem desses processos e colaborarem ativamente com a elaboração dessas políticas, conferindo-lhes uma legitimidade que compense a natureza não eletiva dos seus elaboradores. Complementarmente, reponsabilidade (accountability) refere-se, precisamente, às formas, alternativas às urnas, de responsabilização e de prestação de contas impostas aos burocratas das OIs e das redes transgovernamentais. (KINNEY 2002, 427)

171 Tradução livre de: ―Democracy is far more than the rule of law, which can at best provide a

framework for adjudicating competing claims of right. Political processes must decide who should have what rights.‖

Para demonstrar a existência de um direito administrativo global, Sabino Cassese (2005) estuda a evolução da governança regulatória da pesca de atum no mundo ao longo de algumas décadas, com a formação de uma organização internacional para tratar do assunto e com sua atuação prática. Identifica, no curso da narrativa, todos os elementos tradicionais do direito administrativo – autoridade constituída, emanação de decisões sobre terceiros e resolução de conflitos entre atores do setor regulado – e percebe uma forte influência desse direito no Estado nacional.

Todavia o direito administrativo global difere em alguns aspectos fundamentais do direito estatal: não há exclusividade de regime, ou seja, podem existir inúmeros regimes que se sobrepõem a determinado fato jurídico; existe um forte papel da autorregulação, uma vez que não é possível distinguir claramente regulador e regulado; as decisões têm um caráter negocial maior do que no direito administrativo doméstico, porquanto este se apoia na soberania estatal, ao passo que o direito administrativo global depende do reconhecimento legítimo das partes interessadas; e não há distinção clara entre o público e o privado.

Existem milhares de organizações internacionais hoje no mundo, a maior parte delas criada nas últimas décadas do século XX, de forma que qualquer espaço da atividade humana está sujeita a uma regulação internacional. Trata-se de um complexo sistema que desenvolve significativa autonomia em relação aos Estados instituidores. Essa autonomia é compensada pela participação dos Estados-membros nos processos decisórios, mas os organismos frequentemente admitem membros não estatais. São funções comuns a esses organismos a cooperação, a harmonização e a padronização entre Estados.172 (CASSESE 2005)

A internacionalização da atividade administrativa – expressão que parece carregar um contrassenso – é verificada quando atividades até outrora exclusivas e típicas da Administração Pública nacional surgem além de suas fronteiras ou desconsiderando essas fronteiras. A norma que regulamenta essa atividade, portanto, deve seguir as máximas da legislação administrativa tipicamente nacional. Todavia, conforme já foi dito, o direito internacional tem muitas diferenças em relação ao direito nacional. Outras diferenças interessantes são a possibilidade de variação gradativa de

172 Cassese (2005) nota que existe o seguinte padrão na organização desses órgãos: um corpo colegiado

que reúne todos os membros, um colegiado mais restrito, eleito pelo primeiro, uma secretaria, que contém um corpo técnico permanente, e comitês permanentes ou ad hoc, para lidar com temas específicos.

efeito vinculativo – soft law, hard law – e a composição de fontes do direito.173 Nesse contexto, as normas internacionais secundárias surgem como uma formação jurídica intermediária, que acabam influenciando ou interferindo nos direitos nacionais. (AβMANN 2008)

Parte-se do pressuposto de que, quando o Estado decide abrir mão de um punhado de sua soberania para empoderar um organismo internacional, enxerga isso como uma operação de custo-benefício positivo. Em outras palavras, não cooperar pode levá-lo a ineficiências, a externalidades de rede negativas, à diminuição de seu bem- estar ou a outros fatores negativos que superaria se cooperasse. A partir disso, porém, surge outra ordem de problemas, para cuja resolução o direito administrativo pode colaborar.

Um desses problemas é a falta de mecanismos institucionais que garantam a responsabilidade das pessoas que ocupam os cargos de decisão em tais entidades. A ausência de eleições populares ou de um sistema de freios e contrapesos representa o afastamento potencial dessas pessoas em relação ao interesse público, o qual seria expresso por meio de uma pluralidade institucional ou por meio de um povo que as elegeu. Além disso, o afastamento dessas organizações em relação a uma comunidade específica prejudica a legitimidade democrática, porquanto esta exige certo grau de engajamento cívico e de identidade coletiva.

Outro fator que se deve ter em conta na decisão de cooperar é a perda de eficácia resultante do aumento dos custos de transação quando há necessidade de coordenação entre mais atores no âmbito de uma ampla cooperação: a solução intuitiva e comum de subdelegar o assunto a corpúsculos técnicos não ajuda a tornar a atividade do órgão mais transparente. Um excesso de limitação dos poderes soberanos dos Estados ainda pode ser um forte impeditivo à legitimidade das organizações internacionais; isso variará conforme a autoridade de decidir esteja no organismo ou nos Estados individualmente considerados e de acordo com a intensidade de vinculação das decisões internacionais. (ESTY 2006)

Em muitas áreas regulatórias, há entidades não estatais que possuem poder normativo ou alguma autoridade decisória. Embora sejam frequentemente instrumentalizadas por quem tem, circunstancialmente, mais poder de fato, é possível

173 O rol de fontes de direito internacional pode ser identificado no artigo 38 do Estatuto da Corte

Internacional de Justiça e compreende convenções internacionais, costume internacional, princípios gerais de direito, decisões judiciais e doutrina dos publicistas mais qualificados.

exigir-se que essas entidades tenham uma abertura efetiva à participação da sociedade civil organizada. Reproduzindo trecho da obra Global business regulation, de John Braithwaite e Peter Drahos, William Scheuerman (2002) expõe o argumento de que a autorregulação internacional, com participação democrática e com a limitação dos Estados a um papel supervisor, é legitimamente possível. Se, por um lado, a globalização prejudica as instituições existentes, por outro, abre espaço para novos arranjos institucionais.

Uma questão preliminar, todavia, precisa ser respondida para evitar que se caia em contradição na busca por uma solução para o déficit democrático: deve-se abrir a participação nos processos decisórios para pessoas além dos Estados, que são os próprios membros da OI? Qualquer outro participante não estaria automática e inevitavelmente abarcado pelo Estado no qual se encontra? (CHARNOVITZ 2003)

A dogmática do direito internacional público não reconhece personalidade jurídica além do Estado e das organizações internacionais.

A percepção do indivíduo como personalidade internacional pretende fundar- se na lembrança de que certas normas internacionais criam direitos para as pessoas, ou lhes impõem deveres. É preciso lembrar, entretanto, que indivíduos e empresas – diversamente dos Estados e das organizações – não se envolvem, a título próprio, na produção do acervo normativo internacional, nem guardam qualquer relação direta e imediata com essa ordem.

(…)

Para que uma idéia científica – e não simplesmente declamatória – da personalidade jurídica do indivíduo em direito das gentes pudesse fazer algum sentido, seria necessário pelo menos que ele dispusesse da prerrogativa ampla de reclamar, nos foros internacionais, a garantia de seus direitos, e que tal qualidade resultasse de norma geral. Isso não acontece. (REZEK 2005, 153)

Em resposta, pode-se dizer que organizações não governamentais já têm participação garantida pela própria Carta das Nações Unidas.174 Além disso, como cada Estado representa um ponto de convergência de todos os interesses e posições que contém, a maior participação de entidades que representam esses interesses e posições melhora a legitimidade das decisões tomadas. Participação democrática significa mais do que direito de petição; significa o direito de ser ouvido e de ser efetivamente levado em consideração. (CHARNOVITZ 2003)

174Dispõe o art. 71: ―O Conselho Económico e Social poderá entrar em entendimentos convenientes para

a consulta com organizações não governamentais que se ocupem de assuntos no âmbito da sua própria competência. Tais entendimentos poderão ser feitos com organizações internacionais e, quando for o caso, com organizações nacionais, depois de efectuadas consultas com o membro das Nações Unidas interessado no caso‖.