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A assistência à saúde prestada pela iniciativa privada

Objetivos Específicos

3. CAPÍTULO 1 SAÚDE NA AGENDA INTERNACIONAL E

3.3 A proteção e a promoção da saúde no Brasil

3.3.2 A assistência à saúde prestada pela iniciativa privada

Ao realizar análise retrospectiva do Sistema Único de Saúde, Menicucci (2014) enfatiza que a política de saúde, no Brasil, foi constituída de forma segmentada desde seu nascedouro, que seus problemas estruturais se pautam na convivência de um sistema público e outro privado, além das dificuldades de se implantar um sistema único e universal em um país com as dimensões do Brasil.

O artigo 199 da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) prescreve que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, revelando-se a necessária convivência do serviço público com prestadores privados na área18. Dallari e Nunes Junior (2010) abordam a temática

discorrendo sobre a importância do discernimento dos diferentes regimes jurídicos na atuação privada na saúde: a existência de uma disciplina jurídica para a atuação da iniciativa privada junto ao SUS e outra para a atuação fora dele. O artigo 199 estabelece que a iniciativa privada deve atuar junto ao SUS de forma complementar, para completar eventuais necessidades de atendimento. Nesse sentido, a Constituição estaria admitindo a concorrência da esfera privada de forma residual. São atuações que ocorrem mediante contratos públicos ou convênios.

O referido dispositivo constitucional aponta que, nessa relação com instituições privadas, deve-se dar preferência às entidades filantrópicas e às sem fins lucrativos. Logo, o gestor do SUS não tem avaliação discricionária: diante de duas entidades privadas aptas à complementação do sistema, só havendo necessidade de uma, deve- se escolher a que tenha caráter filantrópico ou sem fins lucrativos. Essa preferência vem reforçada pela dicção do parágrafo 2º, do artigo 199, que proíbe a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições com fins lucrativos (DALLARI; NUNES JUNIOR, 2010, p. 96).

Em relação à presença da iniciativa privada fora do SUS19, Dallari e Nunes Junior

18 Uma abordagem sobre as questões relativas ao exercício da prestação de serviços de atendimento à saúde pela

iniciativa privada, passando pelo controle estatal, possibilidades de contratação e prevenção de abusividades é encontrada em:

PEREIRA, R.S. Planos de saúde: aspectos jurídicos fundamentais. In: RÉ, A. I. M. R.; REIS, G. A. S. (Orgs.).

Temas aprofundados Defensoria Pública. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2014. v. 2, p. 231-260.

(2010) descrevem que está previsto um regime jurídico diverso, em que não há restrições, existindo, portanto, a possibilidade dos entes privados prestarem assistência à saúde nos distintos níveis de complexidade. Destacam que, por indicação do artigo 197, qualquer atividade de saúde deve estar submetida ao controle do Poder Público e, ainda, que o parágrafo 3º, do artigo 199, proíbe a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde, salvo nos casos previstos em lei. A regulação da atuação dos planos privados de assistência está prevista na Lei 9.656/1998 (BRASIL, 1998), colocando-os sob supervisão e controle da Agência Nacional de Saúde Suplementar (DALLARI; NUNES JUNIOR, 2010).

Para Menicucci (2014), a política pública voltada à saúde no Brasil incentivou o desenvolvimento do mercado privado tanto pela compra de serviços quanto pelos subsídios do governo para a construção de unidades hospitalares.

Fundamental para entender a trajetória da dualidade do sistema brasileiro foi a estratégia de fazer convênios com empresas que, por meio de subsídios governamentais, se encarregassem da prestação de assistência à saúde a seus empregados. Esse é o berço dos planos de saúde, porque desenvolveu nas empresas a prática de prestar serviços aos empregados, o que gerou no mercado outra modalidade institucional: as empresas médicas que geriam a assistência médica para as empresas empregadoras [...]. Se num primeiro momento essa dinâmica é atrelada à política pública, por meio de convênios, posteriormente as empresas passam a ser independentes do governo [...]. Se era complementar à assistência pública, passa a ser suplementar, passa a ter independência e a fazer parte das negociações coletivas dos trabalhadores [...]. A consequência disso para o SUS é muito grande, uma vez que perde significativo apoio de um ator político que é a massa de trabalhadores organizados (MENICUCCI, 2014, p. 80).

A autora vai além da análise dos convênios e trata dos incentivos fiscais ofertados, ainda na década de 1980, inicialmente para as empresas empregadoras para deduzir de seus lucros o gasto com a assistência à saúde dos empregados e, portanto, obter redução no imposto de renda. Entretanto, posteriormente, com a expansão do mercado de venda de planos de saúde individuais, os incentivos fiscais se estenderam para pessoas físicas com a possibilidade de serem descontados no imposto de renda os gastos com a saúde.

A Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) passa a evidenciar visões antagônicas, um sistema híbrido e segmentado: uma visão estatizante em que o direito à saúde deve ser provido pelo Estado, e outra privatizante, preservando a liberdade de mercado.

Por um lado consagra a saúde como direito, garante a universalidade e acesso à assistência, amplia a responsabilidade estatal e define a estruturação de um sistema inclusivo; por outro, preserva a liberdade de mercado e garante a continuidade das formas privadas de assistência e independentes de qualquer intervenção TRETTEL, D.B.; MIRANDA, L.F.B. Planos de Saúde e outras relações de consumo: o que a Defensoria Pública tem a ver com isso? In: RÉ, A. I. M. R.; REIS, G. A. S. (Orgs.). Temas aprofundados Defensoria Pública. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2014. v. 2, p. 261-291.

governamental. Essa intervenção via regulação do setor privado, só ocorrerá no final da década de 1990: em 1999, pela lei que regulamenta os planos privados, e em 2000 pela criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Curiosamente, no momento em que se fazia um esforço hercúleo de se implementar a política de saúde definida na Constituição, verifica-se a entrada na agenda governamental e pública da regulamentação dos planos privados de saúde, o que acontecerá no final da década de 1990 (MENICUCCI, 2014, p. 81).

A análise do processo de mudanças desencadeadas a partir da Constituição de 1988, no que se refere ao Sistema de Saúde e a agenda dos diferentes governos desse período, é sintetizada por Paim (2013):

Todos os governos prestaram alguma contribuição ao SUS: Sarney implantou o SUDS; Collor sancionou as Leis Orgânicas da Saúde; Itamar criou o Programa Saúde da Família (PSF), extinguiu o INAMPS e avançou a descentralização; Fernando Henrique Cardoso ampliou o PSF, implantou a política dos medicamentos genéricos e organizou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); Lula montou o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e implementou as políticas de saúde mental e bucal; Dilma regulamentou a Lei no 8.080/1990 e aprovou a Lei

Complementar 14. Nenhum deles, porém, incorporou a Reforma Sanitária Brasileira

como projeto de governo, nem demonstrou um compromisso efetivo com o SUS nos termos estabelecidos pela Constituição de 1988 (Paim, 2013, p. 1932).