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A construção de estratégias para o acesso à justiça

DEMANDAS COLETIVAS

CONDIÇÕES DAS INSTITUIÇÕES PARA TRATAMENTO EM SAÚDE MENTAL

8.3.3 A construção de estratégias para o acesso à justiça

Retomando o desafio inicial do presente estudo, por meio de métodos que permitam entender as possibilidades de acesso à justiça para demandas de saúde mental, dentro da proposta de uma instituição caracterizada por um discurso democrático e inovador no sistema de justiça, nesse tópico as atenções serão direcionadas para as estratégias de trabalho que estão sendo construídas desde a implantação do serviço do CAM.

Por meio do resgate do processo de movimentos populares que antecederam a implantação da DPESP e sua importante mobilização e elaboração do projeto de criação da instituição, observa-se que a sociedade civil foi ouvida em muitas de suas reivindicações, que passaram a pautar sua política institucional. Dentre essas, já constava na agenda dos movimentos sociais a reivindicação da inserção de psicólogos e assistentes sociais no quadro de servidores da DPESP. Entende-se que tais contratações objetivavam garantir um atendimento no sistema de justiça que pudesse alargar a escuta de demandas sociais, proporcionando maior proteção e defesa a essa população em face das diversas violências às quais está submetida.

Entretanto, no período da implantação da DPESP não houve contratação imediata desses profissionais, exceto convênios firmados com instituições para as quais eram encaminhadas algumas demandas. No decorrer do tempo, tal modelo de contratação de serviços apresentou dificuldades, tendo sido substituído pela contratação de profissionais de carreira.

Durante o período que antecedeu a contratação desses profissionais, que assumiram os cargos denominados Agentes da Defensoria, a instituição teve que lidar com situações paradoxais, que envolviam pessoas que traziam discursos confusos, delirantes, e reações pouco convencionais, às vezes agressivas, as quais dificultavam ao operador de Direito a identificação de demandas jurídicas. Foi se estabelecendo um impasse: como manter a proposta de uma instituição democrática, de livre acesso aos cidadãos (de “portas abertas”), sem negar (ou restringir) o acesso à justiça àqueles casos em que o pensamento do cidadão obedecia a uma racionalidade distinta daquela dos operadores do Direito? Ainda, como negar

o acesso à justiça nos casos em que as pessoas traduzem suas demandas jurídicas por meio de um dialeto próprio, alheio ao repertório do saber de domínio dos operadores de Direito? Nesse contexto de impasse, a DPESP, que já previa em sua legislação a contratação de psicólogos e assistentes sociais, formalizou a abertura da instituição a esses novos e distintos saberes (e não saberes) profissionais, com a expectativa de que viessem contribuir com um serviço de tradução desses novos interlocutores que chegavam democraticamente a essa nova instituição.

Outras justificativas importantes também se fizeram presentes para a vinda desses profissionais para a DPESP. Dentre elas, merece destaque, a expectativa de que com o trabalho desses profissionais no atendimento à população, muitos dos conflitos a serem judicializados pudessem ser administrados em acordos extrajudiciais, em trabalhos de conciliação e mediação, o que teria efeito significativo na diminuição de processos no sistema judiciário e na ampliação da atuação extrajudicial na construção dessa nova instituição do sistema de justiça.

Nas referências dos profissionais entrevistados (psicólogos e assistentes sociais) sobre o período inicial na instituição predominou a ênfase sobre o desconhecimento prévio (ou poucas informações) relativo à instituição, aos seus propósitos e a sua história de luta para ser implantada no Estado de São Paulo; a importância e a empolgação provocada durante o processo de acolhimento no curso inicial; e a primeira atribuição conjunta: a elaboração da proposta de deliberação para a regulamentação do atendimento ao usuário em sofrimento ou com transtorno mental.

A chegada dos novos saberes (e não saberes) na DPESP:

“Eu não conhecia a história de luta dos movimentos sociais. A gente teve duas semanas de acolhimento e foi uma ótima recepção. A gente acabou entrando em contato com essa história, então vieram pessoas do próprio movimento pela implantação da Defensoria falar. Eu acho que o acolhimento foi muito importante pra colocar os profissionais que estavam entrando em contato com essa história de reivindicação. A Defensoria tenta, pelo menos, se manter um pouco aberta à sociedade civil por uma série de canais. Nossa ouvidoria é externa, então não é um defensor; o nosso Conselho Superior tem um Momento Aberto que qualquer um pode ir lá falar, inclusive o servidor pode ir lá; tem a figura das Conferências, o que é algo inovador no campo da justiça. Porque no campo da saúde, da assistência, da educação é algo bastante consolidado, mas é meio inimaginável você pensar em promotores ou juízes sentando com a sociedade civil pra discutir, como é que vai ser, como é que serão os próximos dois anos do Tribunal de Justiça. E na Defensoria isso acontece. Claro que toda proposta de debate tem lá os seus atravessamentos, então, tem muitas demandas da sociedade civil que a gente não consegue atender. Mas, então, eu fiquei sabendo de tudo isso depois, antes eu não sabia não” (ADP 02). “A recepção foi muito, como eu poderia, que palavra, não sei se utópica. A gente foi muito bem recebido e causou uma certa ilusão, uma expectativa nos profissionais.

Porque tinha todo o investimento, nossa! É a primeira Defensoria do país que vai contar com esses profissionais, olha como somos abertos, vamos construir junto essa proposta de trabalho. Então, a princípio, acho que geral, todos ficaram encantados. Nossa, que instituição é essa, né? Então, as pessoas com experiência em outros serviços, outra estrutura municipal, estadual e aí, você pega uma instituição nova, com poder, com autonomia e recebendo dessa forma, então, a expectativa foi superalta, né?” (ADAS 02).

A proposta de atuação:

“A proposta inicial, que foi passada pra gente seria ampliar o atendimento ao usuário da Defensoria, que antes tinha um atendimento basicamente jurídico. E com a chegada de psicólogos e assistentes sociais, ampliar a gama de área de formação para atendimento ao usuário. Fazia muito sentido porque muita gente que vem na Defensoria não tem um problema estritamente jurídico, precisa de muitas outras coisas, mas não precisa de um advogado especificamente. Essa foi a justificativa da inserção de psicólogos e assistentes sociais aqui. Pra ampliar o leque de possibilidades de atendimento ao usuário. Depois, na prática, a gente foi vendo que isso amplia, que a gente amplia também o leque para os defensores. Tanto no que eles pedem de atendimento, como nos processos deles mesmos pra fazer documento, pra fazer laudo. Amplia também, vamos dizer assim, a possibilidade do defensor atuar dentro da área de atuação dele. Não é só o usuário, mas, também o defensor fica mais munido de outras ferramentas” (ADP 01).

“Aí a gente entendeu no nosso curso de acolhimento, por exemplo, que o assistente social e o psicólogo foram pensados pra esta instituição justamente por conta da pessoa com transtorno mental, que eles chamavam de esquisitões. Falaram muito disso pra gente no nosso curso de acolhimento e o que a gente pensou? Bom, o que a gente pode fazer com esse público que nos procura aqui? E as pessoas foram chegando, e foram chegando pessoas com outras demandas também” (ADAS 03).

A elaboração da Deliberação:

“A gente construiu nessas primeiras semanas o que seria a nossa deliberação, instituição jurídica adora uma deliberação, né? E aí, a gente pode e isso foi interessante, da gente poder construir a nossa, tinha essa coisa do novo, de começar a dar a cara do que seria o nosso trabalho aqui, de ter certo espaço pra isso, não Totalmente aberto, lógico que já tinham várias expectativas em torno do que eles queriam da gente, os defensores já estavam aqui. Mas a gente pôde colaborar e colocar coisas que tinha a nossa cara, como preocupações, orientações dos conselhos profissionais, por exemplo, da psicologia e do serviço social e depois a gente foi pras unidades” (ADP 04).

“A gente tem uma deliberação que prevê todas essas atribuições que a gente falou. Inclusive, inicialmente, houve um movimento muito legal de discussão dessa deliberação conosco. Então, quando a gente entrou não existia ainda deliberação, existia uma minuta e nos últimos dias daquela capacitação, daquele acolhimento inicial, essa minuta foi proposta pra nós que estávamos entrando. Então a gente pôde sugerir uma série de alterações, algumas foram aceitas e outras não, mas eu achei interessante o movimento. É claro que assim, quando a gente fez esse debate, a gente não tinha essa experiência cotidiana, ninguém tinha trabalhado na Defensoria, então foi muito legal a proposta de discutir conosco, mas foi um debate abstrato” (ADP 02).

AS FORMAS DE APROFUNDAMENTO DA “ESCUTA” NA